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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Clint Eastwood - I - "Cresci vendo filmes"

 

 

 

 
 
Uma das maiores estrelas do cinema americano, com uma proeminente posição no Box Office, é um homem pouco dado a vedetismo, muitas vezes mantendo-se escondido da ribalta pública
 
Pouco dado a discursos, responde às questões com o laconismo da maioria das suas personagens. As vezes hesita, repete que não sabe, evita o que possa ser considerado como questão mais pessoal.
 
Mas John Wilson, papel que interpreta em White Hunter, Black Heart, não é uma personagem qualquer: é um realizador de cinema, directamente inspirado em John Huston, e há questões que não se podem deixar de colocar.
 
P – Porquê esta obsessão por personagens obcecadas?
 
Clint Eastwood – Não sei, não tenho a mínima ideia. Penso que as acho interessantes. Concordo com elas nalgumas coisas, noutras não.
 
P.- Por exemplo?
 
R. - No caso de White Hunter, Black Heart, concordo em muito com a filosofia do realizador de cinema, acho que o modo como ele se coloca ao lado dos que são tratados "abaixo de cão" é admirável, mas também que ele é muito cruel com as pessoas que o rodeiam. Mas é a maneira de ser dele, é o que o torna uma personagem interessante. O que o determina? A sua inconstância, o seu brilhantismo, a sua força? Não sei. Num filme tem que se pôr tudo isso, tanto quanto possível, e dá-las a ver ao público- eu acho isto, e você? No último plano, o realizador começa o seu filme, grita "action"; o que lhe vai acontecer, para onde vai? Vai transformar-se por causa do incidente trágico que provocou? Não sei, cada um interpretará como quiser.
 
P. – Mas para si foi essencial que ele fosse um realizador? Ter-se-ia interessado por um  homem que constantemente se desafia no seu trabalho, movido pela obsessão de matar um elefante, se fosse outra coisa que não um realizador?
 
R. - Se a história fosse outra coisa qualquer, e igualmente interessante, podia não ser essencial, mas nesta é.
 
P. - A certa altura, o argumentista no filme diz que as pessoas não vão ao cinema para ouvirem uma conferência. Não acha que, sendo você um actor/realizador, o discurso de John Wilson sobre o cinema pode ser confundido com uma declaração sua?
 
R.- Não, é apenas a personagem. É apenas a personagem. Ele fala muito da sua relação com as histórias, da simplicidade na arte, mas é o modo de ser dele.
 
P. - E não se confunde com o seu?
 
R. - Bem. Deve haver qualquer coisa em comum que me atraíu.
 
P. - Por exemplo?
 
R. - Concordo com o que ele diz sobre a importância da simplicidade na arte.
 
P. - Precisamente, ele fala muito. Estamos acostumados a vê-lo a si interpretar personagens muito lacónicas. Nunca como esta.
 
R. Ele explana muito, é uma parte muito importante da sua personalidade, como também era para John Huston.
 
P. - Voltemos então a Huston / Wilson. Para si, ele é um clássico realizador de Hollywood?
 
R. - Huston era uma figura internacional; viveu na Irlanda e no México, noutros sítios. Segundo as normas de Hollywood, ele era um bocado rebelde; acho que também sou e esse aspecto é comum. Hoje Hollywood é diferente, toda a produção está internacionalizada, de qualquer modo, não participo muito na vida de Hollywood e talvez também haja aí um paralelo. Estou de acordo com o que Wilson diz no filme quanto à necessidade de não estar sujeito ao contrato de uma companhia.
 
 
P.- Mas Huston é um realizador particularmente importante para si?
 
R. – Bem, cresci vendo filmes de cineastas como Howard Hawks, John Ford, John Huston ou Preston Sturges.
 
P. - Sente-se herdeiro deles?
 
R. - Espero que sim.
 
P. - Qual o seu filme de Huston preferido?
 
R. – O Tesouro da Serra Madre.
 
P. - Nunca encontrou Huston e para preparar este filme viu documentários com ele. Tem pena de não o ter encontrado?
 
R. -Tenho pena, mas era capaz de não ter sido bom, era capaz de me ter disperso em pormenores. Assim, pude ver o filme de maneira objectiva. O que interessa é a ideia que se faz da personagem. E só isso que conta, torna-se parre de nós.
 
P. - Acha que se, como actor, tivesse feito um filme com Huston, se sentiria intimidado?
 
R. - Bem, isso acontece, às vezes acontece mesmo em filmes meus.  Às vezes há actores novos de quem se sente que cresceram a ver os filmes daquele realizador e se sentem intimidados. Isso também me aconteceu quando fiz Breezy, o primeiro filme que realizei em que não entrava como actor. William Holden era o protagonista, um actor que eu tinha visto no cinema desde que era criança, e fiquei impresstonado. Tinha visto tantos filmes com ele que quando ia começar a rodar pensei de repente: não pode ser ele, será mesmo que o vou dirigir?
 
P. -Dirige-se a si próprio no papel de realizador que todo o tempo parece uma personagem dele próprio. Não foi complicado?
 
R - Foi, a personagem é muito complicada, há tantos aspectos nele que é preciso compreender.
 
P.- Portanto, correu o risco.
 
R. - Há que correr os riscos. Se se começa a pensar neles, não fazemos nada. Wilson diz uma coisa com que concordo: não se pode fazer um filme a pensar como vai reagir o público na sala em relação a isto ou aquilo. Não há que ter medo, há apenas que fazer o primeiro plano, contar a história e esperar que alguém goste dela.

 

 

 

 

PÚBLICO, 13-05-90

 

 

White Hunter, Black Heart é de novo exibido na Cinemateca Portuguesa, na próxima quarta-feira, às 19h30.