...a Karlheinz Stockhausen
A Karlheinz Stockhausen (22/08/28 – 05/12/07) devo um dos choques mais decisivos da minha vida, mesmo determinante: no princípio dos anos 70, a descoberta de Momente (61-64) tornou evidente que a música me interessava a sério, que era algo que eu queria estudar mais aprofundamente. Não se tratava, como até então, da regularidade de um convívio com o reportório clássico – foi a partir da música contemporânea, a partir dessa obra extraordinária, que se me reorganizaram as perspectivas e o desejo do aprofundamento.
Em Junho de 1972, num caso então ainda pouco frequente de “sintonização” com a actualidade da criação musical, Alfons e Aloys Konstarsky vieram à Gulbenkian interpretar Mantra para dois pianos (70), uma peça surpreendente porque no fundo construída numa perspectiva horizontal, de sequência no tempo, do que em termos tradicionais é “a melodia”.
Em retrospectiva, e sem prejuízo de até poder apreciar pontualmente algumas peças posteriores, penso que Mantra foi mesmo a derradeira obra decisiva de Stockhausen, antes da sua cosmogenia o fazer embarcar na desmesura do ciclo Licht/Luz, com sete obras correspondentes a cada um dos sete dias da semana (e da “Criação”), tendo embarcado mais recentemente num outro e mais “modesto” ciclo, Klang/Som, que iria corresponder às 24 horas do dia (Natürliche Dauern / Durações Naturais, para piano, nº 16-21 e 24, encomenda da Gulbenkian, tinha tido a 1ª audição absoluta no passado dia 17 de Julho, no concerto de encerramento das comemorações do 50º aniversário).
A ambição desmesurada do demiurgo de ultrapassar a Tetralogia de Wagner (uma qualquer tentativa de estabelecer esse paralelismo era coisa “interdita” de se lhe colocar), a adoração “xamânica” que suscitava, a começar pela tribo que em torno dele trabalhava e vivia, "derrapagens" como a inqualificável e depois a modos que "rectificada" proclamação de que o 11 de Setembro teria sido "a maior obra de arte de sempre", e – sejamos claros – a realização visual de “kitsch” das diversas peças e obras de Licht, por ele próprio concebida, tudo isso afinal tinha um terrível aspecto também trágico, o do artista que queria moldar o mundo à sua imagem, o que sendo especificamente o seu caso, não deixa – ou não deverá deixar – de suscitar uma reflexão mais ampla.
Mas isso também não desmente a invenção incrívelmente prodigiosa de quase 20 anos, de 1951 ( Kreuzpiel) a 1970 ( Mantra), a incessante aventura e a fertilidade dos horizontes abertos num percurso ímpar e de absoluta genialidade (sim, genialidade), do serialismo integral e da electrónica à espacialização, à “momente-form” na exploração das virtualidades dos momentos singulares ou à música intuitiva e a ritualização.
Peças como Kontra-Punkte, Zeitmasze, Gesang der Jünglinge, Kontakte, Gruppen, Carré, as Klavierstücke I-XI, Momente, Hymnen, Stimmung ou Mantra são magistrais, siderantes mesmo algumas delas. Poucos, mas muito poucos compositores, foram de um tal rasgo.
Tinha há pouco colocado em linha um texto em que se inscreve também o nome de Stockhausen quando soube da sua morte. Mas que discuta concepções de música contemporânea, que nesta página os primeiros textos de concreta crítica sejam de música contemporânea, tal como foram sobre música contemporânea as minhas primeiras críticas em jornal, toda essa inscrição axial decorre ainda do que antes do mais descobri com Stockhausen e com Momente.
Por todas as razões, pessoais e gerais, e não escamoteando a perplexidade perante o sistema adoratório que em torno de si Karlheinz Stockhausen ergueu, só posso reafirmar o reconhecimento grato por um ímpar descobridor dos universos sonoros.
Sim, reconhecido...