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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

O Mistério da Ajuda

 

 

 

 
“Em consciência não vejo que haja objectivamente razões que levem o primeiro-ministro a remodelar a pasta da Cultura. Pelo contrário” – esta insólita declaração da própria titular da pasta lia-se no “Expresso” de 29-09-07. Três meses exactos volvidos, essa mesma Isabel Pires de Lima era exonerada, e no dia seguinte, 30 de Janeiro, tomava posse o sucessor, José António Pinto Ribeiro.
 
Entrou ele em funções com dois péssimos passos:
 
1) Sendo membro do Conselho de Administração da Fundação – Colecção Berardo, e sendo para mais notório que há importantes reservas à salvaguarda do interesse público na constituição dessa entidade, o próprio Berardo fez contudo saber que tinha sido Pinto Ribeiro a telefonar-lhe comunicando a nomeação e mais, que o outro era “como um médico que dá consultas à borla”;
 
2) Numa pasta financeiramente estrangulada, em que o governo socialista se tem no mínimo mostrado ao mesmo nível do que antes criticava (retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram” é a primeira de três finalidades essenciais para o sector, nos termos do programa do presente governo), Pinto Ribeiro veio proclamar que “era possível fazer mais com menos meios”.
 
Pode essa desastrada declaração ser lida como intuito de demarcação face ao imediato precedente, mas ainda assim não só traduzia um notório desconhecimento da situação real do sector – afinal, a razão imediata da sua nomeação radicava-se no facto de ter pertencido à Comissão Política da Candidatura de Mário Soares - como, a haver nela um mínimo de substância, deveria ser seguida da clarificação de um novo quadro de acção.
 
Passaram quatro meses e meio entretanto e do ministro da Cultura não há praticamente notícias. No Palácio da Ajuda ocorre um mistério, o do ministro, ou do ministério desaparecido.
 
O ministro da tutela não tem de ser alguém oriundo do sector cultural. Ele é um responsável político, e os meios da sua acção são também em grande parte fruto da capacidade que tenha de tornar publicamente notório o seu âmbito; mas cada sector tem quadros de acção que exigem um mínimo de conhecimento específico – e a avaliar pelo denso nevoeiro de mistério não bastava a J. A. Pinto Ribeiro ser advogado ou parceiro de alguns artistas e agentes das indústrias culturais para estar inteirado das questões e possíveis alternativas de política.
 
Será então que afinal não é “possível fazer mais com menos meios”?
 
Nem o quadro orçamental do país é de molde a um reforço significativo dos meios para a cultura, nem esse quadro ou a “governação à direita” são álibis bastantes. Do ministro da Cultura sucessor da tão desastrada governação de Isabel Pires de Lima eram exigíveis duas coisas: que estivesse ciente do próprio programa do governo para o sector, em tantos aspectos flagrantemente desrespeitado por Pires de Lima e Mário Vieira de Carvalho, e que tivesse a capacidade política de desenhar outros modos de acção.
 
Dos tão elogiosos retratos do novo ministro publicado na imprensa inferia-se de certeza segura que o défice de auto-estima não era um dos seus limites, antes pelo contrário. Era então legítimo supor que J. A. Pinto Ribeiro teria uma distinta visibilidade nas suas novas funções, factor que estaria longe de ser despiciendo, dada a notória secundariedade a que sector tem estado remetido na presente governação – conseguir a definição de uma política, obter os meios da sua prossecução, depende também muito da visibilidade e como tal da possibilidade de percepção pública dessa política. Eis então o mistério maior, o de, em vez da maior visibilidade expectável, o ministro da Cultura J. A. Pinto Ribeiro se ter antes confinado à insignificância.
 
Já tive nomeadamente ocasião de recordar, era ainda ministra Pires de Lima, que do programa do governo consta o seguinte: “O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo, importando retomar a trajectória de aproximação interrompida no passado recente” – e que entre os “objectivos complementares” se inscreverever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”.
 
Ora este quadro de acção a que o governo se comprometia foi substancialmente escamoteado. Durante meses a página electrónica do Ministério da Cultura, de um imobilismo contrastante com o tão propagandeado “choque tecnológico”, continuava a anunciar como estando o Estatuto do Mecenato em revisão quando, ao invés, não só se agudizou a lógica perversa de o próprio governo canalizar os apoios privados para as suas iniciativas directas, de que foi exemplo a exposição do Hermitage, como inclusive o próprio Estatuto foi revogado, confinando-se as formas de apoio aos dispositivos de benefícios fiscais previstos no Orçamento de Estado.
 
Nem é preciso invocar uma vez mais a cabisbaixa declaração de ser “possível fazer mais com menos meios” – seria em qualquer caso necessário não só dar provimento a um novo quadro legal, tal como previsto no programa do governo, como fazer sentir publicamente à sociedade em geral, aos agentes culturais e a potenciais parceiros, que o governo estava empenhado num novo modo de relacionamento. Mas sobre esta questão nodal – que não apenas de meios, mas de paradigma de dinâmicas – guarda J. A. Pinto Ribeiro o maior dos silêncios.
 
Numa rara intervenção, explicou o ministro em sede parlamentar que a língua, o património e o apoio às artes e indústrias culturais eram as suas prioridades; mais deu notícia da sua divergência com o monstro engendrado por Vieira de Carvalho, a OPART, integrando o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado, e o quadro de apoio às artes. Contudo, só se notou a sua existência na defesa da entrada em vigor de um acordo ortográfico que não só desrespeita elementares normas linguísticas como apenas serve a pujança agressiva das indústrias culturais brasileiras, e não daquelas que ele próprio como ministro da Cultura português declara sua prioridade – como visão estratégica para o sector é a confusão.
 
Mais ainda: sendo notório que no governo há um ministro empenhado numa “política de gosto” pessoal, Manuel Pinho, o silencioso cede o campo ao outro: a que propósito é que o contracto com o arquitecto Paulo Mendes da Rocha para o novo Museu dos Coches foi sim assinado pelo Ministro da Economia? Seguramente já é admitido no próprio governo que o ministro da Cultura desapareceu no mistério que se adensa no Palácio da Ajuda. No governo, e na imprensa também, que depois de tão inflamados panegíricos guarda agora um cobarde silêncio sobre um ministro desaparecido.