As Vésperas do nosso deslumbramento
Monteverdi
Vespro della Beata Vergine
La Petite Bande, Sigiswald Kuijken
Casa da Música, 8 de Novembro
Se há obra que, creio bem (e tenho-o praticado), justifica a ideia de peregrinação, essa é as Vespro della Beata Vergine de Monteverdi. Só que neste enunciado há também uma questão: ao certo que “obra” são as Vespro?
A famosa colectânea de 1610 é isso mesmo, uma “colectânea” de música sacra, mesmo uma “enciclopédia”, na definição de Philippe Beaussant: “Todas as formas, maneiras e estilos aí se cruzam e até se misturam. Vastos salmos a seis, sete, oito, ou mesmo dez vozes em dois coros; antífonas para uma só voz, ou para dois tenores, ou para três vozes masculinas; páginas virtuosas e meditações sobre frases de cantochão, monodias recitativas, dignas do lamento de Orfeu nas campanhas da Trácia, e sonatas para oito intrumentos sobre um Sancta Maria, ora pro nobis indefinidamente repetido; sumptuoso aparelho instrumental ou baixo contínuo sozinho...”.
Que Claudio Monteverdi aspirava a uma dedicatória papal, sabe-se. Que por certo grande parte dos trechos, senão todos, tinham sido originalmente destinado à Capela Ducal de Santa Bárbara em Mântua, é dedução lógica. E, como se sabe, em vez do ambicionado caminho de Roma, Monteverdi viria sim a rumar a Veneza, três anos depois.
Esta contextualização é importante porque de um modo ou outro tem influenciado diferentes interpretações e realizações da colectânea: já houve quem postulasse que seriam originalmente uma “Vésperas de Santa Bárbara” (hipótese do musicológo Graham Dixon, com conretização na gravação de Harry Christophers), quem a explorasse no sentido da policoralidade veneziana (Gardiner), ou até quem insista, em nítido contrassenso, que elas são em si mesmo um ofício, e proceda a uma reconstituição litúrgica (McCreesh).
Já ouvi Vésperas das mais grandiosas e, diría pelos efectivos, “de câmara”, e até tive ocasião de ouvir uma e outra concepções em intervalo de poucos dias, entre Salzburgo e Innsbruck, quando dos 450 anos da morte de Monteverdi, em 1993. Mas, como todos os que tiveram a ocasião de assistir a essa realização prodigiosa, recordo sobretudo, e ainda recordo emocionadamente quase 20 anos passados, aquela que foi dirigida por Jordi Savall nos Jerónimos a 26 de Outubro de 1988, imediatamente antes da gravação (um registo extraordinário, que ele acaba de reeditar, remasterizado, na sua editora AlliaVox). Longe das frequentes facilidades e jogadas de marketing que agora lhe são usuais, era um Savall em apoteose, e que também ele perspectivava as Vésperas no horizonte veneziano, dirigindo uma equipa como não mais se reuniu: Montserrat Figueras, Maria Cristina Kiehr, Guy de Mey, Gian Paolo Fagotto, Bruce Dickey, Pedro Memelsdorf, Stephen Stubbs, Rolf Lislevand, Andrew Lawrence-King, Rinaldo Alessandrini ou Marco Mencobini!
Sigiswald Kuijken
E, agora, houve estas espantosas Vésperas de Kuijken na Casa da Música. Opções reduzidas, apenas com dez vozes reais (pormenor importante : quase todas idiomáticas e com cores latinas, e foi com as duas que o não eram, as sopranos, que houve o único ligeiro desasjustamento, no "Pulchra es" ), cada uma delas com papel específico, realização instrumental entre a severidade sempre presente do baixo e a exuberância magnificente dos cornetos, “instrumentarium” incluíndo violinos e violas especialmente reconstituídos de acordo com iconografia da época (Caravaggio, nomeadamente), em posição mais baixa que o habitual, não tanto “da brazzo”, mas “da spalla”, escrupulosa observação das indicações instrumentais da partitura e restrição dos efectivos a essas indicações - assim, por exemplo, as flautas transversas foram usadas apenas no "Ave Maria Stella" e "Magnificat" finais.
Podia-se temer esta obra no específico espaço da Casa da Música? Magistral lição de engenho e simplicidade a de Kuijken: com pequenos movimentos, por exemplo voltando os cantores de costas para o público, ou orientando os cornetos em direcções opostas, realizavam-se os efeitos da espacialidade.
Com Sigiswald Kuijken e La Petite Bande já tinha eu tido a oportunidade de ouvir uma intensa interpretação de uma grande obra sacra: a Paixão Segundo São João de Bach, na própria sexta-feira de paixão, em 1993, em Antuérpia, com o Evangelista de Christoph Prégardien. Foi prodigiosa e comovente a beleza agora destas Vespro della Beata Vergine na Casa da Música, um dos concertos mais memoráveis dos últimos anos.