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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Tristão - I

 

 

 

WAGNER
Tristão e Isolda
Com Siegrfried Jerusalém, Waltraud Meier
Encenação de Heiner Müller
Direcção de Daniel Barenboim
Produção do Festival de Bayreuth
2 dvds DG/Universal
 
 
A prática cada vez mais corrente de recurso á edição de discos “live” permite-nos com frequência reavivar também momentos privilegiados da memória do espectador. Por definição, é o “live” a base da edição em dvd de óperas, e tanto mais ocorre então o reavivar de memórias, com a possibilidade acrescida de transmitir a outros os dados da memória e do reencontro.
 
Eis agora editada uma minha muito grata memória, o Tristão e Isolda encenado por Heiner Müller, a última grande recordação que guardo do Festival de Bayreuth.
 
Para já, a rememoração, com a crítica então publicada.
 
 
 ISOLDA ENTRE RUÍNAS
 
 
 
À saída, terminada a representação, os comentários incidiam sobretudo na encenação. O tom, em geral de desaprovação, era partilhado por um espectador, que no entanto acrescentava: “mas não pateei”. Não lhe tinha faltado o desejo, percebia-se, mas prudentemente recordou-se que “também o Anel de Chéreau foi tão pateado e agora é considerado um clássico”. Este ano o Festival de Bayreuth é “ohne Ring” sem a tetralogia O Anel do Nibelungo. Para os mais devotos wagnerianos, será sempre a experiência de uma falta. Pior ainda, a nova encenação deste ano de Tristão e Isolda foi confiada a Heiner Müller, no passado de todo alheio a Wagner e até, supremo horror!, terão pensado alguns, vindo de uma Alemanha que foi “de Leste”.
 
A pateada era previsível, mas, como prudentemente sugeria o tal espectador, tradição de pateadas não falta em Bayreuth, muitas vezes para com produções depois recordadas como marcos da história do festival, caso da tal Tetralogia do centenário, a de Chéreau e de Boulez, objecto de um clamoroso protesto na estreia para vir a ser saudada com uma hora de aplausos quando da despedida, quatro anos volvidos. A inovação provoca resistências, mas na continuidade anual dos festivais gera uma nova tradição.
 
Era justamente a mesma equipa Chéreau/Boulez, que se esperava para um novo Tristão, os rumores tendo mesmo chegado a apontar para 1991. Afinal foi dois anos mais tarde, o maestro e depois o encenador tendo-se apartado do compromisso que veio a recair em relações próximas, Müller (apontado como autor, com Boulez, de uma ópera a vir) e Barenboim (com o qual Chéreau já trabalhou num Wozzeck e que reencontrará no ano próximo em Salzburgo para o Don Giovanni). (*)
 
Daniel Barenboim é o elemento da continuidade, já que se estreou em Bayreuth há 12 anos, por coincidência numa situação paralela, um ano “ohne Ring” (terminado o de Chéreau/Boulez) em que a nova produção foi o Tristão (**) que dirigiu, sendo depois responsável musical de um outro Ring, o que no ano passado se completou. Heiner Müller é a novidade, e tanto mais quanto o dramaturgo pouco se tem dedicado à encenação, a não ser dos seus próprios textos, e nunca antes tinha experimentado a ópera. Semi-novidade é o elenco, com alguns dos cantores mais presentes em recentes edições do festival, mas novos vindos a estes papéis como os protagonistas, Siegfried Jerusalem e Waltraud Meier, Tristão e Isolda.
 
Ansiedade e geometria
 
Não por acaso, a pateada seria menor no final que após o Acto II, quando era máxima a desorientação dos espectadores habituados à imagem romântica da noite de amor de Tristão e Isolda. Tão resolutas manifestações a dois terços do caminho traduzem a decepção por não se encontrar o já conhecido, que para se compreender a novidade é necessário  esperar pelo fim do trajecto.
 
 O encontro Wagner/Müller era intrigante. O resultado é caracteristicamente “mülleriano”. O autor de A Missão, de Morte na Germânia ou de Quarteto de novo imaginou em cena, por interposto Wagner, as ruínas de uma expectativa, um velho mundo em destroços mas ainda suficientemente opressor para fazer desmoronar a possibilidade de uma outra vida. Dois conceitos são fulcrais ao entendimento de Müller: “angst” e “geometria”.
 
O mundo em que habitam Tristão e Isolda é fechado, claustrofóbico. O cenário básico de Erich Wonder é um cubo, rigorosamente ordenado no Acto I com o espaço de Isolda delimitado ao nível inferior, no Acto II o encontro dos amantes ocorrendo entre referências militarizadas, com centenas de couraças depositadas, formando quadrados e triângulos. As alterações neste espaço são mínimas, apenas as que decorrem de telas (cada acto abre com um ecrã branco) e da prodigiosa luminotecnia de Manfred Voss, de dominante vermelha no Acto I e azul no II.
 
