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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Manifesto pelo cinema português - I

 

Nunca como nos últimos vinte anos teve o cinema português uma tão grande circulação internacional e uma tão grande vitalidade criativa. E nunca como hoje ele esteve tão ameaçado.

No mesmo ano em que um filme português ganhou em Cannes a Palma de Ouro da curta-metragem e tantos e tantos filmes portugueses foram vistos e premiados um pouco por todo o mundo, o cinema português continua a viver sob a ameaça de paralisação e asfixia financeira.

Desde há dez anos que os fundos investidos no cinema não cessaram de diminuir: a produção e a divulgação do cinema português vivem tempos cada vez mais difíceis.


E a criação de um fundo de investimento (e a promessa de um grande aumento de financiamentos) revelou-se uma enorme encenação que na generalidade só serviu para legitimar o oportunismo de uns tantos.

O cinema português vive hoje uma situação de catástrofe iminente e necessita de uma intervenção de emergência por parte dos poderes públicos e em particular da senhora ministra da Cultura.

O cinema português - o seu instituto -, ao contrário do que é repetido vezes sem conta, é financiado por uma taxa (3,2 por cento) sobre a publicidade na televisão, e não pelo Orçamento de Estado.


O financiamento do cinema português desceu na última década mais de 30 por cento e a produção de filmes, documentários e curtas-metragens não tem parado de diminuir.

O fundo de investimento no cinema, que era suposto trazer à produção 80 milhões de euros em cinco anos, está paralisado e manietado pelos canais de televisão e a Zon Lusomundo, e não só não investiu quase nada, como muito do pouco que investiu foi-o em coisas sem sentido.

Por isso se torna imperioso e urgente

a) normalizar o funcionamento desse fundo e multiplicar as verbas disponíveis para investimento na produção de cinema, nomeadamente multiplicando as receitas do Instituto de Cinema, e tornando as suas regras de funcionamento transparentes e indiscutíveis;


b) normalizar a relação da RTP (serviço público de televisão) com o cinema português, fazendo-a respeitar a lei e o contrato de serviço público, assinado com o Estado português;


c) aumentar de forma significativa o número de filmes, de primeiras obras, de documentários, de curtas-metragens, produzidos em Portugal;


d) e actuar de forma decidida em todos os sectores - não apenas na produção, mas também na distribuição, na exibição, nas televisões (e em particular no serviço público), e na difusão internacional do cinema português.


Depois de mais de seis anos de inoperância e desleixo dos sucessivos ministros da Cultura, que conduziram o cinema português à beira da catástrofe, impõe-se:


1. Normalizar o funcionamento do FICA (Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual), reconduzindo-o à sua natureza original: um fundo de iniciativa pública, tendo como objectivo o aumento dos montantes de financiamento do cinema e da ficção audiovisual original em língua portuguesa e o fortalecimento do tecido produtivo e das pequenas empresas de produção de cinema. E fazer entrar nos seus participantes e contribuintes os novos canais e plataformas de televisão por cabo (meo, Clix, Cabovisão, etc.), que inexplicavelmente têm sido deixados fora da lei;


2. Multiplicar as fontes de financiamento do cinema português, nomeadamente junto da actividade cinematográfica, recorrendo às receitas da edição DVD (a taxa cobrada pela IGAC, cuja utilização é desconhecida, e que na última década significou dezenas de milhões de euros); à taxa de distribuição de filmes (que há décadas não é actualizada) e à taxa de exibição. As receitas das taxas que o Estado cobra ao funcionamento da actividade cinematográfica devem ser integralmente reinvestidas na produção e na divulgação do cinema português (produção, distribuição, edição DVD, circulação internacional);


3. Aumentar as fontes de financiamento do Instituto de Cinema, para aumentar o número, a diversidade, a quantidade e a qualidade, dos filmes produzidos. Filmes, primeiras obras, documentários, curtas-metragens, etc.


