Uma página de crítica
É isto um blog? Tecnicamente sim, mas o seu intento é outro. Letra de Forma será uma página de crítica e opinião, prosseguindo no espaço digital aquela que foi a minha actividade na imprensa ao longo de muito anos. Como tal, e de acordo com a defesa que sempre fiz de que a crítica deve ser também uma actividade profissionalizada, este espaço, diferentemente da generalidade dos blogs, é também ele feito numa base profissional. De algum modo, aliás, retomam-se assim questões que tem vindo a suscitar importantes controvérsias sobre as relações dos espaços críticos na imprensa e nos blogs, e sobre se eventualmente estes estão a contribuír para o definhamento de tais espaços no meio imprenso. O anacronismo do título, Letra de Forma, é também uma resposta pessoal: aqui se escreverá tal como na imprensa, interessando menos, mesmo muito pouco, algumas das interacções características da blogosfera.
Em Outubro de 2006, entendi demitir-me do Público, jornal de que havia sido um dos fundadores. As razões então tornadas públicas baseavam-se num motivo que em princípio me era alheio: chocaram-me vivamente os processos de rescisão de contractos então encetados, sem que a direcção editorial e a direcção da empresa se questionassem elas próprias sobre a sua fundamental quota-parte de responsabilidades na situação do jornal. Fui então acusado pelo director de estar ressentido com uma hipotética “falta de protagonismo” no processo de reestruturação, e de uma minha inconstância : “já se demitiu do Público várias vezes” mas teria voltado sempre. A resposta “ad hominem” questionava o meu carácter. Está à vista que não voltei, contra-resposta suficiente.
É certo que outros prenúncios de ruptura existiam. De há muito que eram patentes as profundas divergências entre os meus comentários e opiniões e a quotidiana informação cultural do jornal, e já a série de artigos “A ‘crítica’ ainda existe?”em Junho/Julho de 2006, para além de reflexão genérica, desenhava uma amplitude de desacordos que de por si não podiam excluir a possibilidade de ruptura.
Isto dito, a relação cessou de facto, e evidentemente com isso uma condição particular de fundador, que não me cabe mais invocar – ou não cabe ser invocada – a não ser na sua historicidade factual. Não tenho por isso qualquer espécie de conflito com o Público ou a sua direcção. Apenas verifiquei, com alguma estupefacção diga-se, que no projecto de reestruturação do jornal concretizado em Fevereiro, houvesse quem tendo responsabilidades afirmasse “fizemos o novo Público como se o Público não existisse”, depreciando assim o capital propriamente público do jornal, e que tendo-se aquele apresentado como novo mantivesse por omissão de mudança o Estatuto Editorial da fundação, o que, isso sim, me suscita uma perplexidade pessoal, por num objecto a que sou inteiramente alheio o seu código genético, a sua declaração programática, ser ainda aquela com a minha própria impressão digital, passe o paradoxo do enunciado.
Mas repito, para que fique bem claro: isso são factos passados que só agora aqui se invocam na medida em que a Letra de Forma retoma aquelas que foram as minhas práticas em papel impresso, portanto propriamente em “letra de forma”, e não tenho qualquer espécie de conflito com o Público ou a sua direcção. Ou antes tenho com o jornal a relação de leitor (e é o único jornal português de que sou regular leitor) e enquanto observador dos media posso por isso tê-lo também como objecto privilegiado de algumas observações, designadamente no tocante às questões de crítica – e do seu estatuto – que mais me importam, bem como na análise de como se operou, ou tem vindo a operar, a sua passagem ao estatuto de bi-media, em papel impresso e digital, que é hoje o desafio maior da imprensa.
Houve entretanto uma breve passagem pelo “Diário de Notícias”, cessada por vontade própria no momento em que tive conhecimento de qual era a nova direcção do jornal. Um Pacheco Pereira, que tantos comentários pertinentes tem feito à intromissão dos media na vida privada, à sua devassa mesmo, e ao populismo, não se abstem contudo, pondo os princípios entre parênteses, de designar o “Correio da Manhã”, como “imprensa popular de qualidade” – o jornal sendo a principal publicação do grupo Cofina, de que uma das outras é a revista “Sábado”, em que o mesmo Pacheco Pereira também é colunista. Por mim em caso algum admitiria que o nome figurasse na ficha de um jornal, como passou a ser o “Diário de Notícias”, dirigido por quem no “Correio da Manhã” tristemente fixara novos patamares de devassa e de campanhas visando o carácter e a integridade de pessoas.
No actual contexto – e não creio haver horizontes de mudança – a colaboração na imprensa escrita é um capítulo para mim encerrado, com algum desconforto é certo em função dos factos concretos, mas também, e tenho de o dizer com toda a sinceridade, com um indesmentível alívio. Sem prejuízo de manter a possibilidade de me exprimir na imprensa por razões de ordem civíca e desde que haja nesses casos de excepção espaço de acolhimento – tal como não me tenho recusado a responder a questões ou entrevistas que me êm sido solicitadas -, o
passado é passado e os horizontes são agora outros.
Quaisquer que tenham sido as dificuldades resultantes da desvinculação de jornais, houve também uma acrescida disponibilidade para retomar outras práticas, designadamente de programação, que não menos me importam. O ciclo dedicado ao cineasta Hou Hsiao-Hsien na Culturgest, o labor dedicado ao recente DocLisboa, como programador associado e comissário da retrospectiva de “Diários e Auto-Retratos”, a programação para a Orchestrutópica do concerto “Metropólis” ou o trabalho com Tiado Guedes e Maria Duarte no espectáculo Ópera, fazendo a assistência artística, foram-me particularmente gratificantes.
O acolhimento na página da Culturgest da coluna Derivas permitiu-me também encontrar uma linha de reflexão sobre questões culturais genéricas, e nomeadamente de tecno-cultura, que há muito desejava, mas que os modos prementes de solicitação da mais imediata actualidade vinham inviabilizando na prática de jornal. Mais recentemente, O Estado da Arte, espaço mensal em linha todos os dias 15 em www.artecapital.net , é um tipo de reflexão e de opinião num campo específico.
Contudo, foi-me insistentemente feito notar, e eu próprio não deixei de amiúde o sentir, que ficavam de facto em faltas as práticas de crítica e de opinião mais conformes ao meu perfil público. E são essas práticas que aqui se retomam agora em Letra de Forma. E assim, usando ainda a ferramenta tecnica do Sapo Blogs, Letra de Forma será uma página de crítica e opinião, página de textos mais do que própriamente "posts", prosseguindo no espaço digital aquela que foi actividade na imprensa ao longo de muito anos