Perspectivas mozartianas - I
Claudio Abbado é um músico de excepção, não apenas pelas suas eminentes qualidades
interpretativas, mas também porque, tendo ainda ocupado os mais altos cargos institucionais, do Scala a Viena e à Filarmónica de Berlim, não se restringiu, contudo, ao repertório e práticas canónicas.
Relembro, entre outros factos, os concertos para os trabalhadores das fábricas que organizou nos anos 70, a fundação da Orquestra de Jovens Gustav Mahler ou a sua dedicação à nova música, em especial a sua relação próxima com Luigi Nono – e é uma memória das mais intensas a estreia de Prometeo la Tragedia dell’Ascolto de Nono, sob a sua direcção em Veneza, em Setembro de 1984 – e acrescento que outra das minhas mais fortes experiências musicais foi o Concerto em sol maior de Ravel, sendo solista Martha Argerich e com os jovens da Mahler, em Agosto de 2002, em Edimburgo, quando Abbado regressou ao pódio após uma doença que o manteve afastado durante dois anos.
Claudio Abbado completou 75 anos no passado dia 26 de Junho. Como vai sendo prática rotineira, a Deutsche Grammophon assinala o evento com algumas reedições e novas edições. Não creio que, no denso panorama das integrais das Sinfonias de Beethoven, aquela que Abbado realizou com os Berliner tenha um relevo de maior. Também quanto à integral dos Concertos para piano do mesmo Beethoven com Maurizio Pollini, haverá a dizer que o pianista tem outras interpretações com mais relevo desses mesmos concertos, uma anterior integral tendo como maestros Karl Böhm e Eugen Jochum – sendo que na longa colaboração e fraternidade de Pollini e Abbado mais há a recordar os Concertos de Brahms e Bartók, ou ainda e talvez sobretudo, a inusitada associação dos Concertos de Schumann e Schönberg.
Mas a DG tinha também anunciado para esta ocasião um dos projectos discográficos mais inesperados do ano: a associação de Abbado com Giuliano Carmignola para os Concertos de Violino de Mozart – o máximo expoente hoje da interpretação da escola violinística barroca italiana e um maestro do repertório sinfónico (e de ópera) dos séculos XIX e XX?!
O encontro tem uma história, não tanto o facto de há 30 anos atrás Carmignola ter integrado os Filarmonici do Scala sob a direcção do outro, mas a fundação de uma nova Orquestra Mozart por Abbado, em Bologna, em 2004 – e Bologna, como se sabe, é uma cidade do itinerário mozartiano, quando o então jovem Wolfgang Amadeus foi aí aluno do Padre Martini.
O caso não é único em rigor. Diferentemente da obstinada reserva às interpretações “de época” de em especial um Pierre Boulez, já um Simon Rattle – o sucessor de Abbado em Berlim – vem de há anos dirigindo também a Orchestra of The Age of Enlightment. Mas Abbado não iniciou uma colaboração com uma formação já existente, de novo fundou uma orquestra, votada especificamente a Mozart.
Os Concertos de Violino não são certamente o que de mais relevante Mozart, mas dois intérpretes em particular, Arthur Grumiaux e sobretudo Isaac Stern, guindaram-nos ao nível de presenças indiscutíveis numa discografia mozatiana.
Sendo publicada também um outro disco duplo, com cinco Sinfonias de Mozart captadas em alguns concertos da Orquestra Mozart, são neste caso uma útil informação as entrevistas com Carmignola e Abbado incluídas nos respectivos livretes. Enquanto o violinista cita Grumiaux e o seu professor Franco Gulli, o maestro fala de Rudolf Serkin e George Szell. Estas últimas referências justificam algumas considerações.
O problema dos concertos gravados por Serkin e Abbado é o próprio maestro, que de modo algum acompanha a linha desse supremo intérprete mozartiano que o pianista foi. Por outro lado, a referência a Szell é muito interessante: mais, a meu ver, que o inevitavelmente sempre citado Bruno Walter, creio que os grandes intérpretes tradicionais das sinfonias de Mozart foram sim Szell e Krips (e o caso muito particular de Fritz Reiner).
A evolução interpretativa de Abbado é flagrante nas suas sucessivas gravações das Sinfonias de Mahler, incomparavelmente mais impressionantes as mais recentes. Mas neste caso não se trata de “evolução” mas de uma inequívoca “transfiguração”: estas são interpretações mozartianas como nunca esperámos ouvir de um Abbado, tornando-o próximo do que com formações de instrumentos de época realizou um Frans Brüggen ou, mais recentemente, um René Jacobs, ou do que com todo o seu saber e experiência acumulada o que um Nikolaus Harnoncourt logrou obter de uma orquestra tradicional, a da Concertgebow de Amesterdão, essa, a orquestra, também literalmente “transfigurada” pelo maestro.
Estes dois discos são uma total surpresa, e em particular o dos Concertos de Violino mais a Sinfonia Concertante para violino e viola (esta, uma das grandes obras de Mozart) é excepcional.