4. Apoiar os distribuidores e exibidores independentes, e estimular o aparecimento de novas empresas nesta actividade, de forma a que o cinema português, o cinema europeu e o cinema independente em geral possam chegar junto do seu público. E apoiar os cineclubes, as associações culturais e autárquicas, os festivais e mostras de cinema, que um pouco por todo o país fazem já esse trabalho;


5. Fazer cumprir o contrato de serviço público de televisão por parte da RTP, que o assinou com o Estado português, e que está muito longe de o respeitar e às suas obrigações, na produção e na exibição de cinema português, europeu e independente em geral. E contratualizar com os canais privados e as plataformas de distribuição de televisão por cabo as suas obrigações para com a difusão de cinema português.

O cinema português que vale a pena tem hoje em dia, apesar da paralisia, quando não da hostilidade, dos poderes públicos, um indiscutível prestígio internacional. Os seus realizadores, actores, técnicos, produtores não deixaram de trabalhar, apesar de tudo o que se tem vindo a passar. Está na altura de os poderes públicos assumirem as suas responsabilidades.


É necessária uma nova Lei do Cinema, mas é urgente uma intervenção de emergência no cinema português.




Os realizadores Manoel de Oliveira, Fernando Lopes, Paulo Rocha, Alberto Seixas Santos, Jorge Silva Melo, João Botelho, Pedro Costa, João Canijo, Teresa Villaverde, Margarida Cardoso, João Pedro Rodrigues, Bruno de Almeida, Catarina Alves Costa, João Salaviza


e os produtores Maria João Mayer (Filmes do Tejo), Abel Ribeiro Chaves (OPTEC), Alexandre Oliveira (Ar de Filmes), Joana Ferreira (C.R.I.M.), João Figueiras (Black Maria), João Matos (Terratreme), João Trabulo (Periferia Filmes), Pedro Borges (Midas Filmes)

 

 

 

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Bachianas - III

 

 

 

Bach
Variações Goldberg
Andreas Staier
Gulbenkian, 9 de Março, às 19h
 
Cada realização concreta em concerto de uma obra musical é única, fruto das circunstâncias do momento e do carácter e intensidade da escuta directa. Podemos todavia reconhecer uma interpretação, tanto mais quando se trata de uma tournée promocional de um disco, como sucedeu com este recital em que Andreas Staier interpretou as Variações Goldberg. Acontece que houve uma diferença de vulto: o instrumento – o Dowd da Gulbenkian é completamente diferente do Sidey segundo Hass do registo discográfico, e este, como referido, é em particular fundamental à gravação de Staier.
 
Diga-se desde já que as diferenças foram bem audíveis e que o intérprete não se “entendeu” do modo mais coerente com o instrumento. Foi mesmo surpreendente a quantidade de notas erradas, o que diria inconcebível num intérprete da craveira de Staier.
 
Mas a concepção global foi evidentemente a mesma entre o disco e o recital. Staier insistiu nos contrastes e na variedade, fazendo uso muito prolífero e frutuoso do registo de alaúde, com ataques menos fulgurantes e tempos menos vertiginosos nalgumas variações, mas com um jogo digital e variabilidade agógica verdadeiramente impressionantes, alçando-se a um nível ímpar de magnificência na parte final, depois da tal célebre Variação XXV.
 
Se o seu disco é uma experiência pelas opções radicais, esta realização em recital, ainda que com as tais incompreensíveis notas falhadas, foi uma demonstração eloquente.
 
 
PS – Já que vieram à baila os concretos instrumentos, e sendo Staier exímio executante de cravo e também pianoforte, tendo sido ele que veio fazer a estreia do restaurado pianoforte Clementi de Queluz, noutra iniciativa do Em Órbita, e tendo sido ele também a fazer o primeiro recital de pianoforte na Casa da Música, ocorreu-me o recital inaugural do Dowd da Gulbenkian, com Kenneth Gilbert há quase 30 anos, e de novo se me pôs uma questão: quando é que a Fundação adquire um pianoforte?

