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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

A jóia de Semele

 

Haendel
Semele
Com Cecilia Bartoli
Encenação de Robert Carsen
Direcção de William Christie
Produção da Ópera de Zurique
Realização de Feliz Breisach
2 dvds Decca, dist Universal
 
 
Semele é uma das mais insólitas – talvez a mais insólita mesmo – obra de Haendel e uma das suas jóias maiores. Como venho referindo, três das oratórias, Semele. Theodora e Hercules não são bíblicas (e só a segunda é de tema cristão), podendo-se considerar autênticos dramme per mùsica, embora em princípio – Haendel já tinha abandonado os palcos cénicos – não destinadas a representação, o que todavia tem vindo a acontecer, com plena justificação, nos últimos anos.
 
Das três, Semele é cronologicamente a primeira – 1744 Como também já referi, o compositor já se dedicava de modo consistente à oratória desde Saul, em 1739. Não sabemos exactamente se ele terá tido consciência logo depois que Deidamia, de 1741, era a sua última ópera, mas o triunfo de O Messias, no ano seguinte, fê-lo dedicar-se ainda mais à oratória. Certo é que as rivalidades operáticas não o largaram: depois de ainda outra oratória, Sansão, de 1743, e de várias peripécias, incluindo problemas de saúde e financeiros do compositor, ele fez face aos imbróglios com uma obra “in the manner of an  oratório” “in the manner”, note-se bem, destinado ao concerto, mas não exactamente uma oratória, e com as bem patentes marcas de um consumado autor de óperas (é de lamentar que um livrete deste dvd inclua apenas um texto do encenador sem quaisquer notas sobre tão peculiar obra).
 
A sua escolha foi das mais singulares: uma peça do dramaturgo da Restauração William Congreve, uma comedy of manners, uma comédia sexual, e de que maneira! Em toda a obra de Haendel Semele rivaliza apenas com Agrippina e Giulio Cesare na sensualidade e carácter lúbrico – e é aparentemente uma oratória! Semele é um dos grandes papéis haendelianos, e há também o de Juno, nomeadamente com a famosa ária Hence, Íris, hence away!.
 
 
A certa altura da sua carreira, a Bartoli fez saber do seu interesse em gravar um recital dedicado a Haendel. Quando por circunstâncias inesperadas ela cantou na Òpera de Zurique a oratória romana La ressurezione dirigida por Marc Minkowski, pensou-se (escrevi-o a altura) que esse recital se aproximava. Afinal fizéramos em conjunto um mais original trabalho, dedicado apenas ao período romano do compositor, e também dos seus coevos Alessandro Scarlatti e Caldara, o magistral Opera Proibita, “ópera disfarçada” (porque interdita nos Estados Papais) em oratórias e cantatas.
 
O intendente Alexander Pereira tornou a Ópera de Zurique numa das mais reputadas da Europa. É lá, e apenas lá, que Cecilia Bartoli canta regularmente em cena. Em rigor, esta Semele não é uma “produção” daquele teatro. A encenação de Robert Carsen data de 1996, e foi originalmente concebida para o Festival de Aix-en-Provence (foi Minkowski que então dirigiu), na mesma altura, se bem me lembro, que Peter Sellars e Wiliam Christie faziam em Glyndebourne a sua extraordinária realização de Theodora. O toque e os tiques de Carsen estão bem patentes: as cadeiras semi-voltadas de costas para o público, como na Tosca apresentada no ano passado no São Carlos que foi um dos seus primeiros trabalhos, os tapetes vindos directamente da sua anterior encenação em Aix, essa admirável, do Sonho de uma Noite de Verão de Britten (existe em dvd, captado no Liceo de Barcelona), mas a realização nem por isso deixa de ter o seu charme.
 
É pela Bartoli que nos precipitamos para este dvd, e ela é magnificente, strepitosa. Ei-la de novo com “ópera disfarçada”, mas desta vez aliando o esplendor vocal à inteligência dramática e cénica, tão magistral na deslumbrante agilidade como na arte do abandono em Endless pleasure, Oh Sleep (divino pianíssimo!) ou With Fond Desiring.
 
Não é surpresa que os parceiros sejam poucos mais que comparsas. Anton Scharinger (Cadmus) e Birgit Remmert (Juno) são erros de casting, quando ambos já deram provas suficientes noutros repertórios, havendo a agravante da segunda não ter meios para cantar Hence, Íris, hence away, Isabel Rey (Íris) é frágil embora cenicamente versátil, Liliana Nikiteanu (Ino) está mesmo desfasada. Quanto a Charles Workman (Júpiter), tão notável intérprete de tragédies lyriques, de Rameau ou Gluck, tem uma bela linha de canto mas escasseia-lhe a autoridade e a virtuosidade do papel.
 
A Wiliam Christie já se lhe ouviram em Haendel direcções mais vigorosas (é mesmo um especialista), o que é tanto mais estranho, quanto La Scintilla, o agrupamento barroco da Òpera de Zurique, tem melhores capacidades do que aqui deixa ouvir de modo um pouco aquém da beleza plástica da obra, como é estranho que, sendo Christie um consumado director de vozes, se mostre ainda assim incapaz de moldar a vocalidade de vários (quase todos) os solistas. É a presença em cena da Semele da Bartoli que tudo transfigura.
 
