Uma ideia de "peregrinação" (Leonhardt - I)
Gustav Leonhardt no papel de Johann Sebastian Bach em
“A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach” de Jean-Marie Straub
Quanto Richard Wagner finalmente concretizou o seu projecto dramatúrgico em Bayreuth, uma nova noção de festividade surgiu, e de toda a Europa passaram a aí acorrer os “peregrinos” fazendo Le voyage artistique à Bayreuth, nos termos do título do relato de Albert de Lavignac.
Sem dúvida que os principais festivais têm em princípio possibilidades de excepção – justamente por serem “de excepção”, a regra sendo as temporadas regulares – mas pela sua própria massificação perdem muita desse conceito “cultual” ou ritual de festa e festividade artística; nesse sentido, para ter noção do que são de facto festivais como ambientes “de excepção” à antes que rumar para Avignon ou Edimburgo, festivais predominantemente de teatro, ainda que o segundo, conhecido sobretudo naquela qualidade, seja ainda mais “único” pela sua interdisciplinaridade, teatro, música, dança e cinema.
O “turismo cultural” – porque é disso que agora se trata gera a lógica do “marketing” e a esse respeito nada é mais nesta nossa sociedade hiper-mediatizada do que prenunciar-se um escândalo – e não é que, por exemplo, e exemplo do próprio dia de hoje, já se anuncia que o Don Giovanni encenado por Claus Guth em Salzburgo vai ser um “escândalo”?!
Que nos fiquem registos de festivais é precioso, que eles sejam audiovisuais sobretudo no caso da ópera tem toda a pertinência, mas não se venha travestir de “democratização” certos desses novos meios de difusão, como agora via Internet, que são os da banalização mercantil, longe de qualquer aura.
Acontece que – obsessão minha – ainda acho que a ideia artística e cultural de “peregrinação” é importante. Rilke e as Elegias foram-me razão de ir conhecer Duíno, como Svevo e Cláudio Magris me introduziram a Trieste, como Kafka me suscitou uma percepção de Praga (como a tanto outros Bernardo Soares lhes deu uma “imagem” de Lisboa, e lhes suscitou um desejo), como posso pacientemente entrar no Louvre para depois ir apressadamente contemplar de novo a Vitória de Samotrácia.
Há em Portugal um evento – feliz ou infelizmente não tão divulgado como se justificaria – que justifica esse conceito de “peregrinação”: o concerto, um e único, no programa anual do Festival de Música da Póvoa de Varzim que se realiza na Igreja Românica de São Pedro de Rates.
Este ano, amanhã às 21h45, há razão redobrada para a “peregrinação” e a expectativa: este ano o concerto é um recital de Gustav Leonhart, com 80 anos feitos a 30 de Maio, um músico de quem somos devedores como de muitos poucos, pelo modo como profundamente renovou os princípios interpretativos e a nossa percepção da música barroca, de Bach sobretudo – e se, como disse Nietzsche, “a vida sem música seria um erro”, sem Bach então seria ainda mais desesperançada.
Não há peça de Bach no programa de amanhã, mas Froberger e os mestres da escola cravística francesa, Louis Couperin, D’Anglebert, Gaspard Leroux e Rameau, são um reportório de eleição de um tal mestre.
Nesta era em que rareia a intensidade, hic et nunc, da aura da obra de arte, ir a São Pedro de Rates ouvir Gustav Leonhard, supremo músico e um dos expoentes do espírito europeu, neste ano em que se lhe prestam todas as homenagens, é ainda a possibilidade artística “cultual” de uma peregrinação.