"É a obra que faz de mim o seu intérprete" (Brendel - I)
P - Tem falado e escrito sobre o “carácter” particular de cada obra., de cada “obra-prima”. A sua tarefa como pianista, como intérprete, é então tentar discernir cada “carácter” particular?
R - Esse é um dos aspectos mais fascinantes. Sinto-me muito próximo de um actor que assume personalidades, e quando se toca peças tem de se fazer o mesmo, de acordo com que a peça requer. E quando digo que a peça tem um “carácter” é algo de semelhante a olhar para as pessoas, para os amigos. Sabemos que um amigo tem certas qualidades, certas possibilidades, certas potencialidades, e algures dentro desses campos está o seu “carácter”. É o mesmo com uma obra de música. Temos de encontrar o campo em que o “carácter” existe e não ultrapassar esse campo, porque então se fazemos isso desentendemos, descaracterizamos a obra.
P - Uma das suas características interpretativas é o rigor intelectual na estrita fidelidade ao que está prescrito na partitura. E no entanto, de cada vez que de novo se aproxima de uma obra, tenta também encontrar as margens de liberdade de uma interpretação.
R - Mas dentro dos limites do “carácter” de uma obra existe uma margem de liberdade; talvez 30 por cento. Mas para se estabelecer esse “carácter”, para o ajustar, tem que se estar seguro até certo ponto do que se deve fazer, mas não totalmente: tem de permanecer com algum cepticismo sobre o que já se fez antes, embora não um cepticismo que nos destrua.
P - É essa a razão porque gravou várias vezes, nalguns casos até três, os Concertos e Sonatas de Beethoven ou os Concertos e Sonatas de Mozart?
R - Bem, uma das razões é que, se mantém uma carreira e se prossegue até a uma idade mais velha, então também se deve desenvolver e não apenas permanecer no ponto em que já se estava. Há alguns músicos de carreira muito precoce e que depois pouco se desenvolvem. Comigo foi diferente: fui-me desenvolvendo gradualmente, com tempo suficiente para pensar as coisas, para as sentir, para estudar, por isso penso que ainda me estou a desenvolver.
P - Mas com o tempo também se tem vindo a concentrar. Foi um intérprete extraordinário de um compositor como Liszt, que hoje já não toca, mas em anos recentes tem-se concentrado em Mozart, Beethoven…
R - E Schubert, Schumann e Haydn. As coisas são o que são. Em parte são razões físicas; tenho que me precaver e estar atento ao que me é possível, sem prejudicar quer o meu estilo, quer as minhas mãos.
P - Gosta de acentuar que é parte de uma tradição clássica.
R - Sou.
P - Voltando sempre à questão central para si do “carácter”. Se a tenta discernir numa obra, supõe-se a si como intérprete da obra ou é a obra que faz de si o intérprete dela?
R - A minha ideia é que no fim é a obra que faz de mim o seu intérprete. Há pianistas que tentam impor a sua personalidade à obra - não sou desses. Claro que tenho uma personalidade e que essa também lá está de um modo ou outro, mas não é o principal.
P - Mas não é com certeza apenas o humilde servo da obra, há a sua distintiva personalidade de intérprete.
R - Tenho a noção de que deve uma fusão das duas coisas, o “carácter” da obra e a minha “personalidade”, mas o que tento é fazer justiça à obra, e não fazer da obra o que ela deveria ser ou o que compositor deveria ter feito com ela, como outros tentam.
P - Tomemos por exemplo as Sonatas de Mozart. Costuma citar uma frase de outro grande pianista, Arthur Schnabel, que dizia que elas “eram muito fáceis para as crianças e muito difíceis para os artistas”.
R - Precisamente. E essa é uma razão porque não são tocadas mais vezes, porque há artistas que não se arriscam a tocá-las. São subestimadas, comparativamente às obras-primas que são os Concertos. Pensa-se que são obras para crianças. Mas quando nos queremos aproximar delas são obras maravilhosas.
P - Não acha que em comparação as Sonatas de Haydn são muito mais subestimadas?
R - Não, já não. E mesmo nos meus anos jovens, havia pianistas que achavam as Sonatas de Haydn mais interessantes que as de Mozart.
P - Mas você foi justamente um dos intérpretes que nos tornou presentes quão grandes eram as Sonatas de Haydn e mesmo hoje são ainda poucos os pianos de topo que as tocam regularmente.
R - Mas há 12 ou 15 delas que são maravilhosas!
P - Referiu que se mantém sempre interessado em música nova. Para além da sua grandeza como intérprete, uma das coisas que me tem surpreendido ao longo dos anos, são as vezes que consigo me tenho cruzado em concertos a que assiste. Lembro-me de uma interpretação do “Quator pour la fin des temps” de Messiaen, de um “Pierrot Lunaire” de Schoenberg, sei-o interessado pelos Estudos de Ligeti…
R - Muito. Digo a jovens pianistas para os tocarem.
P - Portanto, a curiosidade intelectual é parte do seu “carácter”.
R - Desculpe mas está a enfatizar o “intelectual”. O intelectual em mim não é primordial. O intelecto sem emoção não tem grande justificação em mim. Não sou um intelectual; uso o meu intelecto, mas antes de mais sou um artista, uma pessoa intuitiva que também pensa.
P - É por isso que disse que “o sentir deve ser o alfa e o ómega de um músico”?
R - Sim, mas passando pelo filtro do intelecto, tal como pelo filtro das emoções – embora não baste extravasar as emoções, é preciso qualificá-las, transmitir aquelas que sejam verdadeiramente importantes.
P - Mas é também um ensaísta, tem reflectido muito sobre música.
R - Sim, isso sou, e também nos últimos anos um poeta, o que aliás me sucedeu de surpresa. Agora, há edições de poemas meus em alemão e em inglês e irá ser publicada outra no final do ano em francês e alemão.
P - O “nonsense” é muito importante nos seus poemas.
R - É. Ambos são, o “sense” e o “nonsense”.
P - Por alguns dos seus poemas, suporia que tem um interesse pelo “dadaísmo”.
R - Nalguns aspectos sinto-me próximo, sim. Não sou completamente um “dadaísta”, mas parte da minha personalidade reconhece-se nesse sensibilidade.
P - A sua é a personalidade é a de “um cidadão do mundo”?
R - Não me limito a um país, com certeza. Tento ser tão cosmopolita quanto possível, sabendo que tenho certas raízes na Europa Central, no que diz respeito à música e à literatura.
P - Sendo certamente um Homem de muitas Qualidades…
R - Que tem “O Homem sem Qualidades” [de Musil] como um dos livros favoritos!
P - Era esse o ponto!
R - Mas as contradições de um homem são importantes.
P - Mas não é contradição nenhuma ser um Homem de muitas Qualidades que tem uma preferência pelo “Homem sem Qualidades”!
R - Bem, um homem com qualidades e um homem sem qualidades…
P - Tocar, escrever – é uma espécie de “vida dupla”?
R - É uma “vida dupla”, não é a mesma coisa; há similaridades, mas são coisas diferentes. Até começar a escrever poemas, havia uma forte conexão, porque escrevia sobre música e matérias da minha profissão. Agora são os poemas que me escrevem.
Extractos de uma entrevista no “Público” de 30-04-05
Na sua digressão de despedida, Alfred Brendel realiza hoje um recital na Gulbenkian, às 19h