O dom de Grüber (1941-2008)
Era um homem barbudo, imenso e imponente, um encenador gigantesco que poderemos também recordar – numa rara aparição cinematográfica – como Hans, o “clochard” num filme de culto, Les Amants du Pont-Neuf de Leos Carax. Era de algum modo um “monstro sagrado”, severo e secreto mas adorado pelos actores. Jeanne Moreau, a qual, note-se bem, depois dos seus inícios teatrais com Jean Vilar, trabalhou com uma lista ímpar de realizadores cinematográficos (Malle, Truffaut, Demy, Buñuel, Renoir, Antonioni, Losey, Fassbinder), dizia dele, Klaus Michael Grüber (1941-2008), que apenas o podia comparar a Orson Welles.
Grüber/Moreau – como me lembro dessa noite de Novembro de 1986, depois de uma jornada de greve que tornara Paris caótica, da estreia no Thêatre des Bouffes-du-Nord (a “casa” de Peter Brook) de Le Récit de la Servante Zerline. Ao contrário do se possa supor por uma cópia que posteriormente foi feita em Portugal, La Suivante Zerline não é um texto teatral mas um capítulo de Os Sonâmbulos de Herman Broch que Grüber fez teatro para Moreau. E eu a lembrar-me dessa “première” em que, creio bem, todos ficámos rendidos, e um “todos” em que se incluíam, lembro-me bem, um Alain Resnais, realizador que tanto gosta de actores, e um Robert Bresson, que supunhamos não gostar de actores e de teatro.
Foi um desses raros, raríssimos momentos, em que não se estava apenas a descobrir um espectáculo novo, mas era como se com esse espectáculo estivéssemos ali privilegiadamente a assistir, neófitos, à descoberta do teatro.
Klaus Michael Grüber morreu na noite de domingo em Belle-Île-en-Mer na Bretanha para onde se tinha retirado, como um antigo filósofo, qual Empedócles ou Hölderlin refugiado na sua torre mas em clara lucidez, para onde se tinha retirado escolhendo assim o local da sua morte. E os amigos foram uma última vez vê-lo, Bruno Ganz vindo de Zurique, Peter Stein de Roma, Luc Bondy de Viena.
Leio no obituário do “Le Monde” o testemunho de Bondy: “Quando o fui ver, na semana passada, disse-me que nunca tinha sido tão feliz, que era como a graça”. “A graça”? Só posso pensar no “dom”, que é dádiva também, a dádiva dos actores e do teatro. Klaus Michael Grüber era um asceta e um homem de uma sabedoria muito antiga e também um homem de dom.
Mas Grüber era igualmente um alemão nascido da guerra, um desses, como Fassbinder ou Peter Stein, que em si transportaram a memória dolorosa de serem filhos de pais cúmplices.
Grüber trabalhara com Strehler e foi no Piccolo Teatro de Milano que se estreou com Santa Joana dos Matadouros de Brecht. Mas foi depois em Bremen que ocorreu o encontro fundamental: ele, Peter Stein, Bruno Granz, Edith Clever, Jutta Lampe, Otto Sander, a “troupe” que em breve estaria em Berlim-Ocidental, perto do Muro no bairro de Kreuzberg, encetando essa aventura maior do teatro europeu que foi a “Schaubühne am Halleschen Ufer”.
Releio agora palavras de Grüber de 1976, e se de novo me recordo dessa Berlim, acho sobretudo que são palavras que ressoaram ao longo da sua trajectória criativa:
“A cidade é uma ilha em que a actividade industrial está em recessão, e criou-se uma vida artificial para reter a população. Investe-se na cultura e nós tiramos partido disso. Estamos num ponto nevrálgico da Alemanha em que tudo é mais claro. Noutros locais as tensões podem ser dissimuladas sob a égide de uma planificação social-democrata, mas em Berlim são visíveis, concretizadas no próprio urbanismo. A separação de dois sistemas de sociedade toma a forma de um muro sob o qual não se pode fechar os olhos. Berlim é uma memória viva.
A Alemanha não tem a memória justa, os refluxos da Revolução Francesa marcaram-na, e é uma longa história de cemitérios e de carrascos, um tempo muito importante falsificado nos livros”
Fantasmas da História: Empedócles – Leitura de Hölderlin em 1975, uma Winterreise montada no Estádio Olímpico de Berlim de tão sinistras memórias em 77, mas também (outro espectáculo de vivíssimas recordações) A Morte de Danton de Büchner com André Wilms em Nanterre, em 1989, no bicentenário da Revolução Francesa.
Foi uma história alemã, mas uma aventura cimeira do teatro europeu, lição apreendida em França por Jean-Pierre Vincent e Jean Jourdheuil e da qual, designadamente pela intermediação de Jourdheuil, as marcas chegariam a Portugal, à Cornucópia – sendo que o Anfitrião de Kleist foi a única encenação de Grüber por cá vista, em Maio de 1992, a primeira vez que a Schaubühne veio a Portugal.
Nos fantasmas da História da Alemanha Wagner não podia deixar de figurar. Como agora se sabe Peter Stein tinha sido o primeiro encenador pressentido para a Tetralogia do Centenário em Bayreuth – mas Bayreuth era um local demasiado amargo para estes filhos da guerra e da cumplicidade com o nazismo. Essa viria a ser a Tetralogia de Chéreau/Boulez, enquanto no caminho exactamente inverso Stein e Grüber rumavam à Ópera de Paris – projecto abortado depois de Stein encenar O Ouro do Reno e Grüber A Valquíria.
Wagner viria de facto a inscrever-se plenamente no percurso de Grüber mas anos depois com um assombroso Parsifal em Amesterdão (e produção apresentada depois em vários outros teatros) e depois um Tristão e Isolda em Salzburgo.
Coube aliás a Grüber, com Cláudio Abbado a dirigir, abrir a era-Mortier (ou, dito de outro modo, a era pós-Karajan) em Salzburgo em 1992 com, escolha nada inocente, as Recordações da Casa dos Mortos de Janácek, espectáculo a que retornaria aliás em 2005, no ano seguinte a sua derradeira encenação sendo o Boris Godounov de Mussorgsky (como o espectáculo de Salzburgo foi teledifundido continuo esperançado que um dia possa aparecer o dvd).
“Hèlas pour moi”, um dos espectáculos que não vi foi o tríptico Stravinski, Falla, Schönberg, Renard/El Retablo de Maese Pedro/Erwarturng montado com Boulez em Aix-en-Provence em 2005, no Verão da greve dos intermitentes do espectáculo – e de facto houve então uma única representação.
Mas em Aix ainda lembro-me antes de um diálogo com Mireille Delunsch, com a cantora fascinada a explicar como a sua concepção de Poppea na Incoronazione de Monteverdi (Von Otter era Nerone) mudara por completo pelo trabalho com Grüber.
E agora vou buscar essa Incoronazione di Poppea, e o outro Monteverdi, superlativamente admirável, o Ritorno de Ulisse in Patria em Zurique com Harnoncourt.
Monteverdi, como poderia ser Hölderlin – autores para um homem de teatro de antiquíssimo saber e tão aguda noção da História, esse homem de dom, mestre como poucos, Klaus Michael Grüber (04/06/41-22/06/08).