"Furore" e furor
Haendel
Furore
Árias de “Serse”, “Teseo”, “Giulio Cesare”, “Admeto”, “Hercules”, “Semele”, “Imeneo”, “Ariodante” e “Amadigi”
Joyce diDonato
Les Talens Lyriques, Christophe Rousset
Virgin
A meio-soprano norte-americano Joyce DiDonato começou por se notabilizar em papéis rossinianos, no Barbeiro de Sevilha e na Cenerentola. De Rossini a Haendel foi um passo, o que se compreende, porque dadas ainda notórias diferenças, como os affetti da estética barroca próprios às óperas do caro sassone, ambos são os grandes mestres (eles sim, se bem que possamos acrescentar Vivaldi) do que é efectivamente o bel canto, o canto ornamentado – e não, como erroneamente (não me canso de o repetir) se repete, os compositores do primeiro romantismo, Bellini e Donizetti, já de canto spianato (de linha aplanada), embora ainda com alguns resquícios “belcantistas”.
Em 2004, DiDonato estreava-se em Haendel num delicioso disco de duetos operáticos com Patrizia Ciofi, “Amor e gelosia” (Virgin), imaginativamente organizado e dirigido, surpresa, por Alan Curtis – ele que por hábito tão académico é. Entretanto cantou em cena esse grande “papel” que é a Dejanira do Hercules, uma das tais oratórias não-biblícas de Haendel, verdadeiros dramme per mùsica, que têm vindo a ser representadas com alguma regularidade. A sua voz também tem vindo a evoluir, mais aguda, entre o mezzo e o soprano, e de facto até gravou mesmo uma parte de soprano, outro papel handeliano, o de Alcina na ópera homónima, gravação que aliás acaba de ser lançada – a extensão e facilidade da sua voz são aliás bem patentes neste disco.
Falei dos affetti barrocos. DiDonato não só escolheu Haendel para o seu primeiro recital, como um tipo de árias particular, de um affetto específico, o furore, mostrando os seus formidáveis meios. Todavia é preciso fazer algumas precisões: escolheu a cantora aproximar-se de uma maior caracterização de duas personagens, a Medea de Teseo (tenha ela oportunidade e que espantosa maga deve ser) e a Dejanira de Hercules, com várias árias de uma e outra, sendo que Dolce riposo da primeira e Then I am lost… da segunda não são árias de furore. Por outro lado, e apesar da secção central, é duvidoso que o famoso Scherza infida de Ariodante caiba no objectivo programático – é mais um lamento. Ora, contradição, a interpretação dessa ária, superlativamente admirável, é o pináculo do recital, enquanto no papel que mais se esperaria de DiDonato, o Where shall I fly? de Dejanira (e que por alguma razão encerra o programa), porventura por marcas da experiência cénica, é de um exagero de efeitos de todo despropositado.
A escolha do programa é interessantíssima, mesclando trechos de obras mais conhecidas com outras que o são muito menos. A robustez da voz e a facilidade da emissão impressionam, mas ainda mais a inteligência do rubato e do fraseado, sobretudo da conclusão das frases, e da coluratura (embora com alguns gorgejos dispensáveis), a eloquência (Hence, Iris hence away da Semele, mesmo que não faça esquecer a histórica interpretação de Marilyn Horne), a formidável autoridade (Orride larve…/Chiudetevi miei lumi do Admeto), tudo isso tornam marcante esta estreia em recital de Joyce DiDonato, confirmando-a sem margem para dúvidas como uma intérprete haendeliana a considerar. Infelizmente, e não é pequeno pormenor, o acompanhamento de Les Talens Lyriques e Christophe Rousset é só isso, “acompanhamento” sem chama dramática.
Pelas objecções apontadas também me deixa algo reservado o imenso furor em torno deste recital, que de qualquer modo, é óbvio, não pode deixar de ser um disco recomendado.