Em nome de Bach (Leonhardt - IV)
"A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach”.
Além dos discos, houve outro registo que foi muito importante para o dar a conhecer, A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach, filme de Jean-Marie Straub. Interpretar Bach nesse filme foi uma experiência importante na sua vida?
Bem, isso seria exagerado. Estava curioso de saber como se fazem filmes e esse caso foi excepcional, porque a música foi gravada na própria filmagem. Straub viu isso muito bem, é um elemento essencial. Mas nunca me senti como Bach; fui escolhido porque em parte fazia a mesma coisa que Bach, tocava cravo e órgão e dirigia.
Quando decidiu que a música era a sua vocação?
Bah!, isso é uma ideia romântica, mas acho que foi por volta dos 15, 16 anos.oo
Mas há um processo muito concreto de escolher um instrumento.
Acho que foi sobretudo Bach que me atraiu para a música e com Bach veio o cravo e o órgão. Depois vieram todos os outros compositores do tempo de Bach e de antes, e alguns, poucos, de depois. O meu pai era vice-presidente da Sociedade Bach na Holanda e levava-me aos ensaios, quando eu teria uns 9 ou 10 anos, ou a ouvir as Paixões.
Houve um momento em que você, e outros implicados no mesmo processo, tiveram a noção de que precisavam de procurar os instrumentos certos, "de época". Quando é que isso se tornou óbvio?
De facto, mais tarde do que deveria. Envergonha-me dizer que as primeiras gravações que fiz, em meados dos anos 50, da Arte da Fuga e das Variações Goldberg foram feitas com maus instrumentos, historicamente de todo inadequados. Foi só no final dos anos 50 que tive a revelação de cravos antigos - "Deus do Céu, isto é que é um cravo!", a maneira como soavam. Em Basileia, estudávamos tudo sobre os ornamentos e temperamentos, tudo muito científico, mas esquecíamo-nos de como soar - muito estranho.
O grande projecto que deu impacto ao movimento foi a gravação integral das Cantatas de Igreja de Bach dirigidas por si e Harnoncourt. Como as cantatas foram escritas para específicas ocasiões litúrgicas, alguma vez pensou que poderiam estar a fazer uma "profanação" dos propósitos?
Não. Claro que, se em Novembro se gravava uma cantata para a Páscoa, se tinha que pensar em termos da Páscoa. Mas, por outro lado, ficámos muito menos constrangidos por não ter que estar ao longo de um ano a gravar todas as cantatas de acordo com as ocasiões do calendário para as quais foram escritas. Agora não: se me pedem para dirigir a Paixão Segundo S. Mateus em Agosto, não - só aceito fazê-la na semana antes da Páscoa. Os discos são diferentes, mas aos concertos as pessoas devem acorrer para compreender o que Bach queria dizer, a sua fé.
E os que não têm essa fé?
Não quero julgar, não posso.
Mas sabe certamente que há muitos auditores que não têm essa fé e, no entanto, são tocados pela música de Bach.
Isso é maravilhoso, mas talvez estejam influenciados pelo que considero a minha fé, e a de Bach, sem se darem conta disso. Há algo, o espírito paira.
Mas então, sendo a sua fé calvinista, não segue estritamente os propósitos de Bach, que era luterano.
Bem, esse ponto é importante. Acredito que há música religiosa que não tem que ser só para os serviços litúrgicos. Nesses também há música, mas não é o único elemento. A música apela aos sentidos, mas num serviço litúrgico, mesmo quando há música, os sentidos devem ser excluídos. Mas, lá está, o espírito religioso pode influir num compositor quando escreve música.
Com as suas convicções calvinistas, como se sente quando de si se diz que é "o Papa" da música antiga. Como se sente?
(Risos) É errado em todos os sentidos. Para os católicos, o Papa encarna o poder do espírito, a verdade da fé, o que é uma coisa que eu não posso compreender. Em música, eu não quero ditar nenhuma ideia, não penso que tenha a verdade. Não penso que os outros devam fazer o mesmo que eu, têm que descobrir o caminho por eles.
Mas claro que tem a noção de que foi um dos pais fundadores.
Não, não tenho nada. Não sou o único.
Eu dizia, um dos...
Bom, está bem.
Tem a noção que o que realizou foi mesmo uma revolução?
Bem, uma revolução é uma coisa muito agressiva, e eu não o sou nada. Nunca foi o
meu objectivo mostrar que os outros estavam errados. Apenas me fascinou olhar para obras antigas, descobrir a teoria em volta, fazendo-o de uma maneira talvez diferente, aquela em que eu acredito, mas nunca me dei conta de nenhuma ideia revolucionária, de todo. Se outras pessoas gostavam do que eu fazia, tanto melhor, mas só isso.
Mas será então um conservador?
Não sei o que isso é. Gosto de conservar as boas coisas e mudar as más.
Não vê o risco de as revoluções devorarem os seus próprios filhos?
Boa questão! Não digo devorar, mas já começa a atingir alguns. Esta música já se tornou tão popular e muitos músicos são atraídos por ela por saberem que está em grande procura. E tocam com instrumentos que não são de época, ou sem o espírito. É que já se pode ganhar a vida tocando barroco. Também há passos em frente - Harnoncourt, dirigindo orquestras modernas, deu pequenos passos, consciente do facto de que o seu próprio conjunto é melhor, porque os instrumentos são apropriados. É um passo de transição. Mas há tantos músicos agora que não têm a experiência e são superficiais. E assim são um pouco devorados os filhos da revolução…
Incomoda-o saber que hoje o barroco está tão na moda?
Bem, também é maravilhoso. Não estou incomodado.
As obras nos seus discos vêm até Scarlatti, os filhos de Bach e num caso o jovem Mozart. É o que está para trás que é o seu mundo?
Em música e em arte, absolutamente sim. Quando se faz da arte o modo de vida, tem que se escolher um campo. E como eu escolhi os instrumentos de tecla (embora também tenha tocado violoncelo), naturalmente que me limitei ao órgão e ao cravo. E quando se faz a escolha, com os instrumentos vem a concentração num dado período, que é suficientemente longo. Para mim, são 200 anos, mas com que variedade, quase impossível de albergar, de Sweelinck a Wilhelm Friedmann Bach! É tanto em arte!
Extractos de uma entrevista no “Público” de 29-03-03