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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Uma deriva perigosa

 

 

 

 

Hoje no Público

 

 

 

 

Gabriela Canavilhas herdou uma pasta duramente afectada no governo Sócrates I, pela desastrosa gestão da dupla Isabel Pires de Lima e Mário Vieira de Carvalho e pela invisibilidade política de José António Pinto Ribeiro. Acrescente-se que José Sócrates, como lhe é habitual, diz uma coisa e faz outra: se no momento sucessivo à derrota nas eleições europeias apontou como um erro do seu governo não ter investido na Cultura como o fez, significativamente, na Ciência, tudo continuou não obstante na mesma, sem consideração do sector como estratégico.

 

Diga-se também que Canavilhas é uma pianista, uma artista, o que lhe poderá favorecer a sensibilidade tão necessária na gestão pública da cultura, e que deu amplas provas de energia e combatividade no seu trabalho como gestora da Associação da Orquestra Metropolitana de Lisboa.

 

E diga-se ainda que nas semanas recentes deu mostras de decisão política, na nomeação de Maria João Seixas para a Cinemateca e no desígnio prioritário de dotar o Porto de uma Casa do Cinema, na substituição de Paulo Henriques por António Filipe Pimentel na direcção do Museu Nacional de Arte Antiga, na apresentação de um plano estratégico para os museus no século XXI e enfim, agora, ao tomar a decisão de finalmente extrair as ilações da desastrosa gestão de Christoph Dammann no São Carlos, e de agir com vista à sua substituição.

 

Tudo isto dito, a entrevista no Público de quarta-feira, centrando-se na economia do sector cultural, tendo como fundo o estudo de Augusto Mateus sobre o sector cultural e criativo em Portugal, tem algumas reafirmações importantes mas mostra também uma ministra obnubilada pelo discurso das perspectivas económicas, numa deriva perigosa. Ora, se o estudo é sem dúvida importante, também há que dizer que a vulgarização das ideias de Richard Florida sobre as “cidades criativas” se transformou num tópico do novo capitalismo da sociedade de informação e do conhecimento.

 

Sem dúvida que a cultura engloba as indústrias culturais, aliás de âmbito reduzido em Portugal (uma indústria da edição livreira flagelada pela sua própria sobreprodução, uma indústria discográfica em crise e uma indigente indústria de telenovelas sem perspectivas de exportação), mas já as agora tão na moda “indústrias criativas” são de um âmbito que em boa parte tem mais a ver com a estrita economia.

 

Gabriela Canavilhas reitera, o que se anota, que as actividades culturais sem vocação de mercado são “o cerne, o núcleo duro da actividade do MC”. Mas ao mesmo tempo, baixa os braços e prescinde de um reforço orçamental significativo, diz que “os fundos têm estado a crescer”, quando sobretudo têm estado estagnados ou mesmo em queda (vide o caso do cinema, com um decréscimo na última década de mais de 30 por cento, como recentemente alertava um importante Manifesto pelo cinema português), e, o que é mais grave, e tanto mais vindo de uma artista, retoma o nefasto discurso da “subsídio-dependência”.

 

Não serei eu que vou desmentir a existência de “clientelas”, para as quais chamei reiteradamente a atenção ao debruçar-me sobre as promiscuidades no sector. Mas esquece-se, e é grave que a ministra da tutela se esqueça, que a dita “subsídio-dependência” resulta de um imperativo constitucional de “acesso à cultura”, à criação e fruição, e das grandes fragilidades do tecido artístico e cultural. Mais: se Canavilhas diz que se “pode e deve incentivar por via de linhas de crédito especiais para apoio das pequenas empresas que possam potenciar a manufactura e o artesanato [em termos artísticos] português”, é no entanto omissa em três aspectos chaves.

 

Um é a cobertura territorial do país, ponto que certamente se deduz também do imperativo constitucional, quando o essencial do sector continua a exercer-se no Porto e sobretudo Lisboa, a tão propalada Rede Nacional de Cine-Teatros é uma ficção, e se felizmente já há bons exemplos de centros culturais e teatros fora das grandes urbes, há um problema geral de sustentabilidade. No fundo, e ironicamente, mesmo nos termos desta panaceia das “indústrias culturais e criativas”, faltam “clusters criativos” disseminados pelo país.

 

Um segundo ponto é falta de referência ao mecenato. Recordo que a revisão do Estatuto do Mecenato, nomeadamente com vista ao apoio a projectos de pequena e média dimensão, estava inscrita no Programa do Governo de Sócrates I, e afinal o Estatuto foi pura e simplesmente abolido, essas actividades sendo apenas consideradas no âmbito dos benefícios fiscais previstos no OE. Ora, para contribuir para o alargamento das economias da cultura, é crucial incentivar o mecenato e dar-lhe o devido estatuto.

Enfim, no tocante à internacionalização, Canavilhas fica-se pelas ditas linhas de crédito e por uma “transversalidade interministrial”, escapando à questão de fundo: manifestamente o Instituto Camões não corresponde a essa necessidade e fica-se como ainda agora reafirmado, pela “lusofonia”. É imprescindível pensar noutro tipo de estrutura, uma agência, com capacidade de captação de mecenato.

 

A ministra declara taxativa que “o Ministério da Cultura tem que ter a coragem de diminuir o número de apoios e apostar na qualidade”. Os termos da declaração são inquietantes se não se tomarem em conta a cobertura territorial, os primeiros projectos ou obras e aqueles que se apresentem como mais inovativos.

Reafirme-se pois o sublinhado no “núcleo duro”, mas da entrevista deduz-se um sentido de potenciar empresarialmente o sector que é uma deriva perigosa. Donde, a necessidade de uma chamada de atenção.