 

Bachianas - II

 

 

Bach
Variações Goldberg
Andreas Staier
Harmonia Mundi
 
Andreas Staier é um dos mais notáveis músicos actuais, intérprete inteligentíssimo e executante de excepção, virtuose exímio do cravo e do pianoforte. Para um cravista da sua craveira, fez-se longamente esperar a gravação do maior monumento escrito para o instrumento, as Variações Goldberg, o Clavierbüng IV. Quando as interpretou em 2000 em Queluz, no âmbito dos sempre saudosos Em Órbita / Portugal Telecom, e por interessante que a sua interpretação tenha sido, e foi, não deixou de se pressentir que faltava maturar uma concepção. Mas creio que nenhum de nós suporia que fossem precisos 10 anos para finalmente a gravação ser publicada.
 
Desde a Ária inicial pressentimos que este é um caso à parte. Evidentemente que na rica discografia da obra há um caso entre todos de excepção, as duas gravações de estúdio de Glenn Gould, aliás entre si tão diferentes de modo extremo. Mas se há Hantaï (outro caso de duas diferentes gravações), Lars Ulrik Mortensen, Koriolov, Perrahia, Scott Ross, Céline Frisch, etc., há que dizer que esta gravação é, de outro modo, também um caso à parte. Como é óbvio todas as grandes gravações são singulares, mas esta é radical nas suas opções.
 
Dir-se-á que há uma desconstrução da obra, e que embora a interpretação seja historicamente muito fundada (é ver e ouvir as explicações de Staier no dvd que acompanha o cd), é também resolutamente moderna. Não por acaso, a editora solicitou textos para o livrete, em concreto sobre a interpretação, a dois compositores contemporâneos, Isabel Mundry e Brice Pauset, e embora Staier respeite a letra e a forma da partitura ocorre-nos, como gesto, a orquestração por Anton Webern do Ricercare da Oferenda Musical.
 
Desde logo, esta interpretação soa diferente, e de que maneira! A razão está no instrumento, o exuberante, colossal e monstruoso cravo, com dezasseis pés, construído por Anthony Sidey segundo um modelo Hass de Hamburgo, de 1734 - Hamburgo 1734, assim se intitulava precisamente o espantoso recital com que Staier nos deu a conhecer o instrumento. Uma dúvida nos ocorre todavia: se o intérprete utilizou de novo o instrumento noutro magnífico recital, dedicado aos Early Works de Bach, é esse instrumento o mais adequado para uma obra, como as Variações Goldberg, que no entanto até lhe é mais próxima em termos cronológicos que os tais Early Works?
 
Captado de um modo a pôr em relevo a sua imensa sonoridade, de resto com uma ressonância dos baixos mesmo algo incomodativa, o instrumento tem uma variedade de registos que o aproximam do órgão, mas não sem que por vezes a clareza das vozes deixe de ser “esmagada”.
 
Com ataques clamorosos (Variação X, XVI), com uma variedade imensa de registos e de agógica, esta é uma interpretação monumental que atinge o paroxismo na célebre Variação XXV, que aqui nada tem do “espressivo” mais habitual, antes pelo contrário, num tempo lento sublinha esse carácter monumental, naquele que é o mais crítico ponto da interpretação.

 

Bachianas - I

 

 

Bach
Concertos Brandeburgueses BWV 1046-51
Concerto para Cravo BWV 1056, Concerto para Dois Violinos BWV 1043,
Café Zimmermann
Gulbenkian, 7 e 11 de Março, às 19h
 
 
Os Concertos Brandeburgueses são uma das mais célebres obras de Bach e mesmo de toda a música da tradição erudita ocidental, e no entanto, na sua integralidade de colectânea, muito pouco ouvidos em concerto.
 
