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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Uma decepção italiana

 

 

Haendel
12 Concerti Grossi op.6
Il Giardino Armonico, Giovanni Antonini
3 cds Decca L’Oiseau-Lyre, dist. Universal
 
 
 
Um dos acontecimentos mais relevantes no domínio interpretativo da música barroca nos últimos 15 anos foi a chegada tardia – muito posterior aos austríacos, ingleses e flamengos – mas clamorosa dos agrupamentos italianos, renovando profundamente o nosso entendimento da época musical que se estendeu de Monteverdi a Vivaldi. Eis que se diria que, pronto, nestes 250 anos da morte do compositor é chegado a sua altura de partirem “ao assalto” do “Haendel italiano” e “italianizante”. Mas calma…
 
No dia 11 de Janeiro passado ocorreu em Lisboa um dilema handeliano: sendo escassos os concertos comemorativos anunciados pelas instituições musicais portuguesas, logo dois calhavam no mesmo dia e chegavam a sobrepor-se: uma das melhores intérpretes actuais de Haendel, a contralto Marijana Mijanovic, apresentou-se na Gulbenkian; estava esse concerto a terminar e já começava no CCB o de Il Giardino Armonico, com alguns dos Concertos Grossi op.6. Infelizmente o recital de Mijanovic foi um desastre, por a cantora estar em más condições vocais, cortando inclusive uma ária do programa – mais valia ter cancelado o concerto. Entretanto, no que me toca perdi o outro evento, de que me chegaram relatos entusiásticos, deixando-me pesaroso por não ter assistido. Afinal…
 
 
Conta-se que na estadia romana de Haendel, quando da sua primeira oratória, Il trionfo del tempo e del disingano, Corelli, concertino, se terá voltado para o autor e dito a propósito da abertura: “Meu caro saxão esta música é no estilo francês [as aberturas de Haendel são sempre em estilo francês] que não entendo”. E logo o caro sassone escreveu em seu lugar uma sonata em estilo corelliano.
 
Haendel chegou a Inglaterra como compositor de óperas “italiano”, e “italianas” foram também outras obras que aí escreveu. É óbvio que os Concerti Grossi op 3 e op. 6 seguem o modelo de Corelli. É assim lógico que agrupamentos especializados no barroco italiano os abordem – mas atenção, o Haendel propriamente da estadia em Itália já tem sido abordado por intérpretes transalpinos: Alessandrini gravou, e admiravelmente, o tal Il trionfo del tempo e del disingano, Fabio Bonizzoni e La Risonanza estão a fazer na Glossa, como já foi dito, uma notável série das cantatas italianas.
 
Importam estas precisões tais as pretensões que Giovanni Antonini afirma no livrete, não se coabindo mesmo de criticar o “estilo seco de certos agrupamentos, e nomeadamente algumas falanges inglesas e holandesas”. Bem, é caso para dizer que depois de ouvir Il Giardino Armonico o desejo é o de voltar a escutar o brilhantismo e fluidez da Academy of Ancient Music dirigida por Andrew Manze (Harmonia Mundi).
 
E, no entanto, o triplo disco até abre de modo prometedor com um majestoso Concerto nº 1. Mas rapidamente vem ao de cima o gosto forte dos contrastes – o exagero mesmo –, da acentuação dos primeiros tempos e dos golpes das arcadas dos milaneses, desfigurando as frases. Se o ripieno é sólido, o concertino é terrivelmente desconexo.
 
Já o Largo do Concerto nº 2 deixa antever essa desconexão. A partir daí não pára. A Polonaise do Concerto nº3 é transformada numa espécie de “Alla Rustica” de teatralidade sem nexo, o Larghetto e staccato inicial do Concerto nº 5 é a viva demonstração da incompreensão do estilo haendeliano, etc. Surpreendentemente o grupo italiano só dá mesmo um ar da sua graça no menos italiano dos movimentos, a Hornpipe do Concerto nº 7. Sobretudo, tudo ou quase é interpretado da mesma maneira, terrivelmente monótono.
 
Já alguém sugeriu que, por certo involuntariamente, a aliás mirabolante imagem de capa deste álbum, com o grupo fora de um autocarro que parece ter problemas técnicos, é uma inesperada metáfora da “avaria” que o próprio disco é no percurso de Il Giardino Armonico, uma tremenda decepção.
 
 
 
Nota – Dada a inflação de lançamentos e eventos handelianos, também muito haendeliana andará esta página. Apesar de chegarem novos lançamentos quase todas as semanas, tentarei contudo variar da circunstância comemorativa.