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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Uma Nota a umas notas de programa

 
Longe de mim pretender um discurso de “mestre-escola” ou de Mestre de Escola sobre as notas de concerto(s) – nada disso. Mas o texto do compositor Pedro Amaral inserido no programa do concerto “Os Novos Austríacos” merece um comentário.
 
Discípulo ilustre de Emmanuel Nunes, de facto o único, isto é, o único que atingiu estatuto próprio, Amaral vem, diria que determinadamente, afirmando a sua geneologia. Assim, por exemplo, já o ouvimos dirigir obras de Stockhausen ou Boulez, com até um momento marcante, quando de Hymnen do primeiro, mas também, há poucas semanas na Culturgest, numa desastrosa interpretação de Le Marteau sans maitre do segundo. Mas Pedro Amaral vem também construíndo a sua geneologia em notas de programas da Gulbenkian, por exemplo a propósito de Peter Eötvös, ou neste caso.
 
Austríacos? Logo tem de vir a história da “Primeira” e da “Segunda Escola de Viena”, dos mestres Haydn e Schönberg e dos grande discípulos Beethoven e Webern – mas também, e claro, como parte desta narrativa, e seu outro "momento heróico", a questão de Darmstadt. De facto é a questão de como a “vanguarda” de Darmstadt fixou, diria mesmo “congelou”, há mais de 50 anos, uma concepção da História da Música, uma concepção de um formalismo tautológico, a que no fundamental Pedro Amaral permanece fiel (notar-se-á por exemplo que nesta concepção um Mozart é, bem, apenas um membro menor de uma primeira trindade vienense).
 
Acontece que justamente com alguns destes “novos austríacos”, Neuwirth e Lang, há mutações, que no texto de Pedro Amaral até estão indiciadas, mas que são mesmo mudanças de paradigma e de inscrição cultural.
 
Por exemplo, Amaral fala de factores “extra-musicais” em Neuwirth; mas como é que pode ser ignorado a presença na sua obra de atitudes na descendência do “accionismo vienense” dos anos 60, a sua vocação também para instalações sonoras (como, na última Dokumenta de Kassel, ...miramondo multiplo... – título afim de Spazio Elastico, como se poderá notar – com um vídeo de uma partitura sendo escrita e a audição de textos de Walter Benjamin e Hannah Arendt), como é que pode ser ignorado que as suas obras de teatro musical, como a que Amaral aponta enquanto “sua obra de referência”, Bählammans Fest, têm sido escrito com Elfried Jelinek (sim, a laureada do Nobel), com o que isso supõe de posicionamento ético-crítico, perante a “cultura austríaca” inclusive?
 
Mais surpreendente ainda: como se pode ignorar que a referência maior e absolutamente marcante do percurso composicional de Bernhard Lang é uma obra de filosofia, Diferença e Repetição de Gilles Deleuze?
 
Não escrevo esta nota para apontar “erros” ou mesmos lapsos – se bem que o da relação Lang/Deleuze me deixe estupefacto. Pedro Amaral é alguém cuja trajectória sigo com atenção e interesse. O seu discurso nestas notas e noutras é articulado. O que discuto é os termos desse discurso, uma concepção unívoca da História da Música, uma concepção entrópica em termos estritos de materiais musicais – e com isso uma específica perspectiva, a meu ver limitativa, sobre a música contemporânea. E é isso que creio ser matéria de um debate público e pertinente.