A fama de Maria Callas como intérprete da Traviata ou da Tosca poderá ofuscar que o seu papel de eleição, se atendermos ao número de vezes que o cantou, 92, foi antes do mais o de Norma.
Foi também um dos raros papéis que gravou duas vezes em estúdio, acrescendo um registo radiofónico. Por motivo disso, muito se tem distinguido entre os dois registos de estúdio, o de 1954 e o de 1960, ambos dirigidos por Tullio Serafin. Dir-se-á, não sem razão, que na primeira data Maria Callas estava no auge das suas capacidades vocais, e que na segunda havia já sinais de declínio. Mas então importa também dizer que salvo raríssimos casos nunca foi em estúdio que ela deu o pleno das suas capacidades e que por isso é escamotear os dados reduzi-los à discussão dessas dois únicos registos.
Foi aliás num dos momentos captados em palco, a 7 de Dezembro de 1955, na abertura da temporada do Scala que ocorreu o “milagre”, um momento prodigioso de dramatismo e do génio ímpar da Callas, face a um viril Mario del Monaco muito mais sóbrio que o habitual, uma Giuletta Simionato que dá sentido aos duetos Norma-Adalgisa e ao Oroveso de Nicola Zaccaria, ainda sob a direcção de Tullio Serafin. É por certo um dos grandes momentos da história da ópera registada em disco.
Estilista incomparável, senhora de um domínio técnico ímpar, Joan Sutherland ostentou uma Norma quase glacial (a “Casta Diva”), que no entanto se inflama com a sua portentosa Adalgisa, a incomparável Marilyn Horne, sob a direcção, é claro, do marido de Sutherland, Richard Bonynge (Decca).
Essa gravação data de 1965. Quase 20 anos depois, em 1984, Sutherland e Bonynge, em escrupulosos filólogos, decidiram fazer uma nova gravação com uma Adalgisa soprano, facto de todo coerente com a linha vocal da parte e as características da primeira intérprete, Giulia Grisi. E para isso fizeram apelo à outra importante Norma entretanto estabelecida, Montserrat Caballé.
Pese ainda a extraordinária beleza da sua voz, Caballé não foi bem sucedida na sua gravação de estúdio. Mas em 1974, no Festival de Orange, os seus indescritíveis pianissimi e a incomparável beleza da sua matéria vocal são deslumbrantes.
Extractos de um texto sobre a discografia da Normano sítio do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian.
A discografia da Elektra tem uma característica singular: seria de supor, pelas espantosas texturas da partitura de Richard Strauss, que só uma adequada captação sonora e o detalhe possível no trabalho de estúdio fizessem justiça à obra; ora sucede exactamente o contrário, nenhuma das gravações de estúdio se aproxima da tensão da obra, que ao invés pode ser claramente apreciada numa pletora de registos “live”.
È no registo directo do palco que se sente a tensão extrema da obra, e é em cena que melhor se podem ouvir as intérpretes lendárias, Astrid Varnay, Christel Goltz, Inge Borkh e Birgit Nilsson (Elektra), Leonie Rysanek (Chrysotemis) ou Martha Mödl e Regina Resnik (Klytemnestra)..
Em termos de elenco, e de uma concepção majestática, a gravação que sobressai é aquela dirigida por Karl Böhm a 16 de Dezembro de 1965 na Ópera de Viena (Standing Room Only): Birgit Nilsson (Elektra), Leonie Rysanek (Chrysostemis), Regina Resnik (Klitemnestra), Eberhard Wächter (Oreste) e Wolfgang Windgassen (Egisto). Nilsson é uma Elektra marmórea com uma prodigiosa emissão nos agudos, Rysanek, incomparável Chrysotemis no seu ideal de feminilidade, tem porventura aqui o melhor dos seus registos, Resnik é grandiosa e de uma violência perturbada mas que sem nunca perder o porte de rainha.
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Numa outra linha há as concepções mais neuróticas ou mesmo histéricas. Dir-se-ia que nenhuma outra Elektra ecoa tanto as profundezas do inconsciente como a que Fritz Reiner dirigiu no Metropolitan em 1952 (Archipel), com Astrid Varnay.
Mas para nesta linha de concepção da obra são necessárias intérpretes de características muito particulares. Duas deixaram marca duradoura, Christel Goltz e Inge Borkh.
Goltz era a fera, como o testemunha a representação captada a 26 de Agosto de 1955 na ópera da Baviera e dirigida por Karl Böhm (Golden Melodram), mas a “gata selvagem” de que falam as seguidoras, essa foi sobretudo, incomparavelmente, Inge Borkh.
