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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Memória de Berlim e do muro - II

 

 
 
Mas o muro desapareceu mesmo? Ao longo de dez anos não temos deixado de nos interrogar sobre o Mauer am Kopf, o “muro na cabeça”, essa divisão mental e cultural que ainda permanece entre os wessies, os do Oeste, e os ossies os de Leste, estes inclusivamente exibindo marcas do exército soviético e daquela estética oficial da RDA que, na sua mistura de prussianismo e estalinismo, era ainda mais tenebrosa que a da União Soviética — e esses são sinais visíveis da ossienostalgie, da nostalgia pela velha RDA, campo onde manobram e se alimentam os comunistas mas também a extrema-direita.
 
Sucede que agora às noites podemos ir ao cosmopolita “Newton Bar”, ao pé de Friedrichstrasse, mas não longe dali fica o “Tresor”, discoteca instalada um antigo “bunker”, onde alternam noites jovens e “techno”, festas durante o Festival de Cinema e celebrações da velha RDA.
 
E é percorrendo hoje as ruas e sobretudos os locais nocturnos de Berlim que nos sucede ter não nostalgia mas melancolia (“exactamente porque o carácter melancólico é perseguido pela morte, são os melancólicos que melhor sabem decifrar o mundo”, escreveu Susan Sontag no seu ensaio sobre Walter Benjamin, Sob o Signo de Saturno), melancolia por essa Berlim Oeste que, afinal, também ela acabou com a queda do muro e a reunificação.
 
Berlin bleit doch Berlin, Berlim continua a ser Berlim; mas será a mesma? Não, já não é, porque felizmente o muro abateu-se e com ele o socialismo real, mas não deixemos de estar atentos ao muro que permanece nas cabeças e não queiramos recalcar a melancolia que também envolve a nova condição de uma cidade una e democraticamente regida.
 
As noites de Berlim já não acabam freneticamente numa giga, essa dança rápida com que habitualmente se concluem as suites, mas com pavanas por uma vivência defunta — e sendo a pavana uma dança cerimoniosa é também a nossa cerimónia dos adeuses.
 
 

“Público” de 11 de Novembro de 1999