Elemento ainda mais intrigante nesta equipa é Yohji Yamamoto. O costureiro japonês desenhou figurinos negros, o carácter marcial e frio pretendido por Müller sendo reforçado por enigmáticas armações que as personagens trazem aos ombros, próteses impostas por uma ordem, das quais Tristão e Isolda se libertam quando, bebido o filtro mágico pela primeira vez, se contemplam em êxtase, instaurando a desordem.
 
O filtro, justamente. Brangânia mudou-o, dando a beber o filtro do amor em vez do da expiação e morte. A troca determina as subsequentes peripécias dramáticas, diferindo o momento da morte, mas o dado fundamental que Müller retém é o recurso de Isolda a um elemento mágico, de uma outra ordem, e a determinação com a qual ela o compartilha com Tristão. Ela é a figura central, o corpo em “angst”, inquieto, ansioso, que detém o recurso mágico, um instrumento da vingança. A troca dos filtros abrirá afinal a demonstração de que a ânsia amorosa não pode ser consumada naquele mundo e, se modifica as vias da expiação, não deixará de vir a propiciar o triunfo de Isolda, a sua vingança.
 
A perdição consumada
 
Paradoxal vingança , pois que sobre Trsitão, que a tinha enganado, Isolda triunfará precisamente porque lhe suscita a paixão, o sofrimento e a expiação.
 
No Acto III, o domínio de Tristão é um castelo em ruínas. Do cimento das paredes (esse cimento característico na obra de Müller) cai o estuque, os destroços acumulam-se. E é então que Siegfried Jerusalem, tardiamente vindo a Tristão, supera os limites evidenciados no Acto II, convocando todas as suas capacidades, desafiando o corpo que Müller quis prematuramente envelhecido, numa grande cena de sofrimento e delírio. Mas o mais surpreendente é a chegada de Isolda. À imagem tradicional a morte de amor, qual orgasmo “post mortem”, substitui-se majestaticamente uma figura erguida à frente da cena e o enunciado final da perdição: se lhe foi impossível consumar a paixão naquele mundo, Isolda vingou-se trazendo a ruína e redimindo Tristão. É ela, prova então feita, o centro do drama.
 
Corpo e voz da mais admirável interpretação dos anais de Bayreuth nos últimos anos, a de Kundry no Parsifal, Waltraud Meier corria risco considerável como Isolda, em temerária passagem de “mezzo” a soprano. Nos agudos, ou no balbuciar deles, se ouve o risco, mas a determinação, ansiedade e erotismo da sua presença tornam esplendorosa esta Isolda que consigo arrasta Tristão — o protagonismo sendo aliás reforçado pelos limites do Mark de John Tomlinson e da Brangânia Uta Priew, aos quais se preferirá o Kurwenal de Falk Struckman e em duplo desempenho como Melot e marinheiro, de uma das raras revelações recentes de Bayreuth, Pol Elming.
 
Na sua presença continuada Daniel Barenboim confirma um equivoco que está a ser sistemático em Bayreuth, na escolha dos directores musicais. No seu Tristão, como no Anel, há acasionais momentos interessantes, sobretudo os mais líricos e os “pianissimi”. Mas Barenboim não domina os grandes arcos wagnerianos e as sonoridades que ele obtém são frequentemente ásperas. O seu mérito, inegável, é o de ter sido “o garante” desta equipa, a ele se tendo reunido de novo o par Jerusalem/Meier (que dirigiu já como “Parsifal” e Kundry , recem-vindo) , Heiner Müller, aquele por quem o escândalo chegou mas que afinal veio trazer a Bayreuth uma inteligência cénica que não se encontra noutras produções.
   
Mesmo que, talvez por menor experiência, falte ainda a Müller concretizar melhor a proposta, designadamente no trabalho com os actores/cantores, a depuração quase minimal ou as luminosidades do seu trabalho não deixam de invocar o exemplo pioneiro de Wieland Wagner. E se Müller e um Bob Wilson (noutras paragens encenador de Parsifal — para o qual, em Bayreuth, foi vetado pelo maestro James Levine — e do Lohengrin) (***) fossem afinal os prossecutores desse momento de inovação a que, por obra de Wieland Wagner, chamou “nova Bayreuth”?
 
 
“Público”, 11-08-93
 
 
(*) Como se sabe, Patrice Chéreau e Pierre Boulez reencontraram-se no ano passado numa produção de Recordações da Casa dos Mortos de Janácek, recentemente editado em video e de que aqui em breve falarei. Também no ano passado, em Dezembro, Patrice Chéreau encenou por fim o Tristão, justamente com direcção de Barenboim, na abertura da temporada do Scala. O Wozzeck de Chéreau/Barenboim, que já havia sido editado em dvd, acaba de ser reeditado, e esperemos que seja também lançado em Portugal.
 
 
(**) Essa outra produção de Tristão e Isolda, encenada por Jean-Pierre Ponelle, e com René Kollo e Johanna Meier, foi também editada em dvd, e iguralmente a abordarei em breve
 
 
(***) Entretanto Wilson encenou O Anel, co-produção da Ópera de Zurique e do Châtelet.