Purcell, sociologia de um génio
Henry Purcell (1659-1695) de quem ora celebramos os 350 anos do nascimento, constitui um daqueles casos da história da música a propósito do qual ocorre o intento de Norbert Elias sobre Mozat, “sociologia de um génio”. Génio precoce e de vida breve, 36 anos, e caso único de génio na música britânica entre o maneirismo da “idade de ouro” elisabetiana e jacobita e o século XX. Só esses três factos, a genialidade do designado “Orpheus Britannicus”, a brevidade da vida e o seu estatuto de caso isolado, são suficientes para o reconhecer mesmo entre os mais singulares autores da história da música europeia.
Mas Purcell foi também fruto de um quadro histórico e de circunstâncias várias. Quando nasceu vigorava ainda a “commonwealth” do puritano Cromwell, de um rigor e severidade tais que mantinha fechados os teatros. Mas logo no ano seguinte o pretendente Stuart regressa e é coroado como Carlos II – era a “Restauração”, época de faustos e prazeres. A Chapel Royal é restabelecida e para ela Henry Purcell entra muito jovem como menino do coro. As mortes sucessivas dos mestres de capela Henry Cooke e Pelham Humphrey levaram ao cargo o mentor de Purcell, John Blow. A voz tendo mudado, Purcell permaneceu no entanto ao serviço da capela como copista e organista, em contacto por certo com o compositor mais célebre da altura, Matthew Locke. Quanto este por sua vez morre, em 1677, Purcell torna-se “composer-in-ordinary” dos violinos da capela real, os “Four and Twenty Fiddlers” instituídos por Carlos II à imagem dos “24 Violons du Roy” do seu protector de exílio, Luís XIV. Eis então Henry oficiando em compositor escrevendo “anthems” (hinos religiosos), acolhendo o influxo italiano mas também estabelecendo um laço com a tradição perdida do maneirismo com as “arcaìzantes” e extraordinárias Fantasias for the Viols.
Em breve se dedica também a escrever música para o teatro, a arte mais celebrada da Restauração. A sua reputação estava consagrada quando compõe para a coroação do novo rei, Jaime II, em 1685. O catolicismo deste e a perspectiva de nascimento de um herdeiro estarão na origem da revolução de 1688 que leva ao poder Maria e o seu marido Guilherme de Orange. A Queen Mary virá a ser a grande protectora de Purcell e se o autor se destacará como compositor de Odes estas tanto serão dedicadas à padroeira da música, Santo Cecília, como à Rainha, nos seus aniversários.
Na corte de Luis XIV tinham os Stuarts exilados conhecido o novo género da “tragédie lyrique”, contraponto francês à recusada ópera italiana. Mas por sua vez o género francês não teve acolhimento em terras britânicas. Em vez disso, e na sequência da tradição da “masque”, floresceu um teatro musical, ou antes meio falado e meio musicado, de que Purcell será o mestre esplendoroso. Mas este génio tão peculiar ainda fará uma obra de todo singular, uma ópera mesmo, uma ópera de câmara, Dido & Aeneas, provavelmente para um colégio de meninas, a escola de Josias Priest, que a posteridade consagrará como a sua obra mais celebrada, e se tornará mesmo – paradoxo para com as suas origens num terreno sem ópera – na mais representada de todas as óperas barrocas.