Tempos houve em que as grandes orquestras filarmónicas os executavam, mas a emergência da interpretação historicamente informada fez com que essa prática fosse abandonada. Mas, por outro lado, os agrupamentos com instrumentos de época raramente os têm preparados em reportório, por razões logísticas e, eventualmente, também de gestão: a variedade do instrumentarium exige um número considerável de executantes, vários para participaram apenas num concerto. Acresce que as características e duração da colectânea não são conformes aos padrões, ou melhor à rotina, da prática dos concertos públicos: são demasiado longos para um concerto, e de menos para dois. A solução mais genérica é de os interpretar em dois concertos, com mais duas obras. Foi isso que agora sucedeu na Gulbenkian com o agrupamento Café Zimmermann, dirigido pela excelente cravista Céline Frisch (entre outros discos, deve-se-lhe uma das melhores interpretações recentes das Variações Goldberg) e pelo violinista Pablo Valetti, grupo que foi buscar o nome ao local de Leipzig onde se reuniu o Collegium Musicum fundado por Telemann e que Bach também dirigiu durante alguns anos.
 
O século XVIII foi precisamente aquele de implantação dos cafés, como parte da civilidade do novo espaço público burguês. Outro sinal dessa consolidação do espaço público foi a maior mobilidade de informações e obras, fazendo emergir culturalmente a noção de “Europa”. Assim o modelo dos concertos grosso e solista espalhou-se pela Europa, com intermediação decisiva da edição das partituras em Amesterdão. Do conjunto de obras concertantes de Bach os Brandeburgueses, verdadeira apoteose do concerto grosso, foram os únicos explicitamente apresentados como uma colectânea, dedicado ao Margrave de Brandenburgo, e se bem que anteriores ao período de Leipzig há grande probabilidade de terem sido executados isoladamente (cada um dos seis concertos, entenda-se) no Café Zimmermann.
 
Fazendo jus ao seu nome, o grupo de Frisch e Valetti teve a particularidade de os gravar não como colectânea, mas num conjunto de discos com outros concertos, quatro pelo menos até ao momento, de “Concerts avec plusieurs instruments” de Bach. A excelência das gravações recomendavam o agrupamento mas o que em concreto se ouviu na Gulbenkian foi no mínimo muito decepcionante, só pontualmente convincente mas também por vezes francamente desastroso, de tal modo que coloca questões que sendo em concreto sobre o grupo, são mais genéricas.
 
Nada substitui a emoção da escuta em directo, mas o disco constitui um meio privilegiado de conhecimento, não só pela sua difusão, como por ser feito com a proximidade sonora adequada, e com diversas tomadas de som até se obter a satisfatória e depois a sua montagem. Acresce que os instrumentos de época têm um som menos volumoso para as actuais salas de concerto, e são mais passíveis de problemas de (des)afinação, e também que se alguns deles têm uma actividade permanente e uma formação regular, muitos constituem-se e reconstituem-se ad hoc – por isso aliás se verifica que haja um número significativo de músicos pertencentes a mais que uma formação.
 
O inusitado facto de as apresentações terem decorrido com quatro dias de intervalo (com outro momento bachiano, as Goldberg por Andreas Staier, de permeio), é sintomático de que o Café Zimmermann não estava em digressão, e que o programa tinha sido menos rodado, feito expressamente para as apresentações na Gulbenkian. Mesmo assim é inadmissível a falta de vigor patenteada, o som empastelado (o pior foi o Sexto Concerto) e as desafinações, como as notas erradas e a falta de notas da trompete no Segundo Concerto, e sobretudo, escandalosa mesmo, a constante desafinação do solista, concertino e co-director Pablo Valetti.
 
Houve alguns momentos melhores, devidos sobretudo ao jogo e direcção de Frisch, no Concerto para Cravo, em fá menor, BWV 1056 (destreza digital, belos arpejos) e Quinto Concerto Brandeburgês que tem uma parte solista para o instrumento muito desenvolvida. Mas no global, como disse, esta ocasião, aguardada com tanta expectativa, foi no mínimo muito decepcionante, por vezes mesmo francamente desastrosa.
 
Foi uma oportunidade perdida, a lamentar.