Com ela, a gravação de 1957 no Festival de Salzburgo dirigida por Dimitri Mitropoulos (Orfeo), é um prodígio. È uma direcção fulgurante, cortante, que nos deixa sôfregos de respiração. Borkh, mais que febril, é demencial e determinada,
Enfim cabe referir uma outra grande intérprete, a mais vitalista, e de saúde vocal insolente, Ursula Schröder-Feinen, captada a 17 de Junho de 1977 na Ópera da Baviera ainda sob a direcção de Böhm (BellaVoce)
Extractos de um texto sobre a discografia da Elektra no sítio do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian.
Um insólito pensamento ocorreu-me esta noite enquanto assistia no São Carlos à estreia de uma muito medíocre produção – mais outra – do Fausto de Gounod: não teria ainda assim sido preferível que houvessem contratado antes Madame Bianca Castafiore?
A senhora que nas aventuras de Tintim atemorizava com o seu canto – e os sobreagudos – o Capitão Haddock era a caricatura de um estereótipo: o das cantoras de óperas como sopranos ligeiros ou “coloratura”, “sopranos rouxinóis”, numa imagem fixada no século XIX com Jenny Lind e Adelina Patti. E que cantava de modo obsessivo, monomaníaco, a Castafiore? “Ah je ris de me voir si belle en ce miroir”, a “ária das jóias” de Marguerite, do Fausto de Gounod.
A senhora que agora canta, Patrizia Biccirè, também é uma soprano “leggero”. Faz a sua estreia no papel e anda obviamente perdida. Não deve ter tido grande apoio do maestro Enriço Delamboye, apresentado como “director musical da orquestra da Ópera de Colónia” (de que o director era Christoph Dammann, agora para nossa desgraça no São Carlos), o que não quer dizer “director musical da Ópera de Colónia” (atenção a esta nuance) mas sim kapellmeister, e que de facto esteve todo o tempo mais preocupado com a orquestra do que em ser efectivamente maestro-director do espectáculo – e logo por azar, mais outro, na Canção do Rei de Tule da mesma Marguerite, o solo de violino foi um horror de desafinação.
A senhora também não teve com certeza apoio por aí além do encarregado da reposição, já que o encenador Christof Loy terá muito mais que fazer que deslocar-se ao São Carlos. A ironia da história é que Loy, pesem ainda alguns distinções que tem obtido no “meio” (no “meio germânico” entenda-se) andou nas bocas do mundo precisamente porque recusou uma cantora para a reposição de uma encenação sua, de Ariana em Naxos de Strauss em Covent Garden – sim, foi ele que disse que a volumosa Deborah Voigt não se prestava ao figurino que ele fazia questão de manter. Ora, mais a julgar por um texto seu inserido no programa, “A cruz de Gretchen”, do que propriamente pelo que é visível em palco, a dita personagem, Gretchen /Marguerite, será central ao seu entendimento. Como é isso possível com tão inepta intérprete? Talvez então que Bianca Castafiore tivesse um outro brilho – pelo menos, não se deixaria passar tão despercebida.
Comecemos o dilúvio de edições discográficas dedicadas aos dois compositores mais celebrados deste ano com a Edição Haendel da Harmonia Mundi. A concepção é atraente e pertinente com duas caixas de árias, uma das óperas, outra de oratórias e ainda uma outra de concertos. O design é imaginativo e prático, as notas dos livretes são mantidas, bem como os textos, exceptuados os libretos de óperas – remetidos para a internet, como vai sendo cada vez mais hábito. E, claro, o preço é económico.
A mais valia decisiva é no entanto que a Harmonia Mundi possuía em catálogo algumas excelentes gravações haendelianas, e uma mesmo, o Giulio Cesare dirigido por René Jacobs, que em 1991 teve um efeito deflagrador, e abriu decisivo caminho à nova consagração das óperas de Haendel.
Duas caixas se impõem de imediato pela coerência: a das óperas, o citado Giulio Cesare, Rinaldo e Flavio (obra menos conhecida, grandíssima interpretação), dirigidas por René Jacobs, mais um bónus, algumas árias cantadas pelo próprio Jacobs, numa caixa de 9 cds, e a dos Concertos, Concerti Grossi op. 3 & op. 6 e Concertos para Órgão op. 4, com a Academy of Ancient Music, formação haendeliana emérita, dirigida do cravo (op. 3) e do órgão (op.4) por Richard Egarr, e pelo concertino Andrew Manze (op.6), numa caixa de 4 cds – e se iremos ao longo do ano fazendo aproximações à hoje riquíssima discografia de Haendel, quer-me parecer que esta caixa dos concertos virá a ter papel cativo nas escolhas, donde se deduz que é a de maior relevo nesta edição da HM.