A Semele conta com um dos registos mais “anómalos” da discografia haendeliana, com Kathleen Battle (sim, essa, imagine-se!), Marilyn Horne e Samuel Ramey, com uma orquestra “moderna”, a English Chamber Orchestra, e direcção de John Nelson (DG). Em termos musicais globais é essa a gravação a reter. Mas, e apesar de todas as reservas, esta memorável interpretação da Bartoli, a possibilidade de dispor de uma realização cénica de tão insólita obra e, ainda, o facto de com esta ficarem disponíveis em dvd produções teatrais de todas as três oratórias não-biblícas de Haendel, faz com que não se possa deixar de considerar este registo – e de, com prudência ainda, o recomendar.
 
Mortal amada e amante de Júpiter, Semele perde-se pela ambição desmedida de alcançar a divina imortalidade. Quanto à Semele da Bartoli, essa é mesmo divinal.

 

Haendel esquartejado

 

 
Foto de Alfredo Rocha
 
 
 
 
 
Handel
Agrippina
Nuno Côrte-Real
O Velório de Cláudio
Encenação de Michael Hampe
Direcção de Nicholas Kok
São Carlos, 17 de Abril
 
 
 
 
BASTA! Basta de disparates e assassinatos no São Carlos, como agora com a Agrippina de Haendel!
 
Escolheu o teatro comemorar os 250 anos da morte do compositor assinalando também o tricentenário da estreia do seu grande sucesso público italiano, ocorrida no mais prestigiado teatro de Veneza, o S. Giovanni Crisostomo.
 
Logo os disparates começaram com a encomenda a Nuno Côrte-Real de um intermezzo à maneira da opera buffa que se intercalava na opera seria, Acontece que tal prática se constituiu sim com a sucessiva ópera napolitana, e que Agrippina pertence ainda esteticamente ao mundo da seiscentista ópera veneziana, tal como se encontrava já exemplarmente definido na L’incoronazione di Poppea de Monteverdi (de que Agrippina é em termos de referentes históricos uma espécie de préquela), misturando situações sérias e cómicas – Haendel guardará a memória disso ainda em obras muito mais tardias como o Giulio Cesare e o Serse. Quem não sabe isso, ou seja, que não há qualquer lugar a um intermezzo na Agrippina, isto é, o senhor Christoph Dammann – essa “brilhante” personalidade desencantada pelo ex-secretário de Estado e intendente-geral dos teatros, Mário Vieira de Carvalho, responsável primeiro pela actual situação – é um ignorante de história de ópera e, como tal, não tem qualificações para ser director de teatro.
 
Acontece que o libretista escolhido por Côrte-Real, José Luís Peixoto, em nada fiel ao espírito da encomenda, escreveu de facto uma préquela à ópera de Haendel, O Velório de Cláudio ou representação bufa de personagens históricas, texto indigente (escapa-me a piada de no velório de um suposto morto haver uma batalha de pastéis de bacalhau!) que em nada faz jus à sua reputação, e que dada a natureza do texto o encenador Michael Hampe decidiu, com acerto, colocá-lo antes como prelúdio.
 
Considero e estimo Côrte-Real como um dos mais talentosos jovens compositores portugueses, mas depois de A Montanha há dois anos na Gulbenkian, no Fórum “O Estado do Mundo”, este é outro desastre, uma música sem personalidade, que de novo parece uma má filtragem, com alguns “pós” modernos, de certos compositores “nacionais” da Europa Central da primeira metade do século (Janácek ou Kodaly).
 
Mas o pior vem depois: em vez de celebrado Haendel é, ó socorro, esquartejado: das mais de 3h30 de música da Agrippina restam 2h25! Corta aqui e ali, corta a secção b e o da capo (e portanto a arte da variação ornamental), corta mesmo no final a personagem de Juno. Isto faz-se?! É isto a responsabilidade de um Teatro Nacional?
 
No elenco apenas três cantores, Alexandra Coku (Agrippina), Musa Nkuna (Nerone) e Andrew Wattts (Ottone) revelaram algumas noções do canto haendeliano, mas com tantos limites ou falhanços pelo meio! Coku mostrou alguma autoridade, embora também opacidade nos agudos em Pensieri, para logo depois falhar o Ogni vento que conclui o Acto II e terminar a ópera esgotada. Ao contratenor Watts fugiu-lhe sistematicamente a voz de cabeça para voz de peito, e o maravilhoso lamento de Ottone esteve longe de ser pungente como requerido. A Nkuma faltou-lhe plasticidade de voz.
 
Os outros foram um horror, quase todos. Reinhard Dorn (Claudio), que numa troca de papéis se imaginou a cantar, mal, o Don Bartolo do Barbeiro de Sevilha, Manuel Brás da Costa (Narciso) e Chelsey Schill (Poppea) fizeram entre eles um festival de desafinação, para sofrimentos dos nossos ouvidos e melomania handeliana. Schill, a tal que é de facto a única cantora-residente no São Carlos cantando em (quase) todas as óperas (onde estão as prometidas audições de cantores portugueses?) merece uma referência especial, de tão estúpida de superficialidade (sim, escrevi estúpida, no tocante à negação da inteligência musical) se mostra a sua concepção de boneca mecânica a precisar de urgente reparação. Quanto a Luís Rodrigues (Palante), pode ser um dos melhores cantores portugueses, é-o de facto, mas o barroco e o canto fiorito em geral não se lhe adequam.
 
Ao longo de muitos anos escrevi vezes sem conta que Michael Hampe era “o mais chato encenador do mundo” para agora me dizer. A ancenação é chata e rotineira, sem uma ideia, a não ser um beijo incestuoso de mão e filho, Agrippina e Nerone, que nem aquece nem arrefece, é apenas inconsequente.
 