 

Uma estratégia para os museus

 

 

A nomeação de Gabriela Canavilhas no governo Sócrates II foi acolhida entre a surpresa, a incredulidade perante alguém sem peso político e também, mais minoritariamente, alguma expectativa de que me fiz eco em crónica anterior. Passados alguns meses, verifiquemos os factos: por um lado mantêm-se a níveis residuais o orçamento do ministério, por motivos é certo justificados pela contenção e rigor de um OE determinado pela grave crise financeira do Estado, mas que ainda assim não deixa de ser sintomática da falta de consideração estratégica do sector cultural (por parte do governo mas também, diga-se, das oposições sem excepção), numa altura aliás em que ironia, veio a público um estudo elaborado pelo ex-ministro da Economia Augusto Mateus sobre “O sector cultural e criativo em Portugal” que inequivocamente concluí pelo relevo e dinâmica acrescida do mesmo.
 
Feita a ressalva estrutural e crónica, não podem todavia deixar de se referir as nomeações para os cargos superiores do ministério e as primeiras decisões políticas da nova ministra.
 
A ministra assumiu, de modo mesmo politicamente excessivo, o projecto excedentário e pernicioso do Museu dos Coches (“por mim já estaria feito”, disse), mas até ao momento teve os focos políticos mais intensos em dois aspectos muito positivos: um empenho na criação de uma Cinemateca no Porto, e justamente a área museológica, decidindo-se, contra o seu antecessor, pela manutenção do Museu de Arte Popular (defendida por um amplo movimento cívico), obra que para além do seu acervo próprio e potencial é exemplo único representativo de uma concepção cultural do Estado Novo, que importa preservar como parte da História, e dando a conhecer um Planeamento Estratégico do IMC que finalmente faz face às realidades.
 
São estes os tópicos da coluna O Estado da Arte na Artecapital.

 

Recomeçar

 

As notícias sobre o fim desta página foram apenas ligeiramente exageradas, ou, com maior exactidão, algo prematuras. Três meses sem colocar em linha qualquer texto é de facto, reconheço, tempo suficiente para supor o fim, e (mais) este recomeço não invalida que possam ter sido colocadas questões de credibilidade no respeitante à própria existência do Letra de Forma.
 
Posso apenas dizer que, para além das absorventes tarefas referidas no post anterior, os azares têm-me perseguido, com problemas de ordem física e pessoal, a que acresceu um aparatoso acidente no escritório de trabalho que demorou semanas a estar de novo em condições.
 
Os próximos dias são de conclusão urgente de alguns trabalhos, com consequente menos tempo para esta página, mas não quis adiar mais a sua reactivação.
 
Factos e objectos houve neste interregno sobre os quais se perdeu a oportunidade e pertinência da escrita. Mas, apesar do atraso, creio ainda justificado que faça alguns flash-backs de balanço sobre o ano anterior e mesmo os anos 00, e um ou outro facto entretanto ocorrido, conjuntamente com questões de actualidade imediata.
 
Recomeçemos, pois.

Intermezzo

 

Está visto que esta página tem intermitências mais ou menos longas. Desta feita foi uma mudança de casa e um interminável processo de arrumação, sem o qual não há condições de trabalho. Mas volto já.

Rever Berlim, o Muro - II

 
 

 

 

 
Die Mauer
de Jürgen Bottcher
Cinemateca, amanhã, 11,  às 22h
 
O ciclo berlinense da Cinemateca chega à sua raison d’être, o motivo do 20º aniversário da queda do Muro, com este espantoso documentário do cineasta este-alemão Jürgen Bottcher, raríssimo exemplo de História em directo, que apresenta precisamente a queda do Muro. Se me é permitida a observação, deveria ter sido por aqui (e embora falte ainda também exibir outro muito importante filme “em directo”, Novembertage de Marcel Ophuls, que passa a 29) que o ciclo se devia ter iniciado, indo depois ao flashback desde os anos 20.
 
No começo do filme, vemos vários blocos já arrancados do Muro, como num cemitério. Die Mauer/O Muro é o filme desse colapso e morte. Bottcher. filmou os primeiros momentos da derrocada, a 9 de Novembro de 1989, e depois a desordenada destruição do Muro, nesses dias em que cada um de nós por lá passávamos queríamos ficar com um bocado de Muro para recordar. Há turistas japoneses que passam, há crianças turcas que vendem esses bocados de Muro.
 
