Ah! La maledizione!! - II
Por razões inexplicáveis, encenador e cenógrafo do Rigoletto em cena no São Carlos, Emilio Sagi e Ricardo Sanchéz Cuerda, optaram por um dispositivo de pátio, dramaticamente ineficaz e pouco operativo em termos funcionais, com consequências bastante danosas para a inteligibilidade da obra, tanto mais que na Rua da Betesga, o dito pátio, quiseram meter o Rossio, ou a Plaza Mayor.
Além disso, e o que é apesar de tudo inesperado (posso não apreciar os trabalhos de Sagi mas ele não é de modo nenhum inexperiente), o encenador tresleu constantemente o enunciado verdiano. Valha um exemplo, mas fulcral: quando no final do Acto I, ocorre a exclamação desesperada de Rigoletto, “Ah! La maledizione!!”, a razão directa, a sua percepção de que a filha Gilda desapareceu, pois bem, ou pois mal, é algo que não existe de todo em cena.
Depois há o “gosto” garrido das pernas das meninas do bordel e dos seus passinhos de dança, de um vistoso lustre no princípio e no fim, de um corropio de camas para o caso de que, incautos, não imaginassemos as alusões sexuais, tudo muito vistoso, mas ao nível do pechisbeque.
Para agravar as coisas, seriamente mesmo, a caracterização vocal falta por completo. Na sexta-feira 14, na terceira récita do primeiro elenco (terceira efectiva, pois há que atender a essa singularidade do São Carlos que é a gala reservada ao mecenas exclusivo do teatro, o Millenium-BCP), Saimir Pirgu confirmou as suas potencialidades de tenor lírico e potencialidades mesmo para o papel de Duque. Sucede que este não é apenas um “conquistador” sexual; quando no Acto III o Duque entoa o celebérrimo “La donna è mobile”, não só, em termos musicais e dramáticos, a inconstância e frivolidade são também suas, como o corropio se liga à sua posição senhorial – e no final do acto e da ópera, não por acaso Rigoletto apercebe-se do falhanço da sua vingança precisamente ouvindo-o fora de cena prosseguir essa cantilena. E foi esse aspecto, crucial, que nem Pirgu ainda compreendeu nem nenhuma direcção, de inexistente, o fez compreender.
E ainda assim, nesta récita de sexta-feira 14, foi ele o elemento de alguma valia do elenco, face ao Rigoletto pálido e incaracterístico de Alexandru Agache (que tinha vindo, tardiamente é certo, substituir o previsto Lado Atanelli, mas que nesta terceira récita continuava a não fazer jus a uma experiência própria muito superior à dos outros intérpretes), ao total desatino da Gilda de Chelsey Schill (a qual, pasme-se, é a nova “prima donna” do teatro, a solista residente de quase todas as óperas), à solidez vocal mas a traços grossos do Sparafucile de Vadim Lynkovsky (substituindo-se, note-se, um Ernesto Morillo que Também se anunciava como residente e afinal se evaporou), e à ainda mais berrante, a todos os títulos aliás, e manifestamente deslocada Magdalena de Malgorzata Waleska.
O Rigoletto ora em cena no Teatro Nacional de São Carlos, é de facto um espectáculo lamentável.
Outra coisa, ainda assim, que não deve ser iludida, mas que é de outro tipo de considerações, são as dúvidas e perplexidades sobre a actual política artística do teatro nacional de ópera, incluíndo já, inevitavelmente, os motivos de apreensão sobre um arremedo de temporada que um tão lamentável Rigoletto suscita -“Ah! La maledizione!!”.