Jacobs ainda dirige as oratórias, Saul e o inevitável O Messias (4 cds), que essa não se impõe, o que poderá surpreender, mas é razão de um Messias decepcionante.
Finalmente as duas caixas de árias, uma um projecto coerente mas de resultado desequilibrado, outra uma reunião de discos díspares, mas de grande qualidade. A primeira repropõe o projecto das “Arias for…” concebido por Nicholas McGegan, que teve a importância histórica de, a partir de 1987, abrir todo um capítulo, até muito para lá de Haendel, de retomar o perfil de determinado intérprete histórico (digamos que recitais como a homenagem de Cecília Bartoli a Maria Malibran e de Juan Diego Florez a Rubini se vieram inscrever nessa tendência). Acontece que musicalmente se impõem apenas as árias para a Durastanti com a grande Lorraine Hunt, e para Montagnana, com David Thomas, sendo pálido o disco de Lisa Saffer consagrado à Cuzzoni e – preço do pioneirismo, até porque foi justamente o primeiro – é francamente insatisfatório o de Drew Minter com as árias para o célebre castrato Senesino.
Em contrapartida é dispare mas francamente notável nas realizações individuais o volume (de 4 cds, como o anterior) de “Famous Árias”, com recitais de Dorothea Röschman (o disco indispensável para as árias alemãs), Lorraine Hunt, Andreas Scholl (o célebre recital “Ombra Mai Fu”) e Mark Padmore.
Breakings news, como se usa dizer: o Teatro Real de Madrid acaba de anunciar a nomeação de Gérard Mortier como director artístico, confirmando rumores que circulavam há semanas.
O flamengo, o mais prestigiado director de ópera europeu, mundial mesmo, depois de ter dado brilho ao Théâtre de La Monnaie em Bruxelas (1981-92), e ter sido surpreendentemente escolhido, depois da morte da Herbert von Karajan, para dirigir o Festival de Salzburgo, em anos (1992-2001) que ficaram memoráveis, escandalizaram o público tradicional, mas profundamente renovaram a projecção do evento, completou ontem 65 anos, limite de idade para as funções que desde 2004 exerce na Ópera de Paris, tendo no entanto sido prorrogado excepcionalmente o seu mandato até ao fim da temporada em curso. A surpresa foi que entretanto, em Fevereiro do ano passado, Mortier foi anunciado como próximo director da New York City Opera, a ópera pública da cidade, fazendo os críticos especular sobre o que poderia vir a ser um quadro com Peter Gelb no Met e Mortier na City Opera..
Ao longo deste ano, todavia, pressentiram-se desentendimentos. O notório interesse de Mortier por ópera contemporânea causava apreensão a membros da administração, e o seu alinhamento em parceria em parceria com Nike Wagner (filha de Wieland) na luta pela sucessão de Bayreuth (que acabou decidida por uma “reconcilação” das duas filhas de Wolfgang Wagner, Eva e Katherina) foi apontado como uma deslealdade. Por fim, os cortes financeiros na City Opera levaram à sua renúncia no passado dia 8.
A ida de Mortier para Madrid é mais uma confirmação, particularmente importante, da consolidação do Real entre os teatros europeus, quando tradicionalmente era bem menos prestigiado que o Liceo de Barcelona, e menos inclusive que o São Carlos de Lisboa - mas evitemos fazer comparações sobre o estado actual de um e outro teatro, que as coisas são bem tristes.
Salvaguarde-se que, a abrir a temporada, em Setembro/Outubro, haverá o Siegfried, prosseguindo a encenação da Tetralogia de Wagner por Graham Vick – e, cabe notar, espera-se apenas que, como inicialmente previsto, O Anel se venha de facto a concluir em temporada futura com a representação integral sucessiva da Tetralogia, o que nunca sucedeu em nenhuma das vezes que foi encenada em São Carlos, espera-se, repito, que haja as devidas garantias.
Feita a ressalva, o panorama aproxima-se de um desastre generalizado e da maior incúria.
Sobre esta próxima temporada paira claramente a sombra do ex-secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, que de resto, em vários textos no “Público” e uma resposta ao actual ministro no “Expresso”, tem dados mostras suficientes de que não se dá por vencido, antes que continua a ser o ideólogo.
