Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

A eternidade sensível (Messiaen - VI, Quator - I)

 

Messiaen
Quarteto para o fim do Tempo
Steven Osborne, piano, Viviane Hagner, violino, Alban Gerhardt, violoncelo, Kari Kriokku, clarinete
Gulbenkian, 1 de Dezembro
 
Pode o público ser sensível à fé que anima e inspira um criador artístico, um compositor no caso? Não me parece possível dar uma resposta genérica, desde logo porque esse “público” é composto de concretos indivíduos e haverá crentes, agnósticos e ateus, e inclusive crentes de outras confissões. Mas creio que a questão é inevitável a propósito de Messiaen e nomeadamente do Quator pour la fin des Temps.
 
Não havendo resposta genérica posso pois responder por mim dizendo que, para o agnóstico que sou, Messiaen é, com Bach e Bruckner, um dos três compositores que sinto sem dúvida animados por uma “transcendência”. Mas porque, por uma lado, coloquei genericamente a questão no campo artístico e, por outro, falei especificamente de Messiaen, direi então também que há um outro artista, um cineasta, Andrei Tarkovski, perante cujas obras sinto tão sensíveis sinais duma crença transcendente. Há por certo outros grandes cineastas transcendentais, Dreyer ou Bresson, mas se Tarkovski me toca de modo tão particular para o que aqui importa é porque os sinais de remissão para essa “transcendência”, a “presença” de uma outra ordem, os encontro também no modo como torna palpáveis as matérias sensíveis, os ícones, a lama, a água. Com Messiaen sucede-me é que as suas obras, pela miríade de cores, polirrítmias e imensidão do espaço sonoro, sugerem-me o que, extrapolando uma analogia cinematográfica, diria ser um “contracampo transcendental”, uma ordem não apenas da criação mas da Criação, no seu pleno sentido panteísta.
 
O Quator pour la fin du Temps (e já explicarei porque mantenho o título original em francês) é uma obra ímpar, extraordinária, plena de sugestões pelas suas características musicais e também pelas suas alusões programáticas referentes ao livro do Apocalipse. Mas é também uma obra rodeada de uma aura muito particular porque é difícil desconhecer que foi composta e estreada estava Messiaen prisioneiro de guerra no campo de Görlitz na Silésia. A sua específica instrumentação, piano, violino, violoncelo e clarinete, foi motivada por concretos músicos que estavam detidos nesse campo e pelos instrumentos disponíveis.
 
Talvez por auto-sugestão, Messiaen dissse que o Quator foi estreado a 15 de Janeiro de 1941 no Stalag VIII A perante um público de 5.000 prisioneiros; contudo, segundo Étienne Pasquier, que tocou a parte de violoncelo, foram sim 200, número que se afigura mais provável (cf. Claude Samuel – Permanences de Messiaen – dialogues et commentaires,Actes Sud). Parco nas suas declarações sobre as circunstâncias concretas da composição Messiaen tão só confidenciaria: “Quando eu estava prisioneiro, a falta de comida provocava-me sonhos coloridos: via o arco-íris do Anjo e estranhas girândolas de cores”.
 
É importante, crucial mesmo, entender que a inspiração no Apocalipse não supõe que a obra seja “apocalíptica” no sentido mais corrente do termo. O que Messiaen reteve foi a imagem do Anjo tendo sobre a sua cabeça o arco-íris e que vem anunciar que “já não haverá mais tempo”, “La fin du Temps”, com “Temps” em maiúscula (é a esta particularidade que é preciso atender no título original francês). Este “tempo” reenvia-nos quer para os aspectos rítmicos (“O ritmo é, por essência, mudança e divisão. Estudar a mudança e a divisão é estudar o tempo”) quer para a teologia (“a perpétua conversão do tempo em passado, a noção de Eternidade”).
 
Este “fim do Tempo” (e não fim dos tempos”) é a sugestão de um tempo sem fim, a eternidade. A derradeira obra de Messiaen intitula-se Éclairs sur l’Au-Delá; o Quator pour la fin des Temps poderia também ser caracterizado como “Éclairs” de l’Eternité”, “lampejos”, “fulgurâncias” ou “visões”.
 
Em particular extraordinários no quadro programático ou alusivo da obra são “V – Louange à l’Éternité de Jésus”,com a sugestão do tempo suspenso, tempo musical e tempo teológico, e “VIII – Louange à l’Immortalité de Jésus” com a lenta linha ascendente até ao extremo-agudo do violino, sugerindo a ascensão de Jesus, do “Verbo feito carne, ressuscitado e imortal”. Pelo seu trabalho sobre o tempo e o rítmo, sobre as cores também, Messiaen sugeriu nesta obra-prima de modo único uma atemporalidade, uma u-cronia, uma eternidade sensível pela experiência da música.
 
O inusitado longo silêncio que acolheu a interpretação do quarteto Osborne-Hagner-Gerhardt-Kriikku na Gulbenkian foi a mais eloquente resposta do público a uma soberba interpretação, de tão assombrosas cores e noções do rítmo e do tempo. A clareza das dinâmicas e rítmos em “II – Vocalise, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps”, a mestria de Kriikku no extraordinário solo de clarinete que é “III – Abîme des oiseaux”, a linha hipnótica do violoncelo de Gerhardt em “V – Louange à l’Éternité de Jésus”, as cores do piano de Osborne em “VII – Foullis d’arcs-en-ciel, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps”, as mutações de cor ao longo das alturas de Hagner em “VIII – Louange à l’Immortalité de Jésus”, eis alguns exemplos concretos desta experiência transcendente, um dos momentos mais marcantes das comemorações em Portugal dos 1000 anos do nascimento de Olivier Messiaen.