Van Sant aclamado
Harvey Milk, o primeiro homossexual assumido eleito para um cargo político nos Estados Unidos foi assassinado fez agora 30 anos, juntamente com o próprio Mayor de San Francisco, George Moscone, por um seu colega homofóbico do Board of Supervisors da cidade, Dan White. Se já em vida Milk era um ícone, mais ainda o foi depois da morte: Rob Eptsein (também co-autor de The Celluloid Closet) e Richard Schiechen dedicaram-lhe um documentário em 1984, The Times of Harvey Milk, que ganhou o Óscar, e Stewart Wallace compôs uma ópera, Harvey Milk.
Mas durante anos e anos falou-se de um biopic e foram sucessivos os realizadores que se declararam interessados em “The Mayor of Castro Street”, como o próprio Milk se declarava, de Oliver Stone a Bryan Singer. Enfim, o filme existe, foi dirigido por Gus van Sant, e estreou ontem nos Estados Unidos, com aplausos quase gerais, aclamações mesmo: “A marvel” clama O. A. Scott no “New York Times, “vibrant alive” escreve Dana Stevens na “Slate”.
Como Elephant em relação em relação ao massacre de Columbine e Last Days no respeitante ao suicídio de Kurt Cobain, Milk é, como assinala O. A. Scott, “uma crónica de uma morte anunciada”. E o filme é narrado por Milk de além-túmulo, abrindo com material documental, incluindo o anúncio do duplo assassinato pela então membro do Conselho Municipal de San Francisco e ora senadora pela Califórnia, Diane Feinstein. Mas ao contrário desses outros filmes, como aliás também de Gerry e de Paranoid Park, a tensão letal que vem caracterizando as obras de Van Sant num modo narrativo experimental, confronta-se neste caso, ou limita-se deliberadamente, pelo carácter icónico do objecto abordado: havia que “narrar Milk”, como aliás está no título. Daí que, com ironia subtil, Hoberman também diga do trabalho de um gay, Van Sant, sobre outro gay, Milk, que a sua postura é “straight” – em termos narrativos, entenda-se, mais directo, e menos elíptico.
Não por acaso o argumentista, Dustin Lance Black, é ele próprio um documentarista, e o filme concentra-se com agudeza na personagem titular, com Milk, interpretado por Sean Penn, presente em quase todas as cenas.
Harvey Milk mantinha a sua sexualidade no “closet” em Nova Iorque. Mudou-se para San Francisco e abriu uma loja de fotografia na Castro Street (by the way, o cinema dessa rua, o Castro Theatre, é um dos mais espantoso que conheço, ainda uma dessas grandes catedrais cinematográficas dos anos 20/30, com órgão e tudo). Quando lhe ameaçaram a loja, Milk, em vez de uma resposta individual, tornou-se um activista, em breve um líder de uma comunidade – e Castro Street um centro “gay”.
A sua notoriedade cimentou-se na luta contra a Proposition 6, lançada pela ultra-conservadora Anita Bryant, visando impedir professores “gays” de exercerem. A triste actualidade suplementar do filme, e que marcará muito a sua recepção, é que Milk chega no momento em que o histórico voto de 4 de Novembro foi manchada pela adopção na mesma Califórnia da Proposition 8, anulando a deliberação do supremo tribunal estadual de permitir os casamentos homossexuais. Ora, de acordo com as críticas, Milk é afinal também inteiramente dedicado ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, no caso independentemente da orientação sexual, e igualdade também na afirmação política dos direitos não obstante essa orientação: “A homossexual with power, that’s scary” ironiza Milk, que obstinadamente se candidatou, duas vezes foi derrotado, à terceira sendo enfim conseguindo..
Apesar da oposição do Presidente eleito aos casamentos de homossexuais – mas no seu discurso de vitória, ao falar de todos não deixou de mencionar “gay or straight” –Jim Hoberman declara Milk o primeiro “Obama-iste movie”.
Dá para perceber que com a estreia de Milk começou a corrida aos Óscares, no que estes podem ter de minimamente interessante ou sintomático: o modo como a indústria cinematográfica americana se vê a ela própria no contexto mais geral da América.
PS- Entretanto no IndieWIRE, Rob Epstein diz que o filme de Van Sant – a ficcionalização do que ele abordou como documentário - é “terrific”, e fala da colocação online de The Times of Harvey Milk em (VOD- video on demand) na Amazon.com.