Uma concepção abusiva (Messiaen - VII, Quator - II)
Messiaen
Quarteto para o fim do Tempo
Schostakovich Ensemble
Poemas de Nelly Sachs ditos por Beatriz Batarda
Espaço Cénico Paulo Nozolino
CCB, 10 de Dezembro
A ficha do concerto com que o CCB assinalou o centenário do nascimento de Messiaen (no preciso dia em que ocorria) é inusitada, e desde logo indicadora de algumas questões: certo, o Quarteto para o fim do Tempo é uma obra imensamente sugestiva, mas será pertinente e mesmo legítimo enquadrá-la pela leitura de poemas e um dispositivo cenográfico?
Admitamos o seguinte, pelo menos enquanto interrogação: sabendo nós que a obra foi composto e estreado num campo de prisioneiros de guerra, podemo-nos abstrair do mais geral conhecimento dos factos dessa guerra, do nazismo e do processo concentracionário?
Uma coisa é a indispensável memória histórica, outra é a mescla de factos apesar de tudo de ordem diferente, e tanto mais a mescla envolvendo uma concreta apresentação de uma obra como a de Messiaen, eventualmente configurando um abuso.
Isto não significa de maneira nenhuma uma “suspensão” da memória do Holocausto – só que ela é no caso deslocada, de modo mutuamente infrutífero, para o Quator pour la fin des Temps e para a concreta memória do universo concentracionário e de extermínio, incluindo as manifestações artísticas que ainda ocorreram nesse terrível universo.
O Quator foi estreado a 15 de Janeiro de 1941 no Stalag VIII A do campo de prisioneiros de Görlitz, e isso é parte da sua aura própria. Mas, meses depois, a 22 de Junho, já libertado, Messiaen apresentava a obra no Théâtre des Marthurins em Paris. O que eu desconhecia, e só fiquei a saber por um artigo no “Le Monde” da passada sexta-feira, foi que em Paris, durante a ocupação, qual acto cultural de “resistência”, foram apresentadas mais obras compostas por prisioneiros de guerra, tendo-se realizado inclusive um concerto dirigido por Charles Munch, só com obras originadas nessas circunstâncias, e tendo mesmo a SACEM, a sociedade de autores, aberto um concurso para os autores e compositores prisioneiros.
Radicalmente diferente foi a sorte de compositores como Viktor Ullmann, Gideon Klein, Erwin Schulhoff ou Hans Krása, vários deles tendo passado pelo campo de Theresienstadt, em que estavam internados sobretudo artistas e que os nazis utilizaram também para “proporcionarem” visitas de organizações como a Cruz Vermelha, e que todos esses acabaram vítimas do extermínio.
Aliás, o CCB vai apresentar em Fevereiro um ciclo de relevo, “O Nazismo e cultura: confrontações”, que incluirá nomeadamente a ópera que Ullmann escreveu no cativeiro, O Imperador da Atlântida. Acontece que fazer da apresentação do Quator pour la fin des Temps, obra de crença e de esperança, uma antecipação desse ciclo – o que objectivamente foi o programa – é um abuso histórico e foi também um abuso estético.
Falando da arte “depois de Auschwitz”, eu próprio tenho incorrido no lapso de citar recorrentemente Celan, omitindo Nelly Sachs, quando afinal desmentiram ambos o célebre ditame de Adorno de que não seria mais possível poesia depois de Auschwitz. É insólito que no programa figurassem os poemas de Nas Moradas da Morte, traduzidos por João Barrento, que Beatriz Batarda leu, poemas impregnadas da terrível experiência do Holocausto, da condição judaica diria mesmo, e não houvesse qualquer apresentação da poetisa, Prémio Nobel da Literatura de 1966, e desse livro, Den Wohnungen des Todes, publicado logo em 1947. Mas mais: sendo que por uma qualquer razão o evento teve lugar não no Pequeno Auditório do CCB, como seria curial, mas no Palco do Grande Auditório, dificilmente se conseguia ouvir Beatriz Batarda.
Mais grave ainda foi que Paulo Nozolino, um fotógrafo e artista que particularmente estimo, se deixou enredar nas teias desta deslocada e abusiva “sugestão concentracionária”, para que afinal foi ssolicitado. O seu “espaço cénico” eram fotografias de prisioneiros que imediatamente identificávamos como sendo de campo de concentração, em flagrante contraste com as características da obra musical e, pelo modo como suscitavam a atenção, limitativas da concentração na escuta.
Mas também a execução musical esteve longe de ser feliz. O Schostakovich Ensemble, criado pelo pianista Filipe Pinto-Ribeiro fez jus ao seu nome. O exacerbamento dramático, a pulsação e o “rubato”, por vezes mais se diriam por sua vez sugerir, pesem ainda as diferenças de “instrumentarium”, o Quarteto nº 8 de Chostakovich, com o violoncelista Pavel Gomzkiavov e sobretudo a violinista Priya Mitchell em exagero de “vibrato”. Apenas o conhecido clarinetista Pascal Moraguès, “et pour cause…” (é clarinete principal da Orquestra de Paris e professor no Conservatório Nacional Superior de Música daquela cidade) teve as cores que a obra solicita.
Tantos talentos estimáveis para uma tão infeliz e abusiva concepção do concerto e sua realização, bem ao estilo de alguma “interdisciplinaridade” a despropósito que vai sendo característica da programação do CCB na era Mega Ferreira, de resto para um público muito selecto. Mas, e Messiaen? Antes do mais, não era ele que era suposto celebrar-se?
NB – Para ser justo, devo referir que, hoje mesmo em Paris, um dos intérpretes por excelência de Messiaen, o pianista Pierre-Laurent Aimard, apresentou no Théâtre des Champs-Elysées um programa na aparência semelhante em que a execução do Quator pour la fin des Temps era precedida de leitura de extractos de Sem Destino, obra de um sobrevivente dos campos de concentração, o húngaro Imre Kertész. Mas ao contrário do “envolvimento” poético e fotográfico do Quator no CCB, esse programa de Aimard intitulava-se “Captivités – L’art au prises avec les camps”, e note-se o plural, referido portanto a situações diferentes, e além da obra de Messiaen incluía outras de Schönberg, Ligeti e Kurtag, um programa de alusões e confrontações em suma, não de sugestão directa.