Acha ele, achou ele sempre, que em ópera se dá demasiada importância aos cantores?! Pronto, passou-se à prática: salvaguardado o Siegfried, repito, cantores de distinção não os há, excepto Elisabete de Matos em arriscada estreia no papel titular da Salomé.
Mas mais: sabe-se como o modelo que o ex-secretário de Estado achou frutífero foi o de Carlos Fragateiro no Teatro da Trindade, nomeando-o mesmo director do Teatro Nacional D. Maria, de resto tendo-se aquele mantido em funções no Trindade, em clara contravenção da exclusividade exigida por lei. Escrevi eu isso mesmo, e demitiu-se em seguida Fragateiro do Trindade, quando aí anunciou umas Bodas de Fígaro encenadas por Maria Emília Correia. Pois a conexão Vieira de Carvalho-Fragateiro-Dammann confirma-se agora com um Don Giovanni encenada pela mesma Maria Emília Correia. Lamento, por toda a consideração que tenho por ela, mas isto é puro disparate, além de revelador das linhas que se cosem.
Mas mais: ao senhor Christoph Dammann escapam os requisitos musicais para ser director de um teatro de ópera, e vou dar três exemplos.
Ponto 1) O aspecto mais catastrófico da sua gestão da temporada anterior foi a escolha de maestros. Agora já não há sequer a possível desculpa do pouco tempo disponível para escolhas e contratações até porque, satisfeito, Dammann resolve repetir.
Na Clemenza di Tito de Mozart houve aspectos infelizes na encenação de Joaquim Benite (os figurinos de Filipe Faísca, o “parti-pris” do estatismo do coro) mas também outros pertinentes (por exemplo, a opção pela monumentalidade). Lamentável sim, além de uma cantora que confundiu Vittelia com a Santuzza da Cavalleria Rusticana, foi a direcção musical de Johannes Start, totalmente privada da energia mozartiana. Pois o dito Start volta, e de novo para dirigir Mozart, e nada menos que o Don Giovanni.
Ponto 2) O senhor Dammann achou interessante retomar uma prática do século XVIII, com um intermezzo bufo interpolado numa opera seria. Esquece-se que os tempos de duração praticados eram muitíssimos mais longos e que, digamos, os “tempos de recepção” também eram outros.
Mas, vai daí, em Agrippina, a mais esplêndida ópera do período italiano de Haendel, vai ser interpolado Intermezzo, ópera encomendada a Nuno Côrte-Real, com libreto de José Luís Peixoto. Ora, não só isso obrigará a cortes ainda mais drástico na ópera de Haendel, como este tipo de encomenda de intermezzo só teria sentido se os respectivos autores dominassem os códigos dos géneros operáticos para com eles jogarem – e não há o menor indício que isso suceda com Peixoto e Côrte-Real.
Ponto 3) Para mais Agrippina requer quatro ou cinco grandes cantores; nem um só dos anunciados é de relevo. E pior: Dammann tem uma tal noção da interpretação historicamente informada que dispensa um agrupamento com instrumentos de época e põe a obra a ser executada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, tal como aliás, num concerto, outra obra-prima barroca, o Te Deum de Charpentier.
Além de tudo o mais, há a dizer que a informação do director do teatro se revela escassa e parcial.
Anuncia-se finalmente um Estúdio de Ópera no São Carlos. Acho importante, gostaria de saber mais, e é uma das questões, tal como a da nefasta OPART EPE que deixo para próximos textos. Mas nesse espectáculo do Estúdio de Ópera, além do já citado The Telephone de Menotti encenado por Karoline Gruber, a tal que depois de Das Märchen pelos vistos aqui também tomou residência, há Comedy on The Bridge do compositor checo Bohuslav Martinu encenada por Paula Gomes Ribeiro. E a que propósito? Porque se desconsideram, por exemplo, os casos mais prometedores revelados nos dois cursos de encenação de ópera da Gulbenkian? Será porque Gomes Ribeiro integra o CESEM, o Centro de Estudos de Estética e Sociologia da Música do Prof. Vieira de Carvalho?
Não sabe o director de teatro das temporadas de outras instituições em Lisboa? Porquê celebrar o centenário de Messiaen com uma interpretação da Turangalîla-Symphonie quando já houve uma no Ciclo de Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian este ano, e não faltam outras grandes obras do autor que era importante dar a ouvir? Porquê aceder ao capricho pessoal do presidente, director-geral e intendente de programação do CCB, António Mega Ferreira, que resolveu achar-se também decisor musical, e fazer de novo um Fidelio de Beethoven em versão de concerto?
