Neste quadro de balanço e perspectivas da Casa da Música não quereria cometer uma omissão, sobre algo que é já em si mesmo uma omissão: a ausência - ou exclusão, não sei - de Anthony Wittworth Jones, que foi o primeiro director artístico da instituição.
Certo, houve muito equívocos, mesmo jogadas e faltas de transparência, na nomeação do britânico pela então Casa da Música/Porto 2001 S.A., conduzindo ao afastamento do projecto de Pedro Burmester. Mas à medida que se integrou e se foi inteirando do processo, o antigo director do Festival de Glyndebourne também compreendeu por ele próprio que, uma vez estatutariamente constituída a entidade responsável pela Casa, fazia todo o sentido que o Conselho de Administração entretanto nomeado optasse por um regresso de Burmester.
O que é certo é que em muito pouco tempo, dada a sua vasta rede internacional de contactos, Wittworth-Jones conseguiu trazer à novel Casa a Sinfónica de Londres, Brendel, Gardiner, etc., e assegurou para todos efeitos - ainda que com o elemento de continuidade, António Jorge Pacheco como coordenador de produção - as duas primeiras temporadas.
Falou-se na altura que, com Burmester como director artístico, ele pudesse permanecer como consultor. Desconheço as razões porque tal não se concretizou, se incompatibilidades, se limites de ordem financeira (e das questões de gestão da Fundação da Casa da Música falarei também). Certo é que houve momentos em que a programação se ressentiu nitidamente de uma certa ausência de nomes mais prestigiados, de cabeças de cartaz, a que aliás o público também tem direito – e Anthony Wittworth-Jones, que aliás continua a vir com regularidade ao Porto, bem pode ser o ponta de lança de relações nos circuitos musicais internacionais que também cabe à Casa da Música ter.
Mais do que pelo seus sucessos particulares, com um agrupamento de projecção internacional como o Remix, a consolidação da Orquestra Nacional do Porto, de facto única orquestra sinfónica do país, os ciclos de jazz e (único também) de músicas de mundos ou ainda de pop, com o caso de êxito, autêntico facto sociológico, que é mensalmente o Clubbing (como digo abaixo, apesar dos excelentes ciclos anuais de À Volta do Barroco, apenas a Orquestra Barroca Casa da Música necessita de um maior investimento e trabalho mais regular – e trabalho de formação – e é de lamentar o fim do Estúdio de Ópera), a Casa da Música impôs-se sobretudo pelo somatório de todas essas componentes e mais: ultrapassando a visão provinciana, e de um provincianismo sobretudo lisboeta, de que iria ser uma “gulbenkianzinha” do Porto, afirmou-se verdadeiramente como uma instituição única e imprescindível, a casa de toda as músicas.
Dito isto que é o fundamental, há também que lembrar que em relação ao modelo apontado desde a formulação do projecto, a Cité de la Musique em Paris, há dois módulos fundamentais que tardam em ser abordados: um, tanto mais óbvio, é potenciar as interdisciplinaridades de géneros organizando ciclos temáticos, por exemplos de instrumentos ou famílias instrumentais (percussões, por exemplo) ou questões (ritmo ou espacialização por exemplo). Outro é o que na Cité de la Musique é o “Domaine Privé” (o caso mais recente foi o singularíssimo John Zorn), a “carta branca” a um músico, até porque é deveras importante que não sejam só os programadores mas também os músicos a programar – e exemplos de músicos possíveis não faltam: Heinz Holliger, Michel Portal, Sónia Wieder-Atherton, Brian Eno, o citado Zorn, até quiçá (sabe-se lá se não aceitaria condições particulares para um projecto deste tipo) Sting.
A Casa da Música, para nosso prazer – e tanto mais na penúria cultural dominante – é já um projecto consolidado com o seu perfil único, mas é também ainda, deve ser, um projecto em construção.
Ao contrário da anterior, estas duas notícias, referentes à Casa da Música, não são novas, datam mesmo já de há meses, mas vem a propósito abordá-las – tinha aliás dito em tempos que me propunha uma abordagem sistemática das programações e questões correlativas do São Carlos (quanto a este, aqui, aqui e aqui), Gulbenkian, Casa da Música e CCB, as macro-instituições culturais.