Mas o pior, o pior mesmo (com Chelsey Schill) é a direcção quadrada de Nicholas Kok, a braços, é certo, com a difícil tarefa de pôr membros da Sinfónica Portuguesa a tocar Haendel. Nada há de gradações dinâmicas e de sentido do fraseado, de propulsão rítmica, e os oboés mostram mesmo sérias dificuldades. E de nada vale ter um contínuo “barroco” quando é tão pobre (como é que um músico como o cravista Marcos Magalhães se fica pelo nível zero?!), desagradável mesmo (Kenneth Frazer no violoncelo barroco).
 
Não muito depois de tomar posse, o ministro José António Pinto Ribeiro, tinha dito da sua discordância da Op.Art, esse organismo aberrante que reúne o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado – valendo-lhe aliás logo resposta de Vieira de Carvalho. Como se tornou no ministro inexistente deixou as coisas continuaram. Assim, mais que co-responsável, é ele altamente responsável pela permanência do incompetente senhor Dammann, e portanto pela falta de respeito pelos níveis de “qualidade artística” legalmente fixados.
 
Ò socorro, ó da guarda – Haendel está a ser esquartejado no São Carlos! Basta e BASTA!
 
 

"Furore" e furor

 

 

 

 

Haendel
Furore
Árias de “Serse”, “Teseo”, “Giulio Cesare”, “Admeto”, “Hercules”, “Semele”, “Imeneo”, “Ariodante” e “Amadigi”
Joyce diDonato
Les Talens Lyriques, Christophe Rousset
Virgin
 
 
A meio-soprano norte-americano Joyce DiDonato começou por se notabilizar em papéis rossinianos, no Barbeiro de Sevilha e na Cenerentola. De Rossini a Haendel foi um passo, o que se compreende, porque dadas ainda notórias diferenças, como os affetti da estética barroca próprios às óperas do caro sassone, ambos são os grandes mestres (eles sim, se bem que possamos acrescentar Vivaldi) do que é efectivamente o bel canto, o canto ornamentado – e não, como erroneamente (não me canso de o repetir) se repete, os compositores do primeiro romantismo, Bellini e Donizetti, já de canto spianato (de linha aplanada), embora ainda com alguns resquícios “belcantistas”.
 
Em 2004, DiDonato estreava-se em Haendel num delicioso disco de duetos operáticos com Patrizia Ciofi, “Amor e gelosia” (Virgin), imaginativamente organizado e dirigido, surpresa, por Alan Curtis – ele que por hábito tão académico é. Entretanto cantou em cena esse grande “papel” que é a Dejanira do Hercules, uma das tais oratórias não-biblícas de Haendel, verdadeiros dramme per mùsica, que têm vindo a ser representadas com alguma regularidade. A sua voz também tem vindo a evoluir, mais aguda, entre o mezzo e o soprano, e de facto até gravou mesmo uma parte de soprano, outro papel handeliano, o de Alcina na ópera homónima, gravação que aliás acaba de ser lançada – a extensão e facilidade da sua voz são aliás bem patentes neste disco.
 
Falei dos affetti barrocos. DiDonato não só escolheu Haendel para o seu primeiro recital, como um tipo de árias particular, de um affetto específico, o furore, mostrando os seus formidáveis meios. Todavia é preciso fazer algumas precisões: escolheu a cantora aproximar-se de uma maior caracterização de duas personagens, a Medea de Teseo (tenha ela oportunidade e que espantosa maga deve ser) e a Dejanira de Hercules, com várias árias de uma e outra, sendo que Dolce riposo da primeira e Then I am lost… da segunda não são árias de furore. Por outro lado, e apesar da secção central, é duvidoso que o famoso Scherza infida de Ariodante caiba no objectivo programático – é mais um lamento. Ora, contradição, a interpretação dessa ária, superlativamente admirável, é o pináculo do recital, enquanto no papel que mais se esperaria de DiDonato, o Where shall I fly? de Dejanira (e que por alguma razão encerra o programa), porventura por marcas da experiência cénica, é de um exagero de efeitos de todo despropositado.
 
A escolha do programa é interessantíssima, mesclando trechos de obras mais conhecidas com outras que o são muito menos. A robustez da voz e a facilidade da emissão impressionam, mas ainda mais a inteligência do rubato e do fraseado, sobretudo da conclusão das frases, e da coluratura (embora com alguns gorgejos dispensáveis), a eloquência (Hence, Iris hence away da Semele, mesmo que não faça esquecer a histórica interpretação de Marilyn Horne), a formidável autoridade (Orride larve…/Chiudetevi miei lumi do Admeto), tudo isso tornam marcante esta estreia em recital de Joyce DiDonato, confirmando-a sem margem para dúvidas como uma intérprete haendeliana a considerar. Infelizmente, e não é pequeno pormenor, o acompanhamento de Les Talens Lyriques e Christophe Rousset é só isso, “acompanhamento” sem chama dramática.
 
 Pelas objecções apontadas também me deixa algo reservado o imenso furor em torno deste recital, que de qualquer modo, é óbvio, não pode deixar de ser um disco recomendado.

