Uma Tosca berrante - I
Foto de Alfredo Rocha
Tosca
de Puccini
com Elisabete Matos, Ewan Brouwers, Vladimir Vaneev
encenação de Robert Carsen
direcção de Lothar Koenigs
São Carlos, 19 de Maio
A Cavalleria Rusticana de Mascagni é baseada em Giovanni Verga, expoente do verismo literário. Subsequentemente, a que foi também designada por Giovanne scuola italiana ficou conhecida como verismo operático, categorização equívoca, já que, tudo considerado, foram de facto poucos as obras de estética “naturalista”, a citada Cavalleria Rusticana, as duas Bohème, de Puccini e de Leoncavallo, ou Il Tabarro.
O que distingue a escola é a concisão dramática, o canto spinto e di forza, a languidez e a predilecção pelo choque passional e as “emoções fortes”, qual antecipação dos media tablóide, mas ao invés do naturalismo as situações abordadas foram muitas vezes do próprio mundo das artes e representação: os Palhaços de Leoncavallo, a Tosca e a Turandot dePuccini (sim, também a Turandot, porque no fundo está a commedia dell’ arte e das máscaras de Gozzi), a Adriana Lecouvreur de Cilea, esta última e a Tosca sendo mesmo casos em que a prima-donna representa um papel de prima-donna, teatral a Adriana, operática a Floria Tosca.
Apresentou-se agora a Tosca no São Carlos, derradeira produção desta lamentável temporada. Por um lado, o teatro foi aos “saldos”, isto é, buscar à Ópera da Flandres uma encenação de Robert Carsen já com idade considerável, e por outro lado o espectáculo foi gizado como consagração local, finalmente, de uma diva, Elisabete Matos.
Nunca é demais realçar que a produção de óperas é hoje um mercado internacional, com frequente recurso a co-produções e alugueres, que isso o impõe os custos. Mas também não é demais salientar que este sistema se torna mecânico na medida em que muitas vezes, mesmo a maioria, os encenadores não supervisam eles próprios as reposições dos seus trabalhos. Sendo um prolífero encenador, essa ausência é um dado recorrente no caso de Carsen – estava ele ocupado com L’Incoronazione di Poppea, que no passado dia 18 abriu o Festival de Glyndebourne, quando pela segunda vez, depois da Lucia de Lammermoor em 2000, uma encenação sua foi apresentada em São Carlos.
Retrospectivamente, constata-se neste trabalho a predilecção pela mise en abyme que se tornou característica de Carsen. Quando da anterior produção da temporada do São Carlos, uns Contos de Hoffmann que foram verdadeiramente miseráveis, lembrei-me de imediato do esplendor vocal que tinha tido a ocasião de ouvir da vez anterior em que assistira a representações dessa ópera, na Bastilha, com Neil Shicoff e Bryn Terfel; como essa produção, encenada por Carsen, existe em dvd, pode-se verificar como, para entusiasmo sempre do público na Bastilha, a Barcarola é uma típica mise en abyme, no palco estando representada uma plateia.
Se houve um momento em que Carsen logrou notavelmente a reflexividade e duplicação especular da mise en abyme, com o Sonho de uma Noite de Verão de Britten, originalmente apresentado em Aix-en-Provence, e que também existe em dvd, forçoso é dizer que a repetição do processo se tornou estereótipo. É contudo supérfluo tecer uma exegese sobre os trabalhos do encenador a propósito desta Tosca - importa sim questionar a coerência da proposta ora re-apresentada.
Sendo Floria Tosca uma diva, e redobradamente uma personagem teatral, evidente é que a reprodução da representação e a duplicação especular da mise en abyme se justificam. A opção é obstinada neste caso, pois Carsen coloca o Acto I numa plateia, o II em bastidores de fundo do palco e o III no próprio palco, invertido a partir do fundo. O contexto político, tão importante na Tosca, é assim também secundarizado, tornado mesmo irrelevante, o que afinal mais faz sobressair os aspectos soap ou tablóide do enredo; ora, mesmo que se admita a subestimação do carácter de Mario Caravadossi, caso singular de uma personagem de Puccini com características de um herói rissorgimental verdiano, esse contexto político é não obstante fundamental ao grande afrontamento Tosca-Scarpia – que este último seja um chefe de polícia política passa contudo desapercebido nesta produção!
Mas mais grave são os pormenores supérfluos de ostentação, sobretudo no Acto I, com os alunos surgindo na “plateia” do palco quais artistas infantis nos bastidores, o primarismo da pose de star de Tosca ou a sua apresentação, no final, como madonna no altar em fundo ao Te Deum – o redobramento do teatro e da igreja é uma característica da estética barroca, não do verismo, a menos que neste que se queira sobretudo assinalar o rito sacrificial das heroínas (um dos aspectos mais marcantes das óperas de Puccini), opção que todavia também não é a desta encenação.
O azul forte e berrante do vestido da Tosca, e da tela que Cavaradossi pinta, dão “o tom”: esta é uma Tosca carregada, ainda mais primária e em tantos aspectos desleixada.