Com escasso intervalo, António Jorge Pacheco foi anunciado em Junho como sucessor de Pedro Burmester na direcção artística e em Julho cessou uma curta experiência de cinco meses de Dalida Rodrigues na direcção de Comunicação e Marketing, um óbvio “erro de casting”, pouco conforme às suas capacidades – e é gratificante que entretanto lhe tenha sido endereçado por Paula Rego o convite para dirigir o futuro museu em Cascais, a Casa das Histórias.
O que parece bizarro é a determinação do administrador-delegado, Nuno Azevedo, de não preencher esse cargo de direcção de Comunicação e Marketing. Sabe ele perfeitamente, por certo, que essa é uma área vital, e por exemplo, no recente ciclo “À Volta do Barroco” creio que houve uma falta de investimento promocional específico - bem como até, no caso, de envolvimento do Serviço Educativo. E uma instituição como a Casa da Música não pode deixar de ter devidamente um Gabinete de Comunicação e Imprensa.
Quanto à saída de Pedro Burmester (na imagem), “pai” do projecto, ela teria de ocorrer mais cedo ou mais tarde, e não muito mais tarde, sob pena de comprometer a carreira artística própria do pianista. Do que foi a génese do projecto, do que foi já consolidado, lhe somos amplamente devedores – mesmo que em relação aos moldes com que o projecto foi anunciado haja coisas importantes por cumprir, o que já explicarei.
Em excepção ao que digo abaixo, compreendo que neste caso não tenha havido concurso público. António Jorge Pacheco está no projecto desde o início, é mesmo a única pessoa que sempre esteve no projecto, sem interrupções (já que Burmester esteve mais de um ano afastado dado o conflito com Rui Rio), é o principal obreiro do Remix, agrupamento de excelência da Casa, e tem também estado muito ligado à programação da Orquestra Nacional do Porto.
Mas isto dito, justificada a nomeação, e desejando-se os melhores auspícios ao novo director, há também que chamar a atenção para algumas reservas.
António Jorge Pacheco tem grandes responsabilidades no modo canhestro como surgiu primeiro uma híbrida Remix Orquestra e depois enfim a Orquestra Barroca Casa da Música, que ainda é muito frágil, e devia ser uma das prioridades. Sobretudo, 1) o modo como fez inscrever internacionalmente o Remix Ensemble ocorreu basicamente segundo a doxa vigente, com pouca autonomia e, 2) retomou da Gulbenkian o favoritismo nunesiano: foi indisfarçável intermediário fundamental na tristemente célebre entrevista de Emmanuel Nunes ao “Público” em que este, intriguista, anunciava ele próprio a próxima saída de Paolo Pinamonti do São Carlos; mesmo depois da catástrofe de Das Märchen (já estaria previsto antes, mas isso não altera o fundamental), Pacheco programou para Setembro do próximo ano uma nova obra de teatro musical de Nunes, em que o nepotismo chega ao ponto do dispositivo cénico ser do próprio compositeur portugais e da sua mulher e biógrafa, Hélène Borel, a qual é também responsável pelos figurinos!
A Casa da Música é demasiado importante e, por muito que falte ainda consolidar, já se impôs largamente. Como disse, compreendo neste caso a excepção à regra que defendo dos concursos públicos, e desejo os melhores auspícios ao trabalho directivo de António Jorge Pacheco. Mas também por isso mesmo as reservas ficam desde já claramente enunciadas.
Six Portraits of Pain, Acting Out, Graffiti (Just Forms)
Anssi Kartunnen, Miguel Henriques, Elizabeth Davis
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Franck Ollu, Martin André, Baldur Bronnimann
Numérica
O compositor, sujeito e historicidade
A personalidade artística de António Pinho Vargas é singular por uma dupla presença no campo musical: pianista, compositor e jazzman por um lado, compositor contemporâneo por outro.
A singularidade radicaliza-se tanto mais quanto estas vertentes aparecem inteiramente dissociados: não só Pinho Vargas não se tem mostrado de modo nenhum adepto de qualquer modo de crossover – tendência hoje cada vez mais insistente em autores que integram nos seus processos composicionais os sedimentos de uma escuta conceptualmente mais ampla -, como também, e apesar do treino como pianista, inclusive académico, não é intérprete das suas próprias composições eruditas.