 

Uma decepção italiana

 

 

Haendel
12 Concerti Grossi op.6
Il Giardino Armonico, Giovanni Antonini
3 cds Decca L’Oiseau-Lyre, dist. Universal
 
 
 
Um dos acontecimentos mais relevantes no domínio interpretativo da música barroca nos últimos 15 anos foi a chegada tardia – muito posterior aos austríacos, ingleses e flamengos – mas clamorosa dos agrupamentos italianos, renovando profundamente o nosso entendimento da época musical que se estendeu de Monteverdi a Vivaldi. Eis que se diria que, pronto, nestes 250 anos da morte do compositor é chegado a sua altura de partirem “ao assalto” do “Haendel italiano” e “italianizante”. Mas calma…
 
No dia 11 de Janeiro passado ocorreu em Lisboa um dilema handeliano: sendo escassos os concertos comemorativos anunciados pelas instituições musicais portuguesas, logo dois calhavam no mesmo dia e chegavam a sobrepor-se: uma das melhores intérpretes actuais de Haendel, a contralto Marijana Mijanovic, apresentou-se na Gulbenkian; estava esse concerto a terminar e já começava no CCB o de Il Giardino Armonico, com alguns dos Concertos Grossi op.6. Infelizmente o recital de Mijanovic foi um desastre, por a cantora estar em más condições vocais, cortando inclusive uma ária do programa – mais valia ter cancelado o concerto. Entretanto, no que me toca perdi o outro evento, de que me chegaram relatos entusiásticos, deixando-me pesaroso por não ter assistido. Afinal…
 
 
Conta-se que na estadia romana de Haendel, quando da sua primeira oratória, Il trionfo del tempo e del disingano, Corelli, concertino, se terá voltado para o autor e dito a propósito da abertura: “Meu caro saxão esta música é no estilo francês [as aberturas de Haendel são sempre em estilo francês] que não entendo”. E logo o caro sassone escreveu em seu lugar uma sonata em estilo corelliano.
 
Haendel chegou a Inglaterra como compositor de óperas “italiano”, e “italianas” foram também outras obras que aí escreveu. É óbvio que os Concerti Grossi op 3 e op. 6 seguem o modelo de Corelli. É assim lógico que agrupamentos especializados no barroco italiano os abordem – mas atenção, o Haendel propriamente da estadia em Itália já tem sido abordado por intérpretes transalpinos: Alessandrini gravou, e admiravelmente, o tal Il trionfo del tempo e del disingano, Fabio Bonizzoni e La Risonanza estão a fazer na Glossa, como já foi dito, uma notável série das cantatas italianas.
 
Importam estas precisões tais as pretensões que Giovanni Antonini afirma no livrete, não se coabindo mesmo de criticar o “estilo seco de certos agrupamentos, e nomeadamente algumas falanges inglesas e holandesas”. Bem, é caso para dizer que depois de ouvir Il Giardino Armonico o desejo é o de voltar a escutar o brilhantismo e fluidez da Academy of Ancient Music dirigida por Andrew Manze (Harmonia Mundi).
 
E, no entanto, o triplo disco até abre de modo prometedor com um majestoso Concerto nº 1. Mas rapidamente vem ao de cima o gosto forte dos contrastes – o exagero mesmo –, da acentuação dos primeiros tempos e dos golpes das arcadas dos milaneses, desfigurando as frases. Se o ripieno é sólido, o concertino é terrivelmente desconexo.
 
Já o Largo do Concerto nº 2 deixa antever essa desconexão. A partir daí não pára. A Polonaise do Concerto nº3 é transformada numa espécie de “Alla Rustica” de teatralidade sem nexo, o Larghetto e staccato inicial do Concerto nº 5 é a viva demonstração da incompreensão do estilo haendeliano, etc. Surpreendentemente o grupo italiano só dá mesmo um ar da sua graça no menos italiano dos movimentos, a Hornpipe do Concerto nº 7. Sobretudo, tudo ou quase é interpretado da mesma maneira, terrivelmente monótono.
 
Já alguém sugeriu que, por certo involuntariamente, a aliás mirabolante imagem de capa deste álbum, com o grupo fora de um autocarro que parece ter problemas técnicos, é uma inesperada metáfora da “avaria” que o próprio disco é no percurso de Il Giardino Armonico, uma tremenda decepção.
 
 
 
Nota – Dada a inflação de lançamentos e eventos handelianos, também muito haendeliana andará esta página. Apesar de chegarem novos lançamentos quase todas as semanas, tentarei contudo variar da circunstância comemorativa.

 

Haendel, glória e reapreciação - III

 

 

Há por vezes uma perniciosa tendência para estabelecer associações e/ou oposições, como Haydn/Mozart, Verdi/Wagner, Bruckner/Mahler ou Schoenberg/Stravinsky. Assim sucede também com Bach/Haendel.
 
Nascidos no mesmo ano de 1785 são efectivamente esses dois (mas poder-se-ia acrescentar Vivaldi, porque não?), os grandes mestres finais do barroco. Mas a grandeza de Bach é ímpar e dispensa comparações.
 
Homem do mundo, cosmopolita, Haendel pode ser observado noutra perspectiva, inclusivamente não apenas de música mas de história de arte. As suas seis “óperas mágicas”, Rinaldo, Amadigi, Teseo, Orlando, Ariodante e Alcina (as três últimas baseadas no Orlando Furioso de Ariosto), com as suas maquinarias, são a apoteose do barroco, do seu teatro dos prodígios e da estética do maravilhoso
 
Esse é o núcleo axial, embora haja também outras óperas admiráveis, da conhecida e superlativa Rodelinda à quase desconhecida Partenope passando pelo Giulio Cesare, Tamerlano, Agrippina ou Serse. E, é óbvio, há as oratórias, mas não apenas O Messias, Saul, Salomon ou Israel no Egipto – há a praticamente derradeira e em especial comovente Jephta como há as oratórias do período romano, Il Trionfo del tempo e del disingano e La Resurrezione, como há ainda o caso à parte das três oratórias não-biblícas, Theodora, Semele e Hercules, autênticos dramme per musica à sua maneira (e que, de facto, têm sido encenadas – com o lançamento agora da Semele com Cecilia Bartoli, há mesmo dvds de todas as três), ou essa obra extraordinária Ode Pastoral e meditação que é L’Allegro, Il Penseroso ed Il Moderato, baseado em Milton. Como há os Concerti Grossi ou as Cantatas do período romano, algumas delas seguramente obras-primas, como La Lucrezia (uma notável série dedicada a essas cantatas italianas, dirigida por Fabio Bonizzoni, está a ser editada pela Glossa).
 
