Ligeti, duas obras
Já que a Casa da Música fez a opção – algo contraditória para as normas de uma instituição deste género, mas não vou de novo insistir nesse ponto – de organizar a sua programação musical de acordo com calendário e não com a organização em temporada, iniciam-se pois agora as diversas séries e ciclos.
Uma prova de que esses podem ser cruzados e pensados em conjunto ocorre logo este fim-de-semana, com a apresentação sucessiva de duas obras de um dos máximos compositores contemporâneos, Gyorgy Ligeti (1923-2006) em dois concertos que se apresentam entre si desconexos.
Assim, hoje, às 21h, San Francisco Poliphony será executada num programa de título genérico “Novo Mundo” – este toque, ou tique não sei bem, de os concertos terem título é algo que me escapa, mas no caso este justifica-se plenamente, com um programa composto por uma raridade de Edgar Varèse, Tuning Up, Um Americano em Paris de Gershwin, a citada peça de Ligeti, New York Skyline de Villa-Lobos (pois que o Brasil é o “país tema” do ano) e a Sinfonia nº 9, “Do Novo Mundo” de Dvorak, com o maestro titular, Christopher König, dirigindo a Orquestra Nacional do Porto.
Amanhã, também às 21h, é a vez de começar a série do Remix, introduzindo o compositor residente deste ano, o britânico Jonathan Harvey. Mas com várias obras desse autor, e em concerto dirigido pelo maestro titular do agrupamento, Peter Rundel, será também executada uma das derradeiras obras de Ligeti, o Concerto de Hamburgo, obra destinada a uma formação bastante inusitada, trompa solista, quatro trompas naturais e conjunto.
San Francisco Poliphony (1973-74) estende a concepção polifónica de Ligeti da escala “micro”, que caracterizava as suas obras dos anos 60, a uma escala “macro”, com uma fascinante heterogenia das linhas melódicas combinando-se no entanto na grande forma. Se é ainda assim pertinente falar a propósito dessa obra de “campo harmónico”, no Concerto de Hamburgo (1998-99, 2003) há sim, de modo bastante mais lato, um espectro sonoro, com inusitadas sonoridades, consequência não só do peculiar conjunto como também da gama particular de cada instrumento ou conjunto de instrumentos. Mas uma e outra obras têm uma inconfundível sonoridade “ligetiana”.
A sucessão das duas obras é pois um “evento” de facto, embora não referenciado como tal na programação.
Já agora, um pequeno pormenor de ordem prática: sem necessidade de repetição exaustiva, ganhava-se ainda assim inteligibilidade se na parte final da brochura da programação da Casa da Música o calendário de todos os eventos não fosse tão sumário – é que, por exemplo num caso como este, é necessária alguma atenta observação para não escapar ao potencial interessado que entre um concerto da ONP e um outro do Remix, em dias sucessivos, sucede haver não certamente por acaso duas obras de um dos maiores compositores contemporâneos.