Tudo isto demonstra, além de graves incúrias, desde logo do director Christoph Dammann, esta espécie de “domínios privados” em que transformaram as instituições culturais: são as opções de Mário Vieira de Carvalho ou os “contributos” de Fragateiro e Mega Ferreira. E é um disparate anunciado, e o plano inclinado do vazio de perspectivas no São Carlos.
(Como disse, deixarei para textos posteriores mais em concreto as questões do Estúdio de Ópera e da OPART)
O “escândalo” associado a uma insistente tendência alemã de encenacão de teatro e opera, tendência que se prenuncia na nova temporada do São Carlos, pode tambem por vezes ser fundado em equívocos. O nome Christof Loy talvez diga pouco aos leitores e melómanos portugueses, mas muitos se recordarão do “escândalo” ocorrido quando o encenador de uma Ariana em Naxos na Royal Opera House de Londres recusou a anunciada protagonista, a soprano americana Deborah Voigt, por a achar digamos que demasiado “volumosa” para os figurinos da personagem. Esse encenador era Christof Loy, o mesmo que é responsavel pelo Fausto de Gounod nesta proxima temporada do Sâo Carlos. Nesse caso até sucede que, como a imprensa mesmo a mais “séria” tende cada vez mais a destacar os acontecimentos que sugerem “escândalo”, a história estava mal contada: tratava-se de uma reposicao e Loy achou, correctamente no plano dos príncipios, que não podia aceitar uma nova intérprete convidada sem ele ter sido consultado, e com características físicas que entendia obrigarem a desfigurar elementos da sua encenacâo. Isto evocado para lembrar quantas vezes o “escândalo” é artificialmente mediatizado, convém entao definir parâmetros estéticos.
Ao longo de já muitos anos de crítica, sempre me interessou particularmente a encenação de ópera e recorrentemente fiz notar como como a renovacão do género vem sendo nas ultimas décadas em grande parte fruto do trabalho de alguns encenadores. Várias das minhas mais intensas experiências e emoções estéticas fundaram-se também no trabalho em ópera de encenadores como Giorgio Strehler, Luca Ronconi, Patrice Chéreau, Peter Stein, Luc Bondy, Bob Wilson ou Peter Sellars. Mas o que vem sendo praticados nos teatros alemães, o designado “regietheater”, e que corresponde em opera ao chamado “ekeltheater” (“teatro de nojo”) e à equivoca teorizacao de um “teatro pós-dramático”, interesssa-me muitíssimo pouco, para não dizer, em termos de crítica “parcial, politica e apaixonada”, que tenho antes tendência a ser frontalmente contra.
Não me interessa absolutramente nada a “actualização” como imperativo, o desejo de “escândalo”, a prática de arbitrariedades. E Loy mas ainda mais Konwitschny são expoentes desse “regietheater”. Dou um exemplo, para não me ficar em termos genericos que poderão parecer apenas preconceituosos: na encenação de Konwitschny do Don Carlos de Verdi na Opera de Viena (Don Carlos com “s” que era o original francês e mesmo, coisa rarissima, integralmente), na cena do auto de fé, surgia no palco um ecrã com uma apresentadora a anunciar o “evento” enquanto, como ligacão das imagens para a sala, os condenados entravam no átrio do edificio, e folhetos eram distribuídos aos espectadores na plateia, enfim, o género de coisa “modernaça” para fazer a tal “actualizaçãoo” e envolver os espectadores – e exercício disparatado de arbritariedade sim!
Acrescento que depois do seu trabalho em Das Märchen de Emmanuel Nunes nada recomendava que Karoline Gruber regresssassse – e é ela que se anuncia para a nova producao da Salomé, bem como para uma das duas óperas dpo novel Estúdio de Ópera, The Telephone de Menotti. Enfim, já apresentada na temporada anterior, retoma-se na proxima A (pequena) Flauta Mágica (mas que desta feita sera cantada em português – talvez alguem se tenha enfim dado conta, não sei, que existe a tradução portuguesa de Maria de Lurdes Martins, apresentada no Trindade em 72), a qual, destinando-se a criancas, é um resumo incorrrecto (não consigo perceber como se pode eliminar Sarastro na cena final, e foi isso que vi em palco), e a qual, de resto, é eticamente abusivo anunciar como “produção da Ópera de Colonia” quando de lá provem apenas o “conceito” da encenação de Eike Eicker, o fundamental sendo o uso de desenhos de estudantes de escolas portuguesas.