Glória a Haendel, Aleluia.

 

Haendel, glória e reapreciação - II

 

 

 

Em Junho de 1920, o Prof. Oskar Hagen dava início em Göttingen a um festival Händel (que ainda existe), apresentando Rodelinda, ópera que não subia à cena desde…1736 – e de facto nenhuma ópera de Haendel era representada desde 1754, ou seja, o “Haendel operático” já estava esquecido ainda em vida do autor. Era a estupefacção: Haendel “também” tinha composto óperas? Mas em 1922, o mesmo Hagen publicava uma edição de Giulio Cesare, com diversas transposições para vozes graves – até aos 50 e mesmo 60, barítonos como Walter Berry e Dietrich Fischer-Dieskau cantaram o papel titular tornando o Cesare na única ópera do autor vagamente conhecida, de resto de Haendel se retendo apenas O Messias, a Música Aquática e os Royal Fireworks e um espúrio “Largo”, que de facto é um larghetto, Ombra mai fu, o canto elegíaco a um plátano de Serse na ópera homónima.
 
Mas entretanto também ocorriam os primórdios da chamada “música antiga”. Com Alfred Deller ressurgiam os falsetistas ou contra-tenores. Em 1954, Deller gravou uma integral de uma ópera, Sosarme, para concluir que tanto como a sua voz se adequava a Purcell era desajustada para Haendel. Já do lado de lá do Atlântico o outro contra-tenor, Russel Oberlin, gravava um marcante recital no bicentenário da morte – recital que, atenção, acaba por ser reeditado pela Decca. E havia as cantoras, algumas.
 
Nesse mesmo de 1959, a estação de rádio de Colónia, a WDR, organizava uma versão de concerto da Alcina, com Joan Sutherland (e, em papel transposto, Fritz Wunderlich, o luxo), com um dos primeiros agrupamentos de instrumentos de época, a Capella Coloniensis – e, facto pouco conhecido, seria por representações da Alcina que a Sutherland ganharia o cognome de “La Stupenda”.
 
E Teresa Stich-Randall dava voz a Rodelinda e surgiam as incomparáveis meio-sopranos Marilyn Horne, Maureen Forrester, Teresa Berganza e Janet Baker.
 
Mas ainda em 1959, no tocante à musicologia, Edwar Dent publica Handel’s Dramatick Oratórios and Masques e abre caminho a outra revelação: há mais, muito mais, e do mesmo nível, que O Messias e Israel no Egipto. No ano seguinte foi a vez de Rudolf Ewerhart dar a conhecer o “fundo Santini” conservado na Biblioteca de Münster, dando início à revelação do período romano de Haendel.
 
 
O conhecimento musicológico foi aos poucos criando as premissas de uma reapreciação. Em 1985, o ano do tricentenário do nascimento, Christopher Hogwood, intérprete e estudioso (Handel – Thames and Hudson, 1988), proclamava que o músico “era por vocação um homem de teatro”. Nesse mesmo ano tal vocação dramática era corrobada por uma gravação maravilhosa da Alcina, com Arleen Auger (ah, que memórias dela nesse papel!) dirigida pelo recentemente falecido Richard Hickox. Mas já em 1976, John Eliot Gardiner com o seu maravilhoso Monteverdi Choir e uma então designada Monteverd Orchesta (com instrumentos clássicos, antes da formação dos English Baroque Soloists) registara prodigiosamente uma obra do período romano, o Dixit Dominus; nem ele próprio, em posterior nova gravação, repetirá tal prodígio. A reapreciação e redescoberta de Haendel começavam efectivamente.
 
Há 15 anos atrás constava eu de que das 40 óperas de Haendel, 23 estavam editadas em cd. Hoje todas as óperas estão gravadas (se bem que algumas entretanto indisponíveis), bem como aliás as oratórias.

 

Haendel, glória e reapreciação - I

 

 

No dia dos 250 anos da morte do compositor

 

 

 

 
Morreu célebre George Frederic Haendel (1685-1759). A sua vida tinha sido de contrastes: sucessos e contrariedades, revezes e falências mesmo no seu género de eleição, a ópera, criação pelo fruto das circunstâncias e mesmo quase por acaso de um género nacional, a oratória inglesa, por este compositor alemão, imbuída de influência italiana, sensível à francesa e que se tinha adaptado também à tradição inglesa remontando a Purcell.
 
Se foi celebrado em vida, tanto que lhe foi erigida uma estátua nos Vauxhall Gardens, Haendel foi o primeiro compositor da história da música europeia de quem as obras nunca deixaram de ser executadas. Mozart fez arranjos de O Messias e Acis e Galateia, foi sob a influência das suas oratórias que Haydn compôs A Criação e As Estações, Beethoven reverenciava-o e se a geração romântica, toda votada ao culto do “redescoberto” Bach o ignorou, o jovem Brahms compôs as Variações e Fuga sobre um Tema de Haendel.
 
O alemão que na sua estadia italiana de 1706-10 absorvera em Roma com prodigiosa rapidez e invenção as influências de Corelli e Alessandro Scarlatti, e que triunfara ainda com duas óperas, Rodrigo em Florença e Agrippina em Veneza, chegara a Londres em 1711 exactamente para fazer triunfar a ópera italiana com Rinaldo. 30 anos depois Deidamia foi a última das 40 óperas que escreveu – 40, note-se bem!
 
