A sonegação do mecenato
Está escrito o seguinte no Programa do Governo, de resto o programa com que o PS se apresentou ao eleitorado:
“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo, importando retomar a trajectória de aproximação interrompida no passado recente. Ao mesmo tempo, o Governo fixa quatro objectivos complementares: a) desenvolver programas de cooperação entre Estado e autarquias, que estimulem também o crescimento da proporção de fundos públicos regionais e locais investidos na cultura; b) valorizar o investimento culturalmente estruturante, na negociação do próximo Quadro Comunitário de Apoio (2007-2013); c) rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão; d) alargar a outras áreas e, em particular, ao funcionamento dos organismos nacionais de produção artística, o princípio de estabilização de um financiamento plurianual”.
Já nem vou falar da famosa meta de 1% do Orçamento de Estado a qual é mais é que óbvio não ser com este governo, e na presente situação, referência nenhuma, nem a médio nem a longo prazo. Em todo o caso, “Rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”, era um objectivo de grande importância para as dinâmicas culturais, sabendo-se que tem havido uma preversidade intrínseca em captar os apoios mecenáticos para os grandes projectos, e designadamente para as próprias instituições públicas, em primeiro lugar colmatando os limites orçamentais do Ministério da Cultura.
Ora, na extraordinária página electrónica desse mesmo Ministério da Cultura, nessa em que o último comunicado data de Junho, está há muito em destaque um suposto “Novo Enquadramento do Mecenato Cultural”, que de novo nada tem. Ao lado, muito discretamente, de modo quase oculto, quando na secção correspondente se cliqua em Estatuto, aí sim está a informação real, que é estranho ter passado tão despercerbida:“O Decreto-Lei n.º 74/99, que aprova o Estatuto de Mecenato, foi revogado, tendo os incentivos fiscais à Cultura sido incorporados no Estatuto dos Benefícios Fiscais (Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro)”, isto é, no Orçamento de Estado.
O presente governo, em vez de “rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”, fez a mais completa marcha a trás, como se pode verificar pelo clausado legal de Donativo, nos termos do Capítulo X – “Benifícios Fiscais”, Art.º 56- “Noção de Donativo”, D – “Dedução para efeitos do lucro tributável das empresas “, nº6, do O.E.:
“São considerados custos ou perdas de exercícios, até ao limite de 6/1000 do volume de volume de vendas ou dos serviços prestados [até 0,6%, n.b, não vá a dedução para efeitos tributáveis ser mais afectada], os donativos atribuídos às seguintes entidades:
a) Cooperativas culturais, institutos e associações que prossigam actividades de investigação, excepto as de natureza científica, de cultura e de defesa do património histórico-cultural e do ambiente, e bem assim outras entidades sem fins lucrativos que desenvolvam acções no âmbito do teatro, do bailado, da música, da organização de festivais e outras manifestações artísticas e de produção cinematográfica, áudio-visual e lietrária;
b) Museus, bibliotecas e arquivos históricos e documentais;..
Artº 87 -3 – São igualmente revogados: f) O Estatuto do Mecenato, aprovado pelo Decreto_lei nº74/99, de 18 de Agosto”.
Dir-se-á: o Mecenato é um Benifício Fiscal. Certamente que sim. Mas por alguma razão lhe é reconhecido um estatuto próprio, que estava legalmente consignado. Quando era antes preciso criar um quadro alargado de incentivos ao mecenato, com o fim de possibilitar cada vez mais dinâmicas próprias e menos dependentes de apoios estatais; quando era urgente e expresso no próprio Programa do Governo a necessidade de consideração de apoios também a “projectos culturais de pequena e média dimensão”; quando era sim preciso quebrar o ciclo viciado pelo qual até agora, e basicamente, o mecenato tem sido, no fundamental, um complemento financeiro das actividades estatais e não tanto um estímulo a acção autómonas; quando tudo isso era imperioso, o enquadramento legal foi remetido para o regime anual dos Orçamentos de Estado, colocado a níveis em que só pode em termos reais ser minimamente significativo por parte de muito grande empresas.
E é facto da mais patente hipocrisia política que na página electrónica do Ministério da Cultura esteja em destaque um pretenso “Novo Enquadramento do Mecenato Cultural” quando este governo procedeu sim ao fim do Enquadramento do Mecenato Cultural.