O que poderia à primeira vista parecer um caso bifacetado, para não dizer mesmo artisticamente de dupla personalidade, tem contudo outras implicações, a saber, uma aguda percepção teórica da historicidade e das diferentes inscrições sociais de práticas e formas musicais, e uma não menos aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical.
A noção de “pulsão”, ou mesmo de “pulsação” (no que isso supõe mesmo de uma relação imediata com o investimento físico e emotivo e com as interacções) tão importante no jazz, o beat, seja de periodicidades regulares ou irregulares, manifesta-se assim também como fulcral no seu trabalho de compositor contemporâneo. Ocorre assim falar a propósito da sua poética composicional de dispositivos pulsionais bem como, mais latamente, de uma problematização do sentir.
Intuitivamente também que o tenha sido, Pinho Vargas não deixou de absorver ao seu modo particular a influência de compositores que, tendo sido eles próprios pianistas, elaboraram uma escrita para o instrumento mais vincadamente também percutiva, motriz e “organicista” (nesse sentido físico e pulsional) como Prokofiev e sobretudo Bártok - dado que aflora especialmente em Acting Out.
Retomando as inscrições iniciais de um discurso já autónomo que são Monodia – quasi um requiem e Noturno/Diurno, não menos curial é ter presente o que o autor escreveu sobre a primeira dessas peças: “Uso uma simples sucessão melódica e um gesto musical lírico e consonante – mas que prazer nestas palavras – como ponto de partida da peça. Ela é excessiva, tensa, às vezes quase insuportável. Escrevi uma pequena teoria do grito mas perdi o papel”. O gesto da liberdade, ou antes, da emancipação – e da emancipação enquanto constituição de um sujeito autor de discurso próprio – assinala-se na associação “lírico e consonante – prazer”, o segundo termo introduzindo assim também nos dispositivos pulsionais um princípio, o princípio do prazer precisamente, enquanto por outro lado se assinala “tensa[ão]/grito”.
É particularmente interessante notar que essas duas obras matriciais, que aliás têm relações muito próximas, evocam de modo quase irresistível o primeiro Schönberg, ainda proto-expressionista, e o do sexteto Noite Transfigurada e do Quarteto nº2.
Sabendo-se como Schönberg representou e representa o paradigma do que Richard Taruskin designou por “falácia poiética”, isto é, uma auto-legitimação do artista pela qual o mais importante da obra reside na sua própria feitura, nas marcas da autoria, concepção correlativa à hegelinização da história da música e dos atributos dos “heróis do seu devir progressivo” (e tanto mais “heróicos” quanto enfrentando hostilidade de recepção pública, como tão em particular no caso de Arnold Schönberg), uma tal aproximação numa perspectiva pós-moderna poderá ser surpreendente.
Mas, justamente, falamos de um Schönberg de algum modo ante-schoenberguiano, em termos de sistema e profetismo, em que particularmente se assinalam a “tensão/grito”, o proto-expressionismo mas seguramente em qualquer caso uma marcada expressão. A analogia profunda de Pinho Vargas com essa matriz é essa de expressão, nos termos de uma “stimmung” e mesmo de uma angústia (o grito), de uma “angst”.
Parafraseando e invertendo os termos do conhecido livro de Harold Bloom A Angústia da Influência, dir-se-á que de modo recorrente se encontra disseminada nas obras de Pinho Vargas – e certamente nas três incluídas neste disco, mesmo que por modos muito diversos – uma “influência da angústia”, como inerente ao sujeito, na sua personalidade e historicidade.
Daí também que nestas três obras, mais marcadamente – como é óbvio – nas duas que implicam explicitamente solistas, Acting Out e Six Portrait of Pain, disseminadamente em Graffiti [Just Forms] em particulares destaques instrumentais ao longo das suas secções, haja “dramatis personae”.
Não se trata apenas de um problema de estrutura, mas ainda de uma questão de sujeito, de sujeito do discurso, que se diria mesmo ontológica, com esta ressalva de não pouca importância: como está implicado no uso de um termo do vocabulário da psicanálise para título de uma peça, Acting Out, o indivíduo já é de si uma “dramatis persona” e um espaço de conflitualidade e tensões.
Se atentarmos à estrutura da obra, com as suas secções de “antecedentes” e “respostas”, e ao próprio jogo entre o piano e a percussão e destes com a orquestra, compreender-se-á a referência psicanalítica “na sua conexão com a transferência [do recalcado]".
