A clareza da complexidade - elogio de Elliot Carter (I)
No dia dos 100 anos de Elliot Carter
Lembro-me de ter conhecido Elliot Carter no Outono de Varsóvia em 1985, tinha a lei marcial sido levantada há pouco tempo. Lembro-me de os ver juntos, ele prestes a fazer 78 anos e Witold Lutoslawski com 74, dois decanos entre os compositores.
Como imaginar então as surpresas que Carter ainda nos reservaria, obras tão marcantes como o Concerto para Oboé (1987), Three Occasions para orquestra (1989), o Concerto para Violino (1990), o tríptico Symphonia: sum fluxe pretium para orquestra (1998), o Concerto para Clarinete (1996), surpresa maior, a ópera de câmara (nunca Carter se tinha aventurado em tal território) What Next?, com libreto do musicólogo Paul Griffiths (1997), Tempo e Tempi, para soprano, oboé, violino e violoncelo (1999), o Asko Concerto (2000), o Concerto para Violoncelo (2000), Three Ilusions for Orchestra (2004) ou Soundings para piano e orquestra (2005), sim, quem diria, quem ousaria imaginar um tal florescimento criativo num compositor de 80 anos passados?!
E Elliot Carter continua activo: na semana passada houve a estreia de Interventions para piano e orquestra, por Daniel Barenboim e a Orquestra Sinfónica de Boston, dirigida por James Levine, em Boston, os mesmos intérpretes tocando hoje a obra no Carnegie Hall de Nova Iorque. E já há notícia do trabalho num novo ciclo de canções baseado nos Pisan Cantos de Ezra Pound.
Elliot Carter nasceu numa família abastado, de quem um agente de seguros era nada menos que o fundador da música americana, Charles Ives. Esse contacto terá sido um primeiro encorajamento na direcção da música. Em Harvard licenciou-se em inglês e mais tarde também em música. Um dos seus professores foi Walter Piston, e a influência daquele, de Roy Harris e de Aaron Copland, orientou-o inicialmente no sentido da nascente escola “nacional” americana – chegou mesmo a escrever Pocahontas, uma composição coreográfica.
Como vários outros músicos americanos, rumou a Paris, para se aperfeiçoar junto de Nadia Boulanger, obtendo em 1935 um doutoramento em música pela École Normale de Paris. Se mais tarde voltaria costas à orientação neo-clássica de então (e, por exemplo, também se distanciou do “período neo-clássico” de Stravinsky, compositor de quem no entanto recolheu a complexidade de A Sagração da Primavera), Carter permaneceu sempre “o mais europeu dos compositores americanos”.
É então interessante equacionar essa caracterização, por um lado, e o facto de ter tido o contacto inicial com Ives, o “fundador” dessa música americana, no que tem de mais intrinsecamente original, de um novo “continente musical” mesmo. Se Carter se aparta de Ives na utilização de “música correntes” (fanfarras, hinos), irá no entanto aproximar-se dele, de modo muito próprio, num aspecto capital: uma constante mobilidade de eventos, de sucessão (e/ou sobreposições) de tempos, formulado “modulações métricas” ou uma polifonia das próprias dinâmicas. Em 1951, com o Quarteto nº 1, Elliot Carter reinventa-se, ou mesmo “inventa-se”, no sentido em que passou o ser uma personalidade musical original e reconhecível.
Carter é um compositor da racionalidade e da complexidade trabalhando sobre grupos de acordes, o caso mais extraordinário (e incrivelmente difícil) sendo o uso simétrico e invertido de acordes de todas as 12 notas, na prodigiosa obra que é Night Fantasies (1980) para piano. Mesmo um compositor-intérprete como Pierre Boulez reconheceu que inicialmente teve dificuldades em compreender a complexidade das obras de Elliot Carter.
Mas a noção de ritmo que lhe é própria permitiu estruturar (e de algum modo “estratificar”) um sentido único do tempo e da mobilidade. Desde o citado Quarteto nº1, Carter concebeu a sua música como uma espécie de argumento para “dramatis personae”.Isso verifica-se nos quartetos, cinco, e nas obras orquestrais e concertantes – e não por acaso tem escrito tanto concertos e obras com solistas, com destaque para o Duplo Concerto para Piano, Cravo e Duas Orquestras de Câmara (1961), o Concerto para Orquesta (1969) a Sinfonia de Três Orquestras (1976) ou o já citado Asko Concerto, ou ainda no modo como faz uso de diferentes andamentos, ou “quadros”, numa obra. É essa mobilidade e “dramaticidade” que permitem a percepção e a claridade de uma música tão complexa.
Parabéns Elliot Carter!
NB – 1) Há um sítio dedicado à programação comemorativa do centenário de Carter, www.carter100.com ; 2) Na Casa da Música, nas celebrações do duplo centenário de Messiaen e Carter, ouvir-se-ão quatro importantes obras, Tempo e Tempi e Reflexions, amanhã às 21h, e Asko Concerto e Three Occasions for Orchestra sábado às 18h.