As Vésperas na sua policoralidade
Monteverdi
Vespro della Beata Vergine
Cantar Lontano, Marco Mencoboni
Sé de Lisboa, 18 de Dezembro
“Hossana!” – pouco mais de um ano depois das deslumbrantes Vésperas que Sigiswald Kuijken dirigiu na Casa da Música, tivemos de novo oportunidade de ouvir, a encerrar uma temporada de concertos do Instituto Superior Técnico (um exemplo para instituições congéneres), aquela que é uma das mais extraordinárias obras de toda a história da música europeia, e agora em Lisboa e de novo numa Igreja, a Sé, como nessa ocasião absolutamente memorável – e que de facto permanece nas nossas memórias – da célebre realização dirigida por Jordi Savall nos Jerónimos há 20 anos, a 26 de Outubro de 1988, sendo mesmo que dois dos “oficiantes” de então o foram também agora, o tenor Gian Paolo Fagotto e Marco Mencoboni, que então estava ao cravo e agora dirigiu.
“Hossana nas alturas!”, pode mesmo dizer-se, já que, prosseguindo a sua prática dos princípios do “cantar lontano”, técnica de espacialização dos sons usada na música sacra italiana da época de Monteverdi, Mencoboni estudou detalhadamente a acústica e a arquitectura da Sé e não só colocou cantores e instrumentistas também no coro alto como igualmente nas galerias superiores sobre a nave central, o trifório, e inclusive na cúpula
A experiência foi emocionante, mas ainda assim impõem-se questões quer sobre a concepção de Mencoboni, quer sobre algumas desigualdades da realização, algumas mesmo desagradáveis.
Se as Vespro della Beato Vergine são das obras mais extraordinárias da história da história da música europeia são também enigmáticas. Em 1610, depois de muitos anos, nada menos que 27!, sem compor música religiosa, ou pelo menos sem a fazer imprimir, Cláudio Monteverdi publica conjuntamente a Missa in illo Tempore, no “stilo antico”, da polifonia renascentista, e as Vespro, de “stilo concertato”. O objectivo era claro: obter uma posição em Roma, para isso demonstrando a sua completa mestria nas diversas modalidades de escrita. Se ainda assim não oferece dúvidas que a Missa e as Vésperas são duas entidades distintas, resta que no tocante à segunda subsiste uma dúvida: é um ofício ou uma colectânea?
Não só há dois Magnificat, o que nos termos estritos do ofício não tem sentido, como uma das maiores singularidades da “obra”, os “concertos sacros”, Nigra Sum, Pulchra es, Laetatus sum, Duo Seraphim e Audi Coelum e a maravilhosa Sonata sopra Sancta Maria não têm cabimento na liturgia.
Mencoboni resolveu uma única questão, a dos Magnificat, optando apenas pelo primeiro, como se a existência de dois fosse um qualquer acidente de edição. Assim encarou a obra como um ofício, opção que pelos motivos expostos tem tanto de discutível quanto de aceitável – qualquer realização das Vésperas é isso mesmo, uma opção ou um conjunto delas. Já eminentemente mais discutível me pareceu a sua insistência na experiência espiritual em contraponto à teatralidade, como se nesta estética barroca fosse possível separar o sacro e o profano, ou vice-versa – afinal Monteverdi também transmutou o Lamento d’Arianna em Pianto della Madonna.
Dentro da concepção de Mencoboni, e para além dos dados da espacialização, gostaria de salientar um momento, a justeza com se veio juntar a terceira voz, quando no Duo Seraphim se invoca “Pater, Verbum et Spiritus Santum: et hi unum sunt”, a Santíssima Trindade, justificando plenamente, pelo menos no tocante a esse concerto, que, embora não de tema mariano, seja parte do ofício.
Mencoboni colocou o coro de cantochão atrás do altar-mor, neste o órgão e solistas, e no coro alto o propriamente coro vocal (uma reunião de solistas, não um “coro” em sentido usual) e os restantes instrumentos. A disposição tinha resultados de audição desiguais, mas isso era inevitável. O crescendo foi-se criando à medida que os solistas se foram movendo no espaço, sobretudo, e foram momentos de verdadeiro extâse, no eco do Audi coelum, ou na dispersão, no coro alto, trifório, e mesmo na cúpula (!), no esplendoroso Magnificat.
Mas também é preciso dizer que houve notórias desigualdades entre os solistas, alguns bastantes bons, o barítono Marco Scavazza, o contratenor Andrea Arrivabene, um dos tenores que não sei precisar, como que há a notar que dois dos concertos, o Nigra Sum e o Pulchra es, foram fraquíssimos, mesmo desagradáveis.
Foi pois uma realização desigual, discutível nos princípios e nalguns dos meios e ainda assim empolgante.