Pinho Vargas x 3 - I
António Pinho Vargas
Six Portraits of Pain, Acting Out, Graffiti (Just Forms)
Anssi Kartunnen, Miguel Henriques, Elizabeth Davis
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Franck Ollu, Martin André, Baldur Bronnimann
Numérica
O compositor, sujeito e historicidade
A personalidade artística de António Pinho Vargas é singular por uma dupla presença no campo musical: pianista, compositor e jazzman por um lado, compositor contemporâneo por outro.
A singularidade radicaliza-se tanto mais quanto estas vertentes aparecem inteiramente dissociados: não só Pinho Vargas não se tem mostrado de modo nenhum adepto de qualquer modo de crossover – tendência hoje cada vez mais insistente em autores que integram nos seus processos composicionais os sedimentos de uma escuta conceptualmente mais ampla -, como também, e apesar do treino como pianista, inclusive académico, não é intérprete das suas próprias composições eruditas.
O que poderia à primeira vista parecer um caso bifacetado, para não dizer mesmo artisticamente de dupla personalidade, tem contudo outras implicações, a saber, uma aguda percepção teórica da historicidade e das diferentes inscrições sociais de práticas e formas musicais, e uma não menos aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical.
A noção de “pulsão”, ou mesmo de “pulsação” (no que isso supõe mesmo de uma relação imediata com o investimento físico e emotivo e com as interacções) tão importante no jazz, o beat, seja de periodicidades regulares ou irregulares, manifesta-se assim também como fulcral no seu trabalho de compositor contemporâneo. Ocorre assim falar a propósito da sua poética composicional de dispositivos pulsionais bem como, mais latamente, de uma problematização do sentir.
Intuitivamente também que o tenha sido, Pinho Vargas não deixou de absorver ao seu modo particular a influência de compositores que, tendo sido eles próprios pianistas, elaboraram uma escrita para o instrumento mais vincadamente também percutiva, motriz e “organicista” (nesse sentido físico e pulsional) como Prokofiev e sobretudo Bártok - dado que aflora especialmente em Acting Out.
Retomando as inscrições iniciais de um discurso já autónomo que são Monodia – quasi um requiem e Noturno/Diurno, não menos curial é ter presente o que o autor escreveu sobre a primeira dessas peças: “Uso uma simples sucessão melódica e um gesto musical lírico e consonante – mas que prazer nestas palavras – como ponto de partida da peça. Ela é excessiva, tensa, às vezes quase insuportável. Escrevi uma pequena teoria do grito mas perdi o papel”. O gesto da liberdade, ou antes, da emancipação – e da emancipação enquanto constituição de um sujeito autor de discurso próprio – assinala-se na associação “lírico e consonante – prazer”, o segundo termo introduzindo assim também nos dispositivos pulsionais um princípio, o princípio do prazer precisamente, enquanto por outro lado se assinala “tensa[ão]/grito”.
É particularmente interessante notar que essas duas obras matriciais, que aliás têm relações muito próximas, evocam de modo quase irresistível o primeiro Schönberg, ainda proto-expressionista, e o do sexteto Noite Transfigurada e do Quarteto nº2.
Sabendo-se como Schönberg representou e representa o paradigma do que Richard Taruskin designou por “falácia poiética”, isto é, uma auto-legitimação do artista pela qual o mais importante da obra reside na sua própria feitura, nas marcas da autoria, concepção correlativa à hegelinização da história da música e dos atributos dos “heróis do seu devir progressivo” (e tanto mais “heróicos” quanto enfrentando hostilidade de recepção pública, como tão em particular no caso de Arnold Schönberg), uma tal aproximação numa perspectiva pós-moderna poderá ser surpreendente.
Mas, justamente, falamos de um Schönberg de algum modo ante-schoenberguiano, em termos de sistema e profetismo, em que particularmente se assinalam a “tensão/grito”, o proto-expressionismo mas seguramente em qualquer caso uma marcada expressão. A analogia profunda de Pinho Vargas com essa matriz é essa de expressão, nos termos de uma “stimmung” e mesmo de uma angústia (o grito), de uma “angst”.
Parafraseando e invertendo os termos do conhecido livro de Harold Bloom A Angústia da Influência, dir-se-á que de modo recorrente se encontra disseminada nas obras de Pinho Vargas – e certamente nas três incluídas neste disco, mesmo que por modos muito diversos – uma “influência da angústia”, como inerente ao sujeito, na sua personalidade e historicidade.
Daí também que nestas três obras, mais marcadamente – como é óbvio – nas duas que implicam explicitamente solistas, Acting Out e Six Portrait of Pain, disseminadamente em Graffiti [Just Forms] em particulares destaques instrumentais ao longo das suas secções, haja “dramatis personae”.
