Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Memória de Berlim e do muro - I

 

 

 

 
 
 
Pavana para uma Berlim defunta
 
 
Vai fazer agora dez anos [fez agora vinte anos] que, com júbilo, soubemos a notícia da queda do Muro de Berlim. Os cidadãos de Berlim Leste e da Republica Democrática Alemã iam finalmente poder respirar a liberdade e escapar-se das malhas opressivas do socialismo real. O que no júbilo do momento não intuímos é que acabava também uma parte da História e das nossas vidas, dos que moravam lá ou que, como eu, muitas vezes lá iam, desses que tínhamos a vivência de Berlim Oeste, cidade cercada por muro e arame farpado, ilha rodeada de comunismo por todos os lados.
 
Como era essa vivência? Frenética, respirando sofregamente cada dia e ainda mais cada noite, como se pudessem ser os últimos das nossas vidas, já que se existia à face do planeta um ponto em que a realidade dos blocos antagónicos e da possibilidade de guerra nuclear era bem perceptível, esse ponto era Berlim.
 
Íamos até à esquina de Friedrichstrasse e Ecktrassse, ao “Checkpoint Charlie”, posto fronteiriço entre os sectores americano e soviético, onde, com um carimbo no passaporte, podíamos passar de um lado para outro da cidade dividida. Íamos até ao bairro pobre de Kreuzberg, junto a esse edifício de Siza Vieira, bem junto ao muro, onde alguém escrevera “Bonjour Tristesse”.
 
Procurávamos os rastos de Berlim de antes da guerra. De dia, os rastos da metrópole cuja vivência Walter Benjamin relatara em Infância Berlinense“Não encontrar o caminho numa cidade não é muito importante, mas perder-se numa cidade, como as pessoas se perdem numa floresta, exige prática... Aprendi essa arte muito tarde”. À noite, os rastos dos “cabarets”, das Marlenes Dietrich e Sallies Bowles que Christopher Isherwood narrara em Goodbye Berlin (base de Cabaret, o espectáculo teatral e depois o filme).:
 
Como eram intensas as noites de Berlim Oeste! Íamos ao Hebbel e à Schaubünhne, dois dos mais importantes locais de actividade teatral do mundo, ao “Terzo Mondo”, uma taberna grega que era ponto de encontro de cinéfilos e de convívio de imigrantes do Sul da Europa (até gregos e turcos confraternizavam), ao Metropol, uma antiga igreja de que se mantinha a fachada mas que no interior se transformara em templo de rock, ou a discotecas, clubes ou cervejarias de Kreuzberg. Eram longas noites, e quando a madrugada chegava, sabíamos que tínhamos conseguido viver mais um dia.
 
Por vezes passávamos para o lado de lá, à superfície, em “Checkpoint Charlie”, ou subterraneamente, na estação de metro de Friedrichstrasse. Então, íamos até ao mais jovem e intelectual bairro de Berlim Leste; Pranzlauerberg.. Eventualmente subíamos ao alto da torre das telecomunicações em Alexanderplatz, o único ponto em que se avistava todo a grande cidade, como se não houvesse Oeste e Leste, como se não houvesse um céu também dividido — Der Geteite Himmel, título de um romance de Christa Wolf, esse onde Wenders pôs anjos em Der Himmel über Berlin/O Céu Sobre Berlim  que por cá se chamou As Asas do Desejo. Por mim, ia frequentemente à Komische Oper, ali tão perto do muro e da Porta de Brandenburgo, ver espectáculos com encenações de Walter Felsenstein, Joachim Herz ou Harry Kupfer.
 
Depois veio o júbilo e toda essa imensa alegria, dos que a Leste se tinham manifestado proclamando “wir sind der volk/ nós somos o povo”, e dos que a Oeste os acolhiam, até saudando esses muitos poluídores Trabants, os quase arqueológicos carros da RDA, cheios de gente que vinha respirar a liberdade e começar a descobrir o consumismo ocidental nos grandes armazéns do KaDeWe. E, inversamente, passámos a ir de Oeste a Leste sem guardas-fronteiriços a espreitarem-nos de alto a baixo, já sendo solicitados para um pequeno tráfico de cigarros americanos, dólares ou marcos ocidentais, junto à estação de metro de Alexanderplatz, ou dentro dela.
 
E depois a RDA desapareceu e Berlim passou a ser uma única cidade, com esse imenso deserto onde antes o muro se erguera, em Postdamerplatz, bem no centro da cidade, em “Berlim-Mitte”; e depois, nesse mesmo local começou o estaleiro das grandes construções, como a torre da Daimler-Benz, projectada por Renzo Piano, um dos pólos de um triângulo que hoje inclui também a cúpula transparente, desenhada por Norman Foster, do velho Reichstag de tão sinistras memórias (hoje resgatado e sede do Parlamento da nova Alemanha una e democrática) ou a espectacular Passage interior de Friedrichstrasse, devida a Jean Nouvel, que com o Museu Judaico de Daniel Liebeskind são referências obrigatórias nesse grande museu de arquitectura que é a nova Berlim.