Embora não sendo em rigor caso único (Vivaldi também foi várias vezes compositor e empresário), Haendel inseriu-se como sujeito autónomo na sociedade mercantil – e, assim, por protectores importantes que também tivesse tido, foi ele de facto o primeiro compositor emancipado, antes de Mozart se libertar do arcebispo Coloredo e de Beethoven se constituir como paradigma, como o quis a persistente tradição humanista, de resto retomada pela narrativa adorniana do modernismo (Adorno, de resto, era anti-haendeliano).
 
Mas ser empresário supôs investimentos, estar dependente de sucessos e insucessos (e com o correr do tempo cada vez mais de insucessos) e mesmo rivalidades ferozes, enquanto se ia constatando a resistência dos ingleses à ópera italiana, parodiada na Beggar’s Opera de Gay e Pepusch.
 
Tinha ele absorvido também como se disse a tradição inglesa remontando a Purcell, odes, anthems e masques. Foi como uma semi-teatral masque, uma representação religiosa de um drama bíblico de texto inspirado em Racine, que Esther foi apresentado em 1732, em Cannons, a propriedade de um dos protectores de Haendel, o Duque de Chandos. Algum tempo depois, e à revelia do compositor, a obra foi apresentada em Londres, com sucesso. Enfim, o próprio Haendel decidiu ser ele a organizar uma apresentação em concerto.
 
Tinham-se sucedido Deborah e Athalia, mas era ainda a ópera que ocupava Haendel. Enfim em 1739, com Saul, iniciou uma actividade consequente de autor de oratórias. De 1741, como já se disse, data a última ópera, Deidamia; no ano seguinte foi o triunfo em Dublin de O Messias.
 
É “esse” Haendel, o de O Messias, de Joshua, de Judas Maccabeus, de Israel no Egipto, que será massivamente celebrado, por vezes com coros de centenas de elementos, na imediata posterioridade e ao longo do século XIX.
 
Até que…
 
 
 
 
 
 
 

 

Haendel, Edição Harmonia Mundi

 

 

 

Comecemos o dilúvio de edições discográficas dedicadas aos dois compositores mais celebrados deste ano com a Edição Haendel da Harmonia Mundi. A concepção é atraente e pertinente com duas caixas de árias, uma das óperas, outra de oratórias e ainda uma outra de concertos. O design é imaginativo e prático, as notas dos livretes são mantidas, bem como os textos, exceptuados os libretos de óperas – remetidos para a internet, como vai sendo cada vez mais hábito. E, claro, o preço é económico.
 
A mais valia decisiva é no entanto que a Harmonia Mundi possuía em catálogo algumas excelentes gravações haendelianas, e uma mesmo, o Giulio Cesare dirigido por René Jacobs, que em 1991 teve um efeito deflagrador, e abriu decisivo caminho à nova consagração das óperas de Haendel.
 
Duas caixas se impõem de imediato pela coerência: a das óperas, o citado Giulio Cesare, Rinaldo e Flavio (obra menos conhecida, grandíssima interpretação), dirigidas por René Jacobs, mais um bónus, algumas árias cantadas pelo próprio Jacobs, numa caixa de 9 cds, e a dos Concertos, Concerti Grossi op. 3 & op. 6 e Concertos para Órgão op. 4, com a Academy of Ancient Music, formação haendeliana emérita, dirigida do cravo (op. 3) e do órgão (op.4) por Richard Egarr, e pelo concertino Andrew Manze (op.6), numa caixa de 4 cds – e se iremos ao longo do ano fazendo aproximações à hoje riquíssima discografia de Haendel, quer-me parecer que esta caixa dos concertos virá a ter papel cativo nas escolhas, donde se deduz que é a de maior relevo nesta edição da HM.
 
Jacobs ainda dirige as oratórias, Saul e o inevitável O Messias (4 cds), que essa não se impõe, o que poderá surpreender, mas é razão de um Messias decepcionante.
 
Finalmente as duas caixas de árias, uma um projecto coerente mas de resultado desequilibrado, outra uma reunião de discos díspares, mas de grande qualidade. A primeira repropõe o projecto das “Arias for…” concebido por Nicholas McGegan, que teve a importância histórica de, a partir de 1987, abrir todo um capítulo, até muito para lá de Haendel, de retomar o perfil de determinado intérprete histórico (digamos que recitais como a homenagem de Cecília Bartoli a Maria Malibran e de Juan Diego Florez a Rubini se vieram inscrever nessa tendência). Acontece que musicalmente se impõem apenas as árias para a Durastanti com a grande Lorraine Hunt, e para Montagnana, com David Thomas, sendo pálido o disco de Lisa Saffer consagrado à Cuzzoni e – preço do pioneirismo, até porque foi justamente o primeiro – é francamente insatisfatório o de Drew Minter com as árias para o célebre castrato Senesino.
 
Em contrapartida é dispare mas francamente notável nas realizações individuais o volume (de 4 cds, como o anterior) de “Famous Árias”, com recitais de Dorothea Röschman (o disco indispensável para as árias alemãs), Lorraine Hunt, Andreas Scholl (o célebre recital “Ombra Mai Fu”) e Mark Padmore.

