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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Chahine, o alexandrino

 

 

Era um dos homens mais extraordinários que conheci, Youssef Chahine (25/01/1926-27/07/2008), egípcio, árabe, cristão, cidadão de Alexandria, do espaço mediterrânico e do mundo, de ascendência libanesa, síria e grega, francófilo, cineasta.
 
Há um ano, em Junho, morria o senegalês Sembesne Ousmane, o iniciador cinematográfico de um continente, a África Negra. “Yousef Chahine” é sintagma que se confunde com “cinema egípcio” e “cinema árabe”, mas sendo isso certo em termos de conhecimento e difusão internacional, há neste caso que ser prudente, até para melhor considerar a singularidade de Chahine.
 
Não só o Egipto é um país de há muito constituído (ao contrário de outros estados árabes) e com uma inequívoca cultura nacional, como também teve uma importante indústria cinematográfica, que durante décadas dominou o mundo árabe – e que agora, decadente, foi substituída pela expansão de “Bollywood”. Youssef Chahine, “Jo” como era conhecido, formou-se também nessa indústria. Se o seu é o nome que ocorre imediatamente, não se pode falar de “cinema egípcio” sem evocar Henry Barakat, Salah Abou Seif, Chahid Abdel Salam (autor de uma solitária obra-prima, raríssimo caso de evocação do Egipto da antiguidade, A Múmia), ou, entre os mais recentes, Yousry Nasrallah, que se formou aliás como assistente de Chahine, para apenas citar alguns.
 
Mas “Jo” Chahine é um caso diferente, por um lado porque formado no cosmopolitismo, por outro lado porque no seu cinema se cristalizou também a história recente do Egipto.
 
Parecerá até mesmo estranho que na sua trajectória se tenham sucedido o realismo de Estação Central, a esplêndida super-produção histórica pan-arabista que é Saladino, a apologia propagandística do nasserismo, da construção da Barragem de Assuão e dos laços egípcio-soviéticos em As Gentes e o Nilo, o lirismo de A Terra, a evocação histórica de Adieu Bonaparte, o amor declarado do melodrama e do musical americano em O Sexto Dia, a veia autobiográfica de Alexandria Porquê?, A Memória, Alexandria, Ainda e Sempre e Alexandria-New York, ou a apologia da tolerância em O Destino – mas em grande parte a sinuosidade dessa trajectória tem a ver com a história egípcia, do nacionalismo árabe de Nasser ao bloqueio subsequente à derrota face a Israel em 1967, e com, mais recentemente, o espectro do integrismo.
 
Em Alexandria Porquê? (1978) há, nomeadamente, duas histórias de amor, entre um muçulmano e uma judia, entre um soldado britânico e um jovem árabe – eis o que sugere bem não só a enorme coragem de Chahine e a sua estatura ética, como a sua abertura de pensamento em termos de convivência e orientações sexuais. Mais abertamente ainda, Alexandria Ainda e Sempre é o filme do desejo de um realizador, o próprio Chahine, pelo seu actor. Pelo meio, A Memória é um 8 ½, ou mais exactamente, sucedâneo do sucedâneo, um All That Jazz, em Chahine, reencenando a operação de coração a que fora submetido, ao longo da qual vai rememorando factos da sua vida e da história do país.
 
Sucedia-lhe, com efeito, por vezes, essa iconologia sobrecarregada, mesmo o “kitsch”. Mas havia também no seu cinema uma outra face, de leveza, que não deixa de se relacionar com a sua predilecção por dois actores-dançarinos, Fred Astaire e Gene Kelly. Em O Sexto Dia evoca-se O Pirata de Minelli – e no pendor para o musical e o melodrama e até no resvalo para o “kitsch” foi um carácter minelliano que se acentuou no seu cinema ao longo do tempo, contrastando com o realismo lírico de Estação Central e A Terra.
 
O Emigrado, que muito evidentemente era inspirado na história bíblica de José, valeu-lhe uma “fatwa” e o bloqueio da censura, para afinal se tornar, após ter sido permitido, no seu maior êxito nacional, tal como o seu filme de resposta a essas censuras, O Destino, inspirado na vida do filósofo Averrois foi o seu maior êxito internacional.
 
Este cosmopolita detestava acima de tudo os integrismos, Bush e os autocratas árabes, justamente por ser um cosmopolita e um adepto da convivência e das liberdades. Com Oum Kalsoum e Naguib Mahfouz foi um dos grandes nomes da cultura egípcia.
 
E Youssef Chahine foi um dos homens mais extraordinários que conheci.