Não se trata apenas de um problema de estrutura, mas ainda de uma questão de sujeito, de sujeito do discurso, que se diria mesmo ontológica, com esta ressalva de não pouca importância: como está implicado no uso de um termo do vocabulário da psicanálise para título de uma peça, Acting Out, o indivíduo já é de si uma “dramatis persona” e um espaço de conflitualidade e tensões.
Se atentarmos à estrutura da obra, com as suas secções de “antecedentes” e “respostas”, e ao próprio jogo entre o piano e a percussão e destes com a orquestra, compreender-se-á a referência psicanalítica “na sua conexão com a transferência [do recalcado]".
Numa fase mais recente, Pinho Vargas incluiu na apresentação das suas obras um texto sobre “a melancolia física do artista”, com uma epígrafe colhida em Peter Sloterderjik: “não há apenas aprendizagem positivas...ao lado há também um verdadeiro curso de decepções”.
Esse texto não diz respeito à condição da pessoa, mas sim do “artista”. Por certo que, nessa afirmada consciência, nesse “curso de decepções”, ocorrem condições concretas – da percepção de “uma inutilidade da arte e da música no quadro do espaço tempo em que vivo”, afirma.
Six Portraits of Pain, para violoncelo e largo conjunto instrumental, encomenda da Casa da Música para a sua abertura pública, é a obra dessa inquietação, dessa dor tornada constituítiva à melancolia do artista (“Esta dor constitui-nos, esta dor é agora o nosso estado de espírito” – Thomas Bernhard). Mas não menos é a afirmação da possibilidade de, pela “coisa-em-si”, pela obra, ter uma experiência estética que também exista autonomamente do tempo e espaço das suas condições materiais de gestação, a possibilidade de uma suspensão e uma “ucronia”, para além do tempo.
Com os textos de outros, em diálogo “ucrónico” com eles, o que Pinho Vargas delineia é uma possibilidade de reinscrição do sujeito como matéria da própria música. É um trilho pessoal e no entanto próximo do de outros, em reconsideração dos paradigmas de inscrição do sujeito.
Não é fortuito que o compositor esclareça que o primeiro texto que escolheu e “de certo modo, o mais importante porque (me) lançou para a questão fundamental da liberdade de pensamento, da arte, da política e das diversas repressões que marcam as suas histórias” tenha sido colhido em A Filosofia Crítica de Kant, obra em que Deleuze nos situa na “revolução coperniciana” do filósofo alemão, a faculdade de conhecer como legislador, o primado do sujeito, a sua emancipação: Kant, pois, em vez de Hegel – e da hegelinização da história da música.
Six Portraits of Pain é um novo modo de ”acting”, introspectivo, não sem paralelos e também elucidativas dissemelhanças com o de Acting Out.
A obra não é apenas um diálogo entre o violoncelo e o conjunto mas tem também diversas “dramatis personae” que se destacam, sendo de realce o “concertino” que se forma entre o violoncelo e dois violinos.
A sonoridade grave e nobre do violoncelo, como também o uso do instrumento em toda a sua extensão, são particularmente vibrantes no “macro-retrato”, o percurso em que o sujeito se delineia afinal. E poderá parecer surpreendente, mas não tanto na tentativa de leitura que aqui se ensaia, que de novo surja nesta obra a reminiscência da Noite Transfigurada de Schönberg.
A estrutura de Graffiti [Just Forms] é diferente pela marcante presença de um acorde de base, qual risco inicial, impulsivo (ou, ainda, pulsional), do próprio gesto de grafitar. O “rasgo” desse acorde-gesto (“rasgo” como noutro momento “grito”) traz consigo os elementos potenciadores da forte saturação da obra. Sucede isso também porque, em analogia ainda com o gesto de grafitar, o compositor usa materiais de base relativamente esquemáticos, ou melhor dizendo, de “traço grosso”, para ir introduzindo outras possibilidades, de rupturas abruptas, de timbre, de registo, de sobreposições.
Depois de Acting Out, com as suas ressonâncias psicanalíticas, e do “acting in[ner]” melancólico de Six Portaits of Pain, Graffiti [Just Forms] é uma possibilidade de “re-enactment” tentando delinear uma mais lata homologia, considerando não apenas a historicidade dos materiais musicais mas também as condicionantes sociológicas de formulação de discurso no quadro concreto de uma situação semi-periférica como a de Portugal, com todas as suas limitações estruturais, que fazem de algum modo que as possibilidades dessa formulação possam ser Just Forms [Graffitis].
Augusto M. Seabra
Extractos do texto escrito para o livrete desde disco.