 

As Vésperas na sua policoralidade

 

 

Monteverdi

Vespro della Beata Vergine

Cantar Lontano, Marco Mencoboni

Sé de Lisboa, 18 de Dezembro

 

 

“Hossana!” – pouco mais de um ano depois das deslumbrantes Vésperas que Sigiswald Kuijken dirigiu na Casa da Música, tivemos de novo oportunidade de ouvir, a encerrar uma temporada de concertos do Instituto Superior Técnico (um exemplo para instituições congéneres), aquela que é uma das mais extraordinárias obras de toda a história da música europeia, e agora em Lisboa e de novo numa Igreja, a Sé, como nessa ocasião absolutamente memorável – e que de facto permanece nas nossas memórias – da célebre realização dirigida por Jordi Savall nos Jerónimos há 20 anos, a 26 de Outubro de 1988, sendo mesmo que dois dos “oficiantes” de então o foram também agora, o tenor Gian Paolo Fagotto e Marco Mencoboni, que então estava ao cravo e agora dirigiu.
 
“Hossana nas alturas!”, pode mesmo dizer-se, já que, prosseguindo a sua prática dos princípios do “cantar lontano”, técnica de espacialização dos sons usada na música sacra italiana da época de Monteverdi, Mencoboni estudou detalhadamente a acústica e a arquitectura da Sé e não só colocou cantores e instrumentistas também no coro alto como igualmente nas galerias superiores sobre a nave central, o trifório, e inclusive na cúpula
 
A experiência foi emocionante, mas ainda assim impõem-se questões quer sobre a concepção de Mencoboni, quer sobre algumas desigualdades da realização, algumas mesmo desagradáveis.
 
Se as Vespro della Beato Vergine são das obras mais extraordinárias da história da história da música europeia são também enigmáticas. Em 1610, depois de muitos anos, nada menos que 27!,  sem compor música religiosa, ou pelo menos sem a fazer imprimir, Cláudio Monteverdi publica conjuntamente a Missa in illo Tempore, no “stilo antico”, da polifonia renascentista, e as Vespro, de “stilo concertato”. O objectivo era claro: obter uma posição em Roma, para isso demonstrando a sua completa mestria nas diversas modalidades de escrita. Se ainda assim não oferece dúvidas que a Missa e as Vésperas são duas entidades distintas, resta que no tocante à segunda subsiste uma dúvida: é um ofício ou uma colectânea?
 
Não só há dois Magnificat, o que nos termos estritos do ofício não tem sentido, como uma das maiores singularidades da “obra”, os “concertos sacros”, Nigra Sum, Pulchra es, Laetatus sum, Duo Seraphim e Audi Coelum e a maravilhosa Sonata sopra Sancta Maria não têm cabimento na liturgia.
 
Mencoboni resolveu uma única questão, a dos Magnificat, optando apenas pelo primeiro, como se a existência de dois fosse um qualquer acidente de edição. Assim encarou a obra como um ofício, opção que pelos motivos expostos tem tanto de discutível quanto de aceitável – qualquer realização das Vésperas é isso mesmo, uma opção ou um conjunto delas. Já eminentemente mais discutível me pareceu a sua insistência na experiência espiritual em contraponto à teatralidade, como se nesta estética barroca fosse possível separar o sacro e o profano, ou vice-versa – afinal Monteverdi também transmutou o Lamento d’Arianna em Pianto della Madonna.
 
Dentro da concepção de Mencoboni, e para além dos dados da espacialização, gostaria de salientar um momento, a justeza com se veio juntar a terceira voz, quando no Duo Seraphim se invoca “Pater, Verbum et Spiritus Santum: et hi unum sunt”, a Santíssima Trindade, justificando plenamente, pelo menos no tocante a esse concerto, que, embora não de tema mariano, seja parte do ofício.
 
Mencoboni colocou o coro de cantochão atrás do altar-mor, neste o órgão e solistas, e no coro alto o propriamente coro vocal (uma reunião de solistas, não um “coro” em sentido usual) e os restantes instrumentos. A disposição tinha resultados de audição desiguais, mas isso era inevitável. O crescendo foi-se criando à medida que os solistas se foram movendo no espaço, sobretudo, e foram momentos de verdadeiro extâse, no eco do Audi coelum, ou na dispersão, no coro alto, trifório, e mesmo na cúpula (!), no esplendoroso Magnificat.
 
Mas também é preciso dizer que houve notórias desigualdades entre os solistas, alguns bastantes bons, o barítono Marco Scavazza, o contratenor Andrea Arrivabene, um dos tenores que não sei precisar, como que há a notar que dois dos concertos, o Nigra Sum e o Pulchra es, foram fraquíssimos, mesmo desagradáveis.
 
Foi pois uma realização desigual, discutível nos princípios e nalguns dos meios e ainda assim empolgante.
 
 
Marco Mencoboni

 

Cantatas de Bach - III

 

Bach
Cantatas

 

 

 

 

Vol. 23 – Cantatas BWV 159, 67, 42, 158 (cd 1), 104, 85, 112 (cd 2)
Gillian Keith, Daniel Taylor, Charles Daniels, Stephen Vercoe ( cd 1)
Katharine Fuge, William Towers, Norbert Meyn, Stephen Vercoe (cd 2)
 
 

 

 

 

 

Vol. 3 – Cantatas BWV 24, 185, 177 (cd 1), 71. 131, 93, 88 (cd 2)
Madgalena Kozená, Nathalie Stutzman, Paul Agnew, Nicholas Teste (cd1)
Joanne Lunn, William Towers, Kobie van Rensburg, Peter Harvey (cd 2)
 
 
 
 
Vol. 25 – Cantatas BWV BWV 86, 87, 97 (cd 1), 44, 150, 183 (cd 2)
Katharine Fuge, Robin Tyson, Steve Davislim, Stephen Loges (cd1)
Joanne Lunn, Daniel Taylor, Paul Agnew, Panajotis Iconomou (cd2)
 
Monteverdi Choir, English Baroque Soloists, John Eliot Gardiner
Cds Soli Deo Gloria, dist. CNM
 
 
Como se sabe, a integral das cantatas litúrgicas de Bach por Gardiner, em curso de edição, é o registo de um projecto único na sua desmesura: em 2000, nos 250 anos da morte do compositor do compositor, mais exactamente desde o dia de Natal de 1999, Gardiner e os seus músicos efectuaram uma peregrinação que não se limitou aos locais que tinham sido os do compositor, na Turíngia e na Saxónia, mas foi mais vasta, tendo inclusive passado pelo Porto, e concluindo-se em Nova Iorque.
 