Numa fase mais recente, Pinho Vargas incluiu na apresentação das suas obras um texto sobre “a melancolia física do artista”, com uma epígrafe colhida em Peter Sloterderjik: “não há apenas aprendizagem positivas...ao lado há também um verdadeiro curso de decepções”.
Esse texto não diz respeito à condição da pessoa, mas sim do “artista”. Por certo que, nessa afirmada consciência, nesse “curso de decepções”, ocorrem condições concretas – da percepção de “uma inutilidade da arte e da música no quadro do espaço tempo em que vivo”, afirma.
Six Portraits of Pain, para violoncelo e largo conjunto instrumental, encomenda da Casa da Música para a sua abertura pública, é a obra dessa inquietação, dessa dor tornada constituítiva à melancolia do artista (“Esta dor constitui-nos, esta dor é agora o nosso estado de espírito” – Thomas Bernhard). Mas não menos é a afirmação da possibilidade de, pela “coisa-em-si”, pela obra, ter uma experiência estética que também exista autonomamente do tempo e espaço das suas condições materiais de gestação, a possibilidade de uma suspensão e uma “ucronia”, para além do tempo.
Com os textos de outros, em diálogo “ucrónico” com eles, o que Pinho Vargas delineia é uma possibilidade de reinscrição do sujeito como matéria da própria música. É um trilho pessoal e no entanto próximo do de outros, em reconsideração dos paradigmas de inscrição do sujeito.
Não é fortuito que o compositor esclareça que o primeiro texto que escolheu e “de certo modo, o mais importante porque (me) lançou para a questão fundamental da liberdade de pensamento, da arte, da política e das diversas repressões que marcam as suas histórias” tenha sido colhido em A Filosofia Crítica de Kant, obra em que Deleuze nos situa na “revolução coperniciana” do filósofo alemão, a faculdade de conhecer como legislador, o primado do sujeito, a sua emancipação: Kant, pois, em vez de Hegel – e da hegelinização da história da música.
Six Portraits of Pain é um novo modo de ”acting”, introspectivo, não sem paralelos e também elucidativas dissemelhanças com o de Acting Out.
A obra não é apenas um diálogo entre o violoncelo e o conjunto mas tem também diversas “dramatis personae” que se destacam, sendo de realce o “concertino” que se forma entre o violoncelo e dois violinos.
A sonoridade grave e nobre do violoncelo, como também o uso do instrumento em toda a sua extensão, são particularmente vibrantes no “macro-retrato”, o percurso em que o sujeito se delineia afinal. E poderá parecer surpreendente, mas não tanto na tentativa de leitura que aqui se ensaia, que de novo surja nesta obra a reminiscência da Noite Transfigurada de Schönberg.
A estrutura de Graffiti [Just Forms] é diferente pela marcante presença de um acorde de base, qual risco inicial, impulsivo (ou, ainda, pulsional), do próprio gesto de grafitar. O “rasgo” desse acorde-gesto (“rasgo” como noutro momento “grito”) traz consigo os elementos potenciadores da forte saturação da obra. Sucede isso também porque, em analogia ainda com o gesto de grafitar, o compositor usa materiais de base relativamente esquemáticos, ou melhor dizendo, de “traço grosso”, para ir introduzindo outras possibilidades, de rupturas abruptas, de timbre, de registo, de sobreposições.
Depois de Acting Out, com as suas ressonâncias psicanalíticas, e do “acting in[ner]” melancólico de Six Portaits of Pain, Graffiti [Just Forms] é uma possibilidade de “re-enactment” tentando delinear uma mais lata homologia, considerando não apenas a historicidade dos materiais musicais mas também as condicionantes sociológicas de formulação de discurso no quadro concreto de uma situação semi-periférica como a de Portugal, com todas as suas limitações estruturais, que fazem de algum modo que as possibilidades dessa formulação possam ser Just Forms [Graffitis].
Augusto M. Seabra
Extractos do texto escrito para o livrete desde disco.
As comemorações do centenário do nascimento de Olivier Messiaen (1908-1992) não têm em Portugal a mesma intensidade que noutros países – e não só em França – mas começam agora por uma circunstância absolutamente excepcional, com duas sucessivas interpretações de uma das mais emblemáticas obras do compositor, e uma das mais extraordinárias obras orquestrais do século XX, a Turangalîla-Symphonie.
