Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

PortugALL SA, as colecções de Manuel Pinho - I

 

Tinham passados duas semanas* sobre a posse do Governo Sócrates, quando um deslumbrado Eduardo Prado Coelho nos fazia saber dos gostos d’O Coleccionador
 
Era de noite, estávamos ao pé do Pavilhão Chinês, naquilo a que se chama uma Loja de Conveniência. Formávamos um pequeno grupo, que comprava garrafas de água. Havia algumas pessoas que adquiriam chá, outros estavam sentados, conversavam, bebiam whisky, em certos casos, cerveja.
 
Na rua, havia gente que deambulava, algumas pessoas vinham do Príncipe Real.
 
Tínhamos algum receio dos que andavam nocturnamente junto às árvores e pareciam assumir dimensões ameaçadoras.
De súbito, encontrei o ministro da Economia.
 
Não se encontra todos os dias o ministro da Economia. Daí o meu espanto.
 
Como é que o vemos numa postura desportiva, descontraída como quem se passeia, com uma camisa e umas calças de quem saiu à rua, se deixou surpreender na primeira esquina? Olhou para mim e perguntou-me: "Conhece a minha colecção de fotografia?" Não, não conhecia. Então propôs-me que subisse ao apartamento onde morava.
 
Fomos a um quarto andar de uma casa extremamente sofisticada, com umas janelas extremamente bonitas que davam para a Rua da Escola Politécnica. Havia um quarto de crianças imensamente brincado, uma ampla mesa de casa de jantar, duas ou mais estantes. O apartamento era muito simples e ao mesmo tempo correspondia a um excelente gosto.
 
Já viu a minha jóia da coroa? Era um Man Ray. De Jeff Wall a Alfred Steiglitz e Gary Hill, havia nesta colecção o que há de melhor. A quem pertencia? A Manuel Pinho. Não eram só fotografias belíssimas, organizadas no sentido da beleza, mas no da força, da originalidade, da modernidade, da energia. Eram também fotografias iluminadas. E era sobretudo uma biblioteca de primeira qualidade.
 
Manuel Pinho não se limitava a mostrar, tinha um manifesto orgulho na colecção que reunira, e que gostava de exibir com a alegria de uma verdadeira criança. Não é costume um ministro da Economia gostar de fotografia, gostar de mostrar fotografia.
Não é habitual ter tantos livros. Perguntei-lhe se preferia fotografia à economia.
 
Como misturar coisas tão diferentes? A economia é da ordem do que se acumula: o útil, o instrumental, o capitalizável. A fotografia é outra coisa: o profundamente superficial, o sentido nómada, as coisas que se perdem e não fazem sentido.
 
Que Manuel Pinho consiga jogar nos dois campos deixa-nos surpresos. Parece que Luís Campos e Cunha também colecciona. Ainda bem. Isso quer dizer que há valores que ainda não foram esquecidos.
 
Talvez o socialismo seja hoje isto mesmo. Por outras palavras, colocar uma fotografia no meio de um processo de produtividade. Ou deixar que o que se perde se não perca e preencha as nossas vidas.
 
 
“Público”, 1-4-2005
 
 
Especialmente apreciável no panegírico era o devaneio lírico-político: “Talvez o socialismo seja hoje isto mesmo. Por outras palavras, colocar uma fotografia no meio de um processo de produtividade. Ou deixar que o que se perde se não perca e preencha as nossas vidas”.
 
Entretanto, e para ser rigoroso, uma ligeira correcção, já que fui casualmente testemunha de parte da cena: * o encontro ocorreu sim na noite anterior à tomada de posse do governo, mas o ilustre publicista terá por certo entendido que dava uma outra “patine”  relatar que encontrara, como “não se encontra todos os dias o ministro da Economia - daí o meu espanto”, redobrado da descoberta do coleccionador.