As cantatas foram interpretadas no dia do calendário litúrgico a que se destinavam, e esse acto foi, diz Gardiner, a “raison d’être” do projecto. Mesmo que novos dados de edição tenham sido utilizados, não se tratou de maneira nenhuma de um projecto eminentemente musicológico – aliás, desde logo, e ao contrário dos princípios filológicos admitidos, Gardiner sempre usou coro misto, o seu Monterverdi Choir, nas interpretações bachianas.
 
Gardiner pretendia também captar a emoção de um concerto, mesmo que por razões de segurança as gravações fossem de facto efectuadas imediatamente antes – supondo-se contudo que o fulgor de uma noção de urgência ficasse registado. Mas um tal desmesurado projecto foi – e é no seu eco discográfico – forçosamente irregular, desde logo pela constante mudança de solistas. Acresce que, como podemos verificar, a qualidade das gravações em si mesmas não é brilhante.
 
Quem não esteve pelos ajustes foi a editora na qual Gardiner era no entanto uma das cabeças de cartaz, a DG/Archiv: alguns volumes ainda saíram com esse selo, mas depois veio a ruptura e Gardiner criou a sua própria editora, Soli Deo Gloria. Mas, já agora, também não se percebe muito bem a ordem de publicação dos volumes, como se pode verificar pelos presentes.
 
O vol. 23 reúne cantatas para o Primeiro Domingo depois da Páscoa, Nach dir, Herr, verlanget mich, BWV 150, Halt im Gedächtnis Jesum Christ, BWV 67, Am Abend abr desselbigen Sabbats, BWV 42 e Der Firied sei mit dir, BWV 158, e para o Segundo Domingo Depois da Páscoa, Du Hirt Israel, höre BWV 104, Ich bin ein guter Hirt BWV 85 e Der Herr ist mein getreuer Hurt, BWV 112; o vol. 3 cantatas para o Quarto Domingo depois da Trindade, Ein ungerfärbt Gemüte BWV 24, Barmherzigges Herze der ewigen iebe BWV 185 e Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ BWV 177 e para o Quinto Domingo Depois da Trindade; Gott ist mein König BWV 71, Aus der Tiefen rufe ich, Herr, zu dir, BWV 131, Wer nur lieben Gott lässt walten, BWV 93 e Siehe, ich will viel Fischer aussenden BWV 88; o vol. 25 cantatas para o Quinto Domingo Depois da Páscoa, Wahrlich, wahrlich, ich sage euch BWV 86, Bisher habt ir nichts gebeten in meinen Namen BWV 87, In allen meinen Taten, BWV 97, e para o Domingo depois da Ascensão, Sie werden euch in den Bann tun I, BWV 44, Nach dir, Herr, verlanget mich, BWV 150 e Sie werden euch in den Bann tun II e ainda um moteto de Johan Christoph Bach (primo) Fürchte dich nicht.
 
Por esta altura da peregrinação, em termos discográficos, as características estão já suficientemente definidas, e dir-se-ia que o termo que o termo que ocorre é o de "graciosidade", mesmo de certo modo “brilhantismo”, mas em modos mais profanos que em rigor litúrgicos: Gardiner está no seu melhor em cantatas festivas como a BWV 71, no vol. 3, sempre que o ritmo é de dança, ou nos coros fugados. Paradoxo maior para um projecto de cantatas, são as cores dos English Baroque Soloists que sobressaem, às vezes os oboés, outras as flautas, outras ainda, mais raras, as trompetes, mesmo nalgumas ocasiões as cordas, e imagine-se que no Monterverdi Choir as vozes femininas, filologicamente desajustadas, se sobrepõem às masculinas.
 
O vol. 3 é um dos melhores já publicados e não necessariamente pelos nomes mais sonantes de solistas – de facto Kozená até se apresenta com falta de fôlego e Stutzman com algumas inflexões amaneiradas, embora sempre impressionante de timbre. Mas há um notório dramatismo e esplendor, sobretudo na BWV 24, os tenores Agnew e Von Rensburg são pertinentes e o baixo Harvey mesmo eloquente.
 
Em contrapartida, o vol. 23, pesem ainda os belos momentos do cd 1, como os coros finais da cantata BWV 150, ou as interpretações do baixo Stephen Vercoe ao longo do volume, é arruinado pela flagrante mediocridade do contratenor Norbert Towers e do tenor Norbert Meyn no cd 2.
 
São ainda os desequilíbrios dos solistas que marcam o vol. 25, no cd1, com uma sofrível soprano, Katharine Fuge, e um surpreendente tenor (e surpreendente neste reportório), Davislim, no cd 1, enquanto no 2 Daniel Taylor e Agnew são excelentes.
 
Tudo ponderado, o vol. 3 é das melhores introduções às características desta integral de Gardiner.