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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

O momento fundador (Leonhardt - III)

 

 

 

 
Em 1979, Gustav Leonhardt apresentou-se pela primeira vez em Portugal, trazido pela Gulbenkian. Na altura, havia um único cravo segundo modelo de época, no Porto, propriedade de Maria de Lurdes Alves. Assim, a 3 de Maio, Leonhardt fez um recital de cravo no Ateneu Comercial do Porto, onde em “peregrinação” o fui ouvir, e no dia seguinte tocou no órgão da Sé de Lisboa. Retomo agora o texto que então publiquei, o que é também um contributo da a história da “música antiga” em Portugal.
 
 
 
E depois de Leonhardt?
 
 
 
“A sua aparência e a forma como se apresenta em palco são severas, mas a maneira como toca define-o como um cripto­-romântico" - nestes termos se referia a Leonhardt há alguns meses o crítico inglês John Duarte; “cripto-romântico" po­derá dar azo a alguma confusão, já que poucos músicos estarão como ele tão afastados (e mesmo em oposição) dos princípios român­ticos de interpretação; mas tam­bém poucos serão tão expressivos, terão uma tão notável capacidade de comunicar ao auditor as reais dimensões duma obra (e dai o uso daquela expressão). Considerar "secas" as interpretações de Leonhardt, como alguns ainda pretendem, não é senão revelador do cabotinismo conservador de quem faz tais apreciações.
 
No Porto, Leonhardt interpretou Suites de Peças de Jacques Duphly e Antoine Forqueray e a trans­crição para cravo da Partita em ré menor de Bach, num instrumento construido por Mendorf em 1975, tendo como modelo um Dulcken de 1745 (o cravo de Martin Skowronek com que Leonhardt tem gravado Bach. foi construído segundo o mesmo modelo); poderá chocar alguns constatar que destas três obras apenas a de Duphly foi originalmente escrita para o instrumento mas que não haja quaisquer dúvidas que a transcrição é, em abstracto, perfeitamente legítima - não conhecemos por exemplo trans­crições que Bach fez das suas próprias obras?
 
Do que duvido é que as Peças de Forqueray sejam das mais in­dicadas para isso - escritas para viola de gamba e baixo continuo, publicadas por Jean-Baptiste Antoine, filho do compositor e tal como ele "virtuose" do ins­trumento (a sua dificuldade era de tal ordem que na edição figuram indicações detalhadas das po­sições) foram esquecidas com o abandono da viola em favor do violoncelo, o que acarretou o eclipse do próprio compositor a quem uma das últimas referências é uma peça de Duphly chamada "La Forqueray",segundoos há­bitos franceses de designação (por exemplo Rameau e Forqueray compuseram cada um peças com o nome do outro, e uma das do segundo tem o nome de "La Portugaise"). No cravo, estas peças (Leonhardt interpretou algumas constantes da Suite V em dó menor) tornaram-se pouco contrastadas pelo carácter lu­thié (utilização constante do abafador) e por se desenvolverem quase exclusivamente nos graves.
 
As obras de Duphly e Bach, foram assim bem mais claras do estilo de Leonhardt. que po­deremos caracterizar por um toucher extremamente preciso, pela riqueza da articulação, pelo rigor rítmico em que uma pulsação rígida não obsta à prática de descontinuidades e de abandonos retidos mas controlados (criando a sensação de improvisações), pelo carácter arpejado e sobretudo por uma agógica que valoriza a expres­sividade de cada frase preservando a arquitectura fundamental da obra. Talvez que poucas peças possibilitem uma tão clara cons­tatação destas características como a grande Chacone da Partita de Bach. com que terminou (em extra ainda houve outra trans­criação bachiana, a Sarabanda da 3ª Suite para violoncelo) um prodigioso recital.
 
Se no órgão Leonhardt mantém as mesmas características fun­damentais, numa forma porventura menos clara, outro aspecto das suas interpretações é no entanto patente - em oposição às grandes massas sonoras das concepções românticas, Leonhardt segue uma via "linear", clarificadora das diversas "vozes". Mas, no caso concreto do recital na Sé de Lis­boa, é de lamentar que seguindo um estilo de programas que lhe é peculiar. (constituído por peças raramente interpretadas). Leo­nhardt não tenha incluído qual­quer obra de autores para cuja descoberta foi fun­damental, como Frescobaldi,  Froberger e Sweelinck; se assim ouvimos as duas obras de Kerll (com a de Purcell. os pontos altos do recital), dispensaríamos bem outras como a de Eberlin.
 
O êxito obtido, sobretudo a ovação sem precedentes que lhe foi tributada na Sé, terá sido a mais evidente demonstração da neces­sidade de continuar a programar Música Antiga; é particularmente necessário que se resolva a incrível situação de não existir um cravo barroco em Lisboa; é particular­mente necessário (mas para isso o cravo é fundamental) que depois deste marco fundamental que foram os recitais de Leonhardt. possamos ouvir agrupamentos dedicados à música barroca, que têm sido talvez os mais descurados entre nós -se exceptuarmos esses pioneiros (mas cujas concepções em apectos tão fundamentais como o vibrato e a articulação, são hoje criticáveis) que foram a Schola Cantorum Basiliensis e August Weizinger, apenas ouvimos o Collegium Aureum (já depois dos seus tempos áureos com Leonhardt e os Kuijken) e a Musica de Camera de Amesterdão, com Ton Koopman.
 
Aguardemos que os Segréis de Lisboa passem a abordar também esse campo, como foi prenunciado pela sua interpretação da ária da Música do Orfeo de Monteverdi. e é possibilitado pela sua recente obtenção de violinos barrocos, e entretanto aqui fica uma pequena lista de espera: Nikolaus Har­noncourt e o Concentus Musius Wien, Jaap Schröder e o Concerto Amsterdam, o Quadro Amsterdam (Frans Brüggen, Leonhardt, Schroder e Anner Bylsma), Sigis­wald, Wieland e Barthold Kuijken, Trevor Pinnock e The English Concert, Cristopher Hogwood e The Academy of Ancient Music. Para quando?
 
 
Expresso 12-05-79
 
 
 
Como fica claro, a vinda de uma das figuras tutelares dos novos conceitos interpretativos de música barroca tornou-se efectivamente num momento fundador. Na temporada seguinte, e de resto por uma sugestão minha à então subdirectora do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian, Maria Fernanda Cidrais (que também me importa evocar pelo seu tão importante contributo de programação), vieram os Kuijken, que interpretaram Trios de Haydn. Logo depois, no início da temporada 80/81 começaram as Jornadas de Música Antiga.
 
Mas para se ter em conta o provincianismo que havia, acrescento que no “Comércio do Porto” foi publicada uma “crítica” dizendo da surpresa por a sala do Ateneu se ter enchido para ouvir um “intérprete desconhecido” (!), e que para mais se dedicava ao cravo, “esse instrumento arqueológico” (!!).