Nada disto é promissor, muito pelo contrário, E sem qualquer chauvinismo, e na recusa de tal, é mesmo inaceitavel esta transformacao do São Carlos em teatro alemao de segunda ou terceira ordem (ainda por cima, com os cantores a menos), o que de resto é um quadro restritivo de perspectivas e cosmopolitimo, e antes um outro modo provinciano, no caso “deslocalizado”. E énesses termos, creio, e nao em si pelo facto do actual director do teatro ser alemão, que importa discutir e mesmo contestar as opções ora vigentes no único teatro nacional de opera português.
Enunciar uma perspectiva acentuadamente crítica de uma temporada anunciada pode parecer exercício exorbitante, se não mesmo tendencioso. Se, contudo, eu disser que a próxima Temporada 2008-09 da Gulbenkian confirma níveis de excelência, e seleccionar alguns destaques de ainda mais especial expectativa de excelência (o que farei em breve), o facto será considerado conforme ao que se espera de um crítico. Como tal, e numa mesma ordem de razões, afigura-se-me legítimo e pertinente enunciar as razões pelas quais acho bastante problemático, mesmo lamentável, o horizonte que se desenha para o São Carlos.
Devo, é certo, fazer um “mea culpa” por não ter formalizado um balanço da temporada anterior, sendo que é a concreta experiência dessa que mais fundamenta muitas das reservas que enunciarei. Mas, sucedendo isso, também direi que sendo indesmentivelmente ora o São Carlos um caso de posicionamentos antagonistas, de Pinamonti “versus” Dammann, também tive, por exemplo, ocasião de fazer notar que as responsabilidades que já eram assacadas ao novo director, em concreto a desastrosa encenação do Rigoletto, eram ainda de facto uma aposta do anterior.
E pois que falo em concreto de Pinamonti e Dammann acrescento – até para enquadrar em devidos termos algo que me importa dizer – que já tive ocasião de recordar reacções havidas justamente quando da nomeação de Pinamonti. Como alguns se lembrarão, logo após a demissão de Manuel Maria Carrilho de ministro da Cultura, o director do São Carlos, Paulo Ferreira de Castro, apresentou também a sua demissão. Quando passado algum tempo o então novo ministro José Estêvão Sasportes anunciou Paolo Pinamonti como director do teatro o ex-ministro Carrilho teve um reflexo despeitado e reaccionário, considerando inconcebível que um estrangeiro viesse dirigir um teatro nacional português. Para além do des-gosto que tal reflexo me suscitou, não pude deixar de sorrir: tal reacção lembrou-me a “indignação” manifestada em França quando o alemão Rolf Liebermann foi convidado para director da Ópera de Paris – e depois, como se sabe, foi ele que a retirou do plano inclinado e lhe deu de novo brilho.
Acrescento ainda, e poderia invocar inúmeros exemplos nas minhas tomadas de posição ao longo dos anos, que sou fundamentalmente cosmopolita e alérgico a chauvinismos, e mais ainda em termos de arte em geral e de ópera em particular, sendo até que neste caso da ópera as diversas tradições nacionais só podem ser apreciadas em devidos termos no quadro de um cosmopolitismo genérico.
Isto tudo dito, entremos na matéria para desde logo dizer que Christoph Dammann, ex-director da Ópera de Colónia (de onde não saiu propriamente aureolado de prestígio) e (só) agora pleno directo artístico do Teatro Nacional de São Carlos, está a proceder a uma “deslocalizaçãso” de um hegemonismo inaceitável, sendo que das oito produções anunciadas para a nova temporada, três, todas as três “importadas”, provêm de teatros alemães, as óperas de Frankfurt, Leipzig e Colónia, e uma outra, nova, é uma co-produção com um teatro alemão de terceira ou quarta categoria, o de Erfurt.
Vamos então a alguns aspectos concretos.
Na temporada passada, a quase única produção de total responsabilidade de Dammann foram uns Contos de Hoffmann de Offenbach encenados por Christian van Götz, que foi aliás um dos mais vergonhosos espectáculos de ópera que alguma vez vi – e não é que tenha pouca experiência de desastrados espectáculos de ópera. Ora, na tradição dos teatros alemães, há duas óperas francesas que são presenças recorrentes, de resto porque ambas de inspiração literária alemã: Os Contos de Hoffmann e o Fausto de Gounod. Pois se Os Contos houve na temporada anterior, eis logo que para a próxima se anuncia…o Fausto.