A primeira ocorreu no sábado, no Porto, na Casa da Música, a segunda será hoje, em Lisboa, no Coliseu dos Recreios, concerto integrado no ciclo de Grandes Orquestras da Gulbenkian.
Desde 1967, quando da sua 1ª audição em Portugal, que a Turangalîla não é ouvida em Lisboa e desde essa mesma data, quando foi executada pela então Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, que não figurava no programa de nenhuma orquestra portuguesa.
O segundo facto, por si só, diz bem do particular relevo que teve o concerto de sábado. É efectivamente preciso uma orquestra que seja um corpo constituída com suficiente solidez para se abalançar à gigantesca e deslumbrante partitura de Messiaen, com a sua miríade de cores. E, para todos os efeitos, a continuidade de trabalho da ONP faz dela, de facto, a única orquestra sinfónica portuguesa, tanto mais que a propriamente chamada Orquestra Sinfónica Portuguesa continua em termos reais a ser a formação do São Carlos, do teatro de ópera, sem as desejáveis condições de trabalho, e sem uma programação de concertos com a regularidade suficiente para a tornar perceptível em termos públicos.
Esta foi uma outra ocasião em que a ONP afirmou os frutos do seu continuado trabalho. E foi também uma outra ocasião para confirmar a particular inclinação de Michael Zilm para o reportório de grandes dimensões sinfónicas, pós-romântico e do século XX.
A Turangalîla-Symphonie é uma obra cósmica, em que a construção temática e o jogo de timbres e dinâmicas exigem uma grande precisão e clareza. Foi isso que Zilm logrou, nomeadamente nos grandes crescendos da obra, na definição de planos dos “naipes”, na clara legibilidade dos temas estruturais, sobretudo o “tema do amor”.
Sendo sabido o particular conhecimento e a virtuosidade que a linguagem pianística de Messiaen sempre requer, mesmo no caso das intervenções do instrumento nesta obra, foi também apreciável o contributo de Stefan Litwin.
Entretanto, e dentro da margem de imponderáveis de qualquer realização musical, é outro grande momento que, com fundadas razões, se pode esperar hoje no Coliseu. Nesse intervalo de 40 anos, houve uma única execução da Turangalîla em Portugal, a 8 de Abril de 2003 no Euro-Parque de Santa Maria da Feira, justamente com a mesma orquestra e maestro, a Orquestra Sinfónica da Rádio de Baden-Baden e Freiburg e Sylvain Cambreling – e foi um concerto memorável, de intensas emoções.
O programa geral da Gulbenkian é omisso quanto aos solistas, mas podendo o panorama internacional das celebrações ser seguido no site www.messiaen2008.com, a informação aí existente é a de que na digressão da Orquestra fazendo esta obra os solistas são Valérie Hartman-Claverie em Ondas Martenot, tal como no concerto da ONP, e um dos máximos intérpretes pianísticos actuais de Messiaen, Roger Muraro.
E, a propósito, refiram-se então alguns dos maiores destaques deste Ano Messiaen: o Festival dirigido por outro grande intérprete e pianista, Pierre-Laurent Aimard, na South Bank de Londres, o “Parcours Messiaen” que decorre desde o passado dia 19 em Avignon (terra natal do compositor) e se prolonga até Dezembro, as representações de Saint-François de Assise na Ópera da Holanda em Junho, e a série de concertos que Myung-Wung Chung dirige em Paris, ao longo do ano, na Salle Pleyel e no Théâtre des Champs Elysées, incluindo o Saint-François em versão de concerto.
Turangalîla-Symphonie
Orquestra Sinfónica da Rádio de Baden-Baden e Freiburg
Personalidade central ao “Focus Nórdico” que a Casa da Música irá apresentar ao longo deste ano, o finlandês Magnus Lindberg (n. 1958), será mesmo o “compositor em residência”. Feliz situação, credora de toda de toda o destaque, pois Lindberg é certamente um dos autores mais marcantes da actualidade, um dos que mais importa.
