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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

“Com o trabalho da alma e a ajuda da literatura” (Sokurov – II)

 

 

O que sente quando o comparam com Andrei Tarkovski?
 
 Não sinto nada. Tivemos relações boas mas somos pessoas diferentes.
 
 Mas há alguns pontos de semelhanças entre os filmes de um e de outro, por exemplo, no tratamento da cor e do preto e branco.
 
Também há semelhanças com Ingmar Bergman e outros realizadores. O que nos liga, Tarkovski e eu, é a Pátria. Ambos somos russos.
 
Sente-se um autor “espiritual”?
 
Sim, é verdade. Era o principal para Tarkovski. Por isso, é difícil fazer filmes como os dele. Mas o mais difícil é saber como estabelecer um contacto através dos filmes.
 
É importante para si ter, através dos filmes, uma relação com Deus?
 
A questão de Deus é muito importante, mas não gosto do modo como Deus criou o mundo.
 
 
Mas em Mãe e Filho, o filho diz: “A criação é uma coisa maravilhosa.”
 
Eu sou mais livre do que as personagens do filme. Os realizadores devem ser mais livres do que as personagens.
 
Como consegue fazer tantos filmes?
 
 
Com o trabalho da alma e a ajuda da literatura. O “meu Deus” é a literatura, muito mais que o cinema.
 
Mas a pintura também é importante?
 
Em segundo lugar, depois da literatura. A pintura é a base do cinema, a literatura é a base espiritual.
 
Os seus filmes apresentam-se sempre como matéria sensível: a matéria da terra, da água, etc.
 
Tento criar nos filmes o meu mundo, não uma abstracção — um mundo real, mas meu. Nos meus filmes não está o mundo que Deus criou mas o que eu criei.
 
Como trabalha a imagem? Usa filtros, planos de pinturas?
 
Utilizo lentes especiais e a minha experiência de pintor. O pintor, no seu trabalho, usa diferentes técnicas. Eu, por exemplo, uso vidros pintados como modelos. São coisas muito simples, mas criadas para cada um dos filmes.
 
Nos seus filmes existe a literatura e a pintura, mas também a música e a importância do trabalho sobre o som.
 
A música é a alma do realizador, a imagem são as pernas. Quando trabalho penso em criar dois filmes, o da imagem e o da música, que devem ser independentes. Nem sempre o consigo mas tento. O director de som deve criar uma obra independente.
 
Acha que a música e o som são mais puros, que a imagem já está corrompida por tantos anos da história do cinema?
 
A música e o som não são totalitários como a imagem. O som é mais abstracto, está mais perto da natureza que a imagem. O som nunca pode ser velho, é sempre novo, e a imagem pode envelhecer.
 
Então a imagem é totalitária?
 
A imagem prende os homens e, nesse sentido, é totalitária. Quando um homem ouve, a sua imaginação está livre, e quando vê não está, porque só pode imaginar o que está a ver.
 
Trabalha em documentário e ficção. Como se relacionam os dois trabalhos?
 
São a mesma coisa. Às vezes é muito mais difícil fazer um documentário que um filme de ficção. Posso comparar o documentário com uma terapia e o filme de ficção com uma cirurgia. Quando a doença não é muito grave recorro à terapia; quando o é faço cirurgia.
 
Tem vindo a fazer uma série de filmes documentais que se chamam “Elegias”. A morte parece ser uma questão importante no seu cinema.
 
O mais importante nos meus filmes é a luta da vida contra a morte. Não tenho prazer em pensar na morte.
 
No entanto, disse que o objectivo da arte era preparar o homem para a morte.
 
Sim, é verdade. A arte tem muitos objectivos mas o principal é preparar o homem para a morte. Quando vemos os filmes sobre a morte, quando lemos os livros sobre a morte, estamos a preparar-nos, mas nunca estamos prontos.
 
 Disse que cada vez que entramos numa sala de cinema deixamos nela hora e meia da nossa vida.
 
 
O homem não paga por nada um preço tão grande como por ver um filme. Entra na sala e quando sai já gastou uma parte da única vida que tem. É uma hora e meia que nunca voltará a existir na vida do espectador e essa medida deve ser uma responsabilidade para o realizador.
 
 
Como foi o seu encontro com Soljenitsine, com quem fez O Nó?
 
Foi uma grande honra. Não esperava encontrar-me com Soljenitsine porque ele é muito solitário. Mas ele tinha visto os meus filmes e quis conhecer-me. Telefonou-me e perguntou se nos podíamos encontrar. Eu fiquei agitado, disse que não tinha tempo. Mas depois encontramo-nos e falámos longamente. Estivemos de acordo em muitas coisas, noutras não, mas gostei muito do encontro.
 
 
Então. ao contrário de Soljenitsine, não se sente um profeta?
 
Não. Tento simplesmente criar o meu mundo, que não é o do passado, o do futuro, ou o do presente.
 
Sente-se nacionalista?
 
Gosto muito da cultura russa e, nesse sentido, posso ser considerado nacionalista. Mas não gosto da vida russa.
 
Mas também não gosta dos valores do Ocidente.
 
Adoro a arte ocidental do século XIX, mas dos actuais valores ocidentais não gosto. Gosto da cultura do século XIX, ocidental e russa.
 
 
 
Extractos de uma entrevista no “Público” de 21-07-99
 
 
 
 
 
Adenda – Funesta coincidência: tinha acabado de pôr este texto em linha quando soube da morte de Soljenitsine-