Deve dizer-se que Dammann apresenta três encenadores alemães de notoriedade, Christof Loy, Peter Konwitschny e Michael Hampe. Digo desde já que por muitas razões desde logo dispensava o segundo e o terceiro, aliás por motivos opostos.
Michael Hampe foi o “encenador de serviço” do Festival de Salzburgo durante os anos finais da “era Karajan”. Depois disso, e por certo com razões de sobras, nunca mais lá o chamaram. Por mim, disse as vezes bastantes que o acho “o mais chato encenador do mundo” para não o repetir agora. Quanto aos outros dois, mas sobretudo Konwitschny, confesso, com indesmentível perversidade, que já antevejo com um sorriso irónico o que poderão vir a ser as reacções em São Carlos, com a crescente “conservadorização” do seu público, às encenações deles, às quais está usualmente aposta a expressão “skandal”, quase que em jeito de imperativo categórico, com tudo o que supõe também de gesto gratuito.
Não haverá outra “coisa” que se me afigure mais manifesta concretização da “perda da aura da obra de arte” que a cena, tão frequente em viagens de comboio, com passageiros a verem nos seus computadores “filmes” – “pós-filmes” ou “rastos de filmes” diria antes.
E se isso se me afigura assim com “filmes”, parece-me haver qualquer coisa de inconcebível na simples ideia de assim se ver também óperas, e óperas em directo. Por reservas de princípio que possa ter com os “live broadcasts” abaixo referidos, ainda assim a difusão ocorre em espaços específicos, diria que locais de recepção artística, como as salas de cinema, ou mesmo, quando se fazem para o espaço público adjacente ao teatro, em locais onde nesse momento se cria o quadro mental e sociológico de uma recepção. Mas “streaming vídeo” de ópera no computador pessoal?!
Sucede que o “inconcebível” ocorre, e hoje é possível ver óperas e concerto em directo na net – de facto, ainda há pouco, questão de curiosidade e informação, “espreitei” o concerto que decorria no Festival de Verbier, na Suíça. Sucede essa possibilidade numa associação da cadeia franco-alemã Arte, www.arte.tv, com esse recente e peculiaríssimo sitio que é www.medici.tv, uma filial da Medici Arts americana, detentora de um vasto catálogo de dvds e programas de arquivo. Assim ocorrem transmissões em “live stream”, ou tem-se acesso na Medici a um considerável acervo de concertos e espectáculos, disponíveis, e descarregáveis para “downloads” como “videos on demand”. E, por exemplo, antes de Verbier agora, houve também transmissões do Festival de Aix-en-Provence. Mas, entretanto, um outro facto, de algum modo altamente simbólico, se anuncia.
Com o Parsifal começou hoje o Festival de Bayreuth. E no próximo domingo, às 15h, o festival dá inicio a uma nova etapa, com o “live stream” de Os Mestres Cantores de Nuremberga em http://live.bayreuther-festspiele.de/live.html, acessível ao preço de 49 euros.
Claro que a escolha não e nada inocente; estes Mestres Cantores, estreados no ano passado, foram a primeira encenação em Bayreuth de Katharina Wagner, a filha mais nova de Wolfgang Wagner, e presumida herdeira única até a um recente volte-face do obstinado patriarca, após a morte em finais do ano passado da sua segunda esposa, e mãe de Katharina, Gudrun: agora propõe uma direcção partilhada entre as duas filhas, Eva e Katharina, em mais outro episódio de uma história familiar e do festival tão conturbada.
Mas deixando agora a saga dos Wagner e retomando o fio dos “live streams”, a acessibilidade por esse modo de um género de obra tão eminentemente cultual como a ópera, e logo com esta difusão com origem no mais cultual dos espaços, Bayreuth, vai de novo repor os discursos sobre a web como meio de partilha e “democratização”.
E, no entanto, é justamente difícil imaginar acto mais exemplar do que é “a perda da aura da obra de arte na era da sua reprodutibilidade digital”
Ao contrário do que poderia supor, o “sonho da ópera” existiu bem cedo no cinema – e até desde os primórdios, mudos. Se, diz-se, o sonho de Edison (o “outro inventor” do cinema), premonitório do dvd, era reunir a imagem e o som, e desde logo fazer registos de ópera, o cinema fez apelo a vedetas da ópera, como Geraldine Farrar, e houve adaptações “mudas” de variadas óperas – por exemplo, e exemplo relevante, Robert Wiene, o realizador do Gabinete do Doutor Caligari, dirigiu também uma adaptação cinematográfica do Cavaleiro da Rosa, tendo o próprio compositor, Richard Strauss, feito um arranjo para música de acompanhamento – mas a esse tópico, histórico, da relação ópera-cinema, ainda voltarei.