A informação, e sobretudo a circulação das obras demorando, e acrescendo ainda mais o tempo para nos apercebermos da dimensão do impacto, poderemos hoje dizer que, ao correr do tempo, nos podemos ir dando conta da importância crucial de Kraft, obra distinguida na Tribuna Internacional de Jovens Compositores da UNESCO de 1986..
Para um “jovem compositor”, Lindberg (n.1958) já tinha então um curriculum de relevo, tanto mais que já havia sido distinguido na mesma Tribuna, em 1982, com …de Tartuffe, je crois - e restrospectivamente, poderemos hoje considerar que uma outra obra, datada dessa mesmo ano, Action — Situation — Signification, era também suficientemente esclarecedora de uma poética própria.
Da sua narrativa curricular constavam cursos com Franco Donatoni em Siena e com Brian Ferneyhough em Darmstad, além de estudos particulares com Vinko Globokar e Gérard Grisey em Paris, ritos canónicos para um “jovem compositor”, pois. O que nem por sombras se sonhava à época era a importância de uma narrativa particular: o encontro no Conservatório Sibelius de Helsínquia, em 1977, de Magnus Lindberg, Kaija Saariaho, Esa-Pekka Salonen, Jukka-Pekka Saraste (estes dois, hoje bem conhecidos maestros) ou do violoncelista Anssi Kartunen, e a constituição do grupo “Korvart Auki/Ouvidos Abertos”, e do conjunto instrumental Toimi, em reacção ao conservadorismo dominante, que em termos de referências reconhecíveis, podemos associar à “canonização” de Sibelius ou Rautavaara, este aliás professor de composição naquele conservatório.
Mas então, Kraft porquê? Pelas extraordinárias explosões rítmicas e de massas sonoras (a obra destina-se a cinco solistas amplificados e orquestra) que Lindberg sumarizava como “uma combinação do hipercomplexo com o primitivo”, declarando que “só o extremo é interessante”. Era uma música de “energia” claro (“kraft”), de “fricção” também, ou, de como ele escrevia nesses anos, a propósito do material e a sua organização, ocorria um paradoxo que “suscita uma tensão irracional entre a expressão e a estrutura, moldando a música com um carácter nervoso, uma fricção, que não é um obstáculo mas uma fonte da inspiração criadora”.
Kraft era a irrupção de um “brutalismo” complexo, para o qual, se bem que se podessem e possam tecer similitudes com outras “deflagrações” anteriores, exteriores à narrativa unínoca das ortodoxias primeiro seriais e depois “post”-seriais, como Xenakis, Ligeti ou o Penderecki inicial, ou, mais perto no tempo, Rihm, haverá também de atender a uma noção mais lata de envolvimento sonoro, que não deixava de ter analogias com orientações de cenas “rock” alternativas, ou seja, para parafrasear o título de uma posterior obra do finlandês, analogias Related Rocks – e se mesmo que “related”, a música de Magnus Lindberg não é ainda assim da esfera do rock, os seus ouvidos estiveram bem abertos para a energia “punk” dos Clash, na Londres dos anos 70, ou o “rock industrial” e experimental dos aventurosos Einstürzende Neubauten na Berlim dos anos 80, de algum modo dessas vivências sedimentando-se na sua própria música uma noção fundamental, a de pulsação.
“Ouvidos abertos” terá sido uma declaração com uma pragmática própria na situação finlandesa. Mas “ouvidos abertos” é uma proposta mais geral, o entendimento de uma poética mesmo. Daí que Lindberg, por exemplo, tenha sido mesmo um dos que enunciaram uma questão capital, “Porquê evitar?”.
Concretizemos: porquê evitar por princípio, por exemplo, certas situações harmónicas só porque de acordo com os príncipios que se consideram caducos da tonalidade funcional, ocorre o que sucede ser um dó maior? Mas então será a “atonalidade”, mormente como se formulou na série dodecafónica, um outro princípio limitativo? “Ainda me lembro do espírito que reinava no meio musical nos anos 80: era imperativo compôr deste ou daquele modo, com o risco de se ficar encerrado num ‘ghetto’. Ora, a música teve sempre necessidade de novas perspectivas. A tonalidade como a atonalidade eram utilizadas na música funcional. Esse é, para mim, e para a maioria dos meus colegas, um anacronismo com o qual não poderia trabalhar. É, creio, um capítulo encerrado”.
Em lugar de funcionalidades