 
Prescindindo de qualquer comentário, voz off ou depoimentos falados, Bottcher, nascido em 1931 e que também é pintor assinando “Strawalde”, deixa a matéria das imagens ser suficientemente eloquente. A maior parte do filme situa-se na zona central da Porta de Brandenburgo e de Potsdamer Platz, nesta a câmara descendo aos subterrâneos, à desactivada estação de metro, qual visão da ante-câmara do inferno.
 
Mas Bottcher utiliza também um estratagema para relatar a História: por três vezes projecta no próprio Muro imagens de arquivo, 1) do centro de Berlim, desde a época de Guillherme II, passando pelo nazismo, até à tomada da cidade pelo Exército Vermelho, 2) da construção do Muro e das tentativas de fuga (um dos momentos mais intensos do filme) e, 3) da RDA na época do Muro.
 
Literalmente “filme da queda”, Die Mauer registou e traz-nos de volta a cada visão as memórias dos dias de Liberdade reencontrada ou descoberta. Foi também outro epitáfio, o último filme importante produzido na RDA.  Por esse modo como captou a História em directo e pela inteligência das suas estratégias narrativas, Die Mauer é seguramente uma das grandes obras do documentarismo cinematográfico.
 
 
 

Rever Berlim, o Muro - I

 

 

Der geteilte Himmel
de Konrad Wolf
segundo o romance de Christa Wolf
Cinemateca, hoje às 22h
 
No ciclo “Os Mil Rostos de Berlim” a decorrer na Cinemateca desde o mês passado, a propósito do 20º aniversário da queda do Muro, entra-se hoje propriamente nos “anos do muro” com a adaptação cinematográfica do romance que celebrizou Christa Wolf, Der geteilte Himmel/O Céu Divivido. Se não se trata propriamente do Muro, a metáfora do “céu dividido” é suficientemente esclarecedora da confrontação das duas Alemanhas, RFA e RDA.
 
Konrad Wolf (1925-1982) era filho de um célebre anti-fascista, Friedrich Wolf, e irmão do famoso super-espião Markus Wolf. A família partiu para a União Soviética logo após a tomada de poder pelos nazis em 1933, e Konrad viria a alistar-se no Exército Vermelho durante a guerra, vindo a fazer parte das forças que tomaram Berlim em 1945. Também desde cedo tomou contacto com o cinema soviético, e aliás depois da guerra completaria os estudos na célebre escola de cinema, VGIK. Esta “impecável folha de serviços” valeu-lhe desde cedo uma posição de destaque na DEFA, os estúdios da Alemanha Oriental. De facto, mais do que isso, Konrad Wolf não foi apenas o “cineasta oficial” da RDA, foi mesmo a figura do “artista oficial”, presidente da Academia das Artes da República Democrática Alemã desde 1965 até à sua morte.
 
Com este curriculum não deixa de ser algo surpreendente que se tenha metido à tarefa de adaptar Der geteilte Himmel, livro de “justificação” da RDA é certo, mas obra de dilaceração também (Christa Wolf participou na adaptação).
 
 
 
O filme é habilíssimo, fundando-se nessa clássica figura do esquema marxista que é a tomada de consciência, todavia atrás de uma releitura moderna do melodrama: Rita e Manfred amam-se, mas enquanto ela se vai progressivamente mais integrando nos mecanismos do “socialismo”, ele decide partir para Oeste. O uso frequente de contra-picados com o céu em fundo, sobretudo no início do filme, e também de grandes planos num formato largo, de Rita em particular, elucidam a divisão e o confinamento.
 