Também houve, ainda antes da rádio, possibilidade de ouvir ópera à distância, via telefone, e em Portugal registou-se o caso do Rei D. Luís ouvir à distância no Palácio da Ajuda a ópera que decorria em São Carlos – é caso para dizer que a relação Ajuda-São Carlos vem de longe, bem antes das mais recentes vicissitudes em que um ocupante da Ajuda, e intendente-dirigista dos teatros nacionais, o prolixo Mário Vieira de Carvalho, patrocinar a extraordinária ideia de transmitir directamente do São Carlos a estreia da ópera Das Märchen, do seu compositor de estimação, Emmanuel Nunes.
Mas com a desgraça que se tem visto nessas bandas do São Carlos, é caso agora para nos perguntarmos se não estaremos antes ansiosos por ir ao Corte Inglês (o de Lisboa) ou a outro multiplex que tenha salas digitais ver transmissões directas de óperas do Met, de resto com a vantagem suplementar de nas transmissões directas de ópera desse mesmo Met sermos poupado ao nível de comentários que é usual na Antena 2. Afinal, quem sabe se não estará para breve? Desde que haja também patrocinadores…
Vindo da indústria discográfica, o novo intendente do Met, Peter Gelb, tem estado a operar uma verdadeira revolução de meios. Assim, a 30 de Dezembro de 2006, o Met fez a sua primeira transmissão directa para uma rede de salas digitais nos Estados Unidos e no Canadá, com uma Flauta Mágica em versão adaptada e em tradução inglesa, encenada por Julie Taymor, a realizador do filme Across the Universe – são dessa encenação as imagens acima.
A habilidade de Gelb foi também a de conseguir convencer as vedetas e os sindicatos a terem uma visão de futuro, enquanto por outro lado, negociava com a indústria discográfica – isto é, convencer os intérpretes a não solicitarem os aumentos de “cachets” que se poderiam esperar, fazendo-lhe notar que com estes registos em alta definição haveria rendimentos suplementares no futuro, já que a curto prazo se seguiria a edição em dvd. Por exemplo, o Evgueni Onegin com Renée Fleming e Dmitri Hvorostovsky “chegou-nos” tão “cedo” porque havia sido assim teledifundido. E falo em dvds, mas há também o novo e florescente mercado do “vídeo on demand”.
Confesso que, apesar de tudo, esta ideia da ópera, um espectáculo de sensações e emoções tão directas, ser à distância, me continua a suscitar alguma reserva – mas é um facto que a emoção do directo não deixa de passar na transmissão tecnicamente mediada. Acrescento, já agora, que um dos momentos mais emotivos de ópera que me sucederam em anos recentes ocorreu com a “Ópera ao Largo” que Paolo Pinamonti pôs em prática com o projecto do Anel do Nibelungo encenado por Graham Vick, e em concreto quando, na última récita do Ouro do Reno, os cantores, como que saídos do ecrã, vieram agradecer também ao público que tinha assistido à ópera no Largo de São Carlos.
Acrescento um outro receio, citando textualmente um título de um crítico do “New York Times”, Daniel J. Wakin: “The Multiplex as Opera House: Will They Serve Popcorn?”.
Mas o facto é que é vai havendo cada vez mais transmissões de ópera em alta definição, não só do Met, como também da ópera de San Francisco, que transmitiu nomeadamente Appomattox de Philip Glass – imagem abaixo.
São mais de 400 as salas de cinema dos Estados Unidos e Canadá onde ocorrem estas transmissões, e sendo outro dos objectivos de Gelb renovar o público de ópera, é de notar que a audiência já ultrapassou um milhão.
Curiosamente – mas talvez não sendo assim tão surpreendente – quem não aprecia muito a nova modalidade são os distribuidores de cinema, face a um novo e inesperado “rival” no seu próprio terreno.
Entretanto, o âmbito expandiu-se – desde o início que houve também transmissão para a Grã-Bretanha, a que se vieram acrescentar a Austrália, Nova Zelândia, Alemanha, Holanda, Dinamarca e, desde Abril, também a França. E entretanto, como se a tendência fosse inevitável, também a Royal Opera House de Londres e o Scala de Milão se põem em campo.
A sério, a sério mesmo: será que num futuro próximo passaremos a “Ir à ópera” por exemplo ao Corte Inglês em vez de ao São Carlos, para mais em decrepitude?