Tem sido apontada uma possível influência de Hiroshima Meu Amor no filme de Konrad Wolf. Tenha ou não havido influência directa há sem dúvida um paralelismo na abordagem de uma personagem feminina face à História, daí decorrendo um amor impossível de prossecução. Todavia, o que mais surpreende retrospectivamente é que este filme de um “cineasta oficial” tinha ainda assim uma liberdade de tom que estava cinematograficamente dans l’air du temps. Deste modo, e surpreendentemente, este filme de 1964, obra de “justificação” e de um “cineasta oficial”, surge num olhar retrospectivo como um imediato percursor da fugaz “nova vaga” da DEFA (chamemos-lhe isto por comodidade de expressão), um conjunto de filme de 1965/6 que logo foram proibidos e que apenas viríamos a conhecer em 1990, depois da queda do Muro, o mais célebre dos quais é Spur der Steine de Frank Beyer, outro sendo um filme que falta neste ciclo da Cinemateca, Berlin um die Ecke de Gerhard Klein (foi antes incluído outro filme seu, anterior, Eine Berliner Romanze).
 
A RDA, estado efémero, defrontou-se sempre com um problema de “identidade” e “fundamentação”: seria a parte “progressista” da Alemanha e a “barreira contra o capitalismo” (o que eram os termos de justificação do Muro), de facto um socialismo real, horrorosa mescla de totalitarismo soviético e autoritarismo prussiano. Com a queda do Muro o seu colapso era inevitável, e foram infrutíferas as tentativas de alguns, entre as quais precisamente Christa Wolf, de lhe dar continuidade então como “socialismo democrático” – “Wir sind Eine Volk”, “Somos Um Povo”, clamou-se antes nas manifestações de rua, Um povo a leste e oeste.
 
Enquanto habilíssima obra de “justificação” do “socialismo” a construir, Der geteilte Himmel é um objecto singular e de encruzilhada, a descobrir.

 

Vivacidade napolitana

 

 

Lo frate ‘nnamorato
de Pergolesi
encenação de Luca Aprea
Os Músicos do Tejo, Marcos Magalhães
Centro Cultural de Belém, 20 de Novembro, às 21h
 
 
Um dos aspectos mais estimulantes do recente panorama musical português é o florescimento de grupos dedicados à interpretação historicamente informada de música antiga e barroca. Destes apenas um, a Orquestra Barroca da Casa da Música, teve uma origem institucional, os outros sendo consequência da iniciativa e interesse autónomos de músicos.
 
O movimento é, como se sabe, genérico, e talvez mesmo o mais marcante do panorama musical internacional nos últimos 20 ou 30 anos. Num livro que já se tornou uma referência não apenas para a sociologia da música, mas também para a agora justamente designada “sociologia das mediações” e mesmo para as ciências humanas em geral, Antoine Hennion dedicou-lhe largo espaço de análise em La Passion Musicale – Une sociologie de la médiation (Métailié, 1993). Mas o movimento começou a manifestar-se com um considerável atraso em Portugal, tendo vindo a vingar fruto do lastro deixado pelos saudosos Cursos de Mateus, pelo início de cursos específicos em escola de música e academias, por especializações no estrangeiro, ou pelo interesse de músicos que já alguns deles paralelamente aos seus instrumentos tradicionais se começaram também a dedicar aos antecedentes barrocos daqueles.
 
Um desses grupos foi o Ensemble Barroco do Chiado, com base no qual os cravistas Marcos Magalhães e Marta Araújo constituíram um outro, Os Músicos do Tejo, vocacionado para o reportório de autores portugueses mas também visando contextualizá-los, abordando pois autores e reportório que tenham influenciado esses compositores portugueses. È assim que deram um passo que faltava, pesem ainda algumas esporádicas realizações anteriores: a ópera. E é assim que depois do sucesso da apresentação de La Spinalba de Francisco António de Almeida no Centro Cultural de Belém em Fevereiro de 2008, sucesso que levou mesmo à sua reposição em Janeiro de 2009, abordam agora uma obra arquetípica da commedia musicale, Lo frate ‘nnamorato de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736).
 
Pergolesi deve a sua reputação antes do mais à tempestade provocada pela apresentação em Paris, em 1752, da sua ópera bufa La serva padrona, originalmente um intermezzo (apresentado entre os actos de uma ópera séria), desencadeando a famosa Querelle des Bouffons, dos partidários da ópera bufa contra os defensores da tradição francesa da tragédie lyrique, de Rousseau contra Rameau. Outra obra sua é célebre, é mesmo hoje a mais célebre das suas obras e uma das mais reputadas de todo o reportório barroco, o Stabat Mater. Acrescente-se a isso a sua muito curta vida e ficam estabelecidas as razões fundamentais da sua nomeada.
 
Mas como compositor na altura em que florescia a escola napolitana, Pergolesi também compôs óperas sérias, como uma versão do célebre texto de Metastasio L’olimpiade, ou commedie per musica, que tinham estatuto autónomo, diferente do intermezzo, constituindo um espectáculo. A mais célebre é justamente Lo frate ‘nnamorato, pela sua importância histórica e por ser a de maiores ecos modernos, por via da produção dirigida por Riccardo Muti, em 1989 no Scala, de que há registo em disco e em dvd. Abordar esta obra é pois um salto, e um salto ousado, para Os Músicos do Tejo.
 
Esclareça-se desde já que embora o programa indique apenas “espaço cénico”, não se trata de uma apresentação semi-staged, como hoje tanto se pratica, mas mesmo de uma encenação, só que com um espaço muito simples mas também muito funcional. Luca Aprea, que trabalhou nomeadamente com o mestre maior do teatro da tradição napolitana, Roberto de Simone, logrou uma encenação de grande vivacidade e por vezes de franca comicidade, o que é importante ao gesto de nos apresentar uma obra como Lo frate ‘nnamorato.
 
Mantendo sempre o interesse, a realização musical é no entanto desigual. Marcos Magalhães mostrou à saciedade as suas aptidões no baixo dos recitativos, mas como maestro falta-lhe um gesto mais preciso e falta à sua direcção uma maior vivacidade; mantém todavia a coesão do conjunto, com destaque para o esplêndido quinteto que conclui o Acto II. As cordas ressentem-se com uma articulação e um fraseado que nitidamente precisariam de ser muito mais trabalhados, enquanto os sopros são aptos, com inevitável destaque para esse músico de excelência que é António Carrilho em flauta de bisel.
 
A desigualdade é ainda mais notória nos intérpretes dramático-vocais, desde logo porque os homens são muito superiores às mulheres. João Fernandes é português mas é um cantor internacional, por via do seu trabalho sobretudo com Les Arts Florissants e William Christie. No papel de Dom Pietro, o mais cómico, papel de um pedante ridículo, Fernandes é impagável, e é em especial brilhante em “Si stordisce il Villanello”, ária de voz mista, de peito e de cabeça (falsete). Luís Rodrigues (Marcaniello) e Carlos Guilherme (Carlo) são dois intérpretes em plena maturidade, cada vez melhores, sendo que o primeiro tem também um apurado sentido cénico.
 
Do lado feminino, como disse, o panorama é mais problemático. Falta caracterização aos amantes, Eduarda Melo (Ascanio, um papel travestido) e Inês Madeira (Luggrezia) e o desequilíbrio acentua-se ainda mais nas duas duplas, Nina e Nena e Vanella e Cardella (os nomes dizem da proximidade), com Sara Amorim (Nina) e Sandra Medeiros (Vanella) mais desenvoltas enquanto Joana Seara (Cardella) é baça e Carla Caramujo (Cardella) estridente.
 
Há um grande lapso, em relação aos padrões já internacionalmente correntes, na apresentação de óperas barrocas em Portugal, e a mais recente, a Agrippina de Haendel no São Carlos foi mesmo um desastre incomensurável. Tanto mais se salienta o gesto de realização agora de Lo frate ‘nnamorato, que apesar dos desequilíbrios apontados, justifica uma viva recomendação.
 
P.S. - Uma nota para as modelarmente pedagógicos notas ao programa, contextualizando de modo muito pertinente a obra e o projecto da sua concretização.
 
 
 
Próximos espectáculos: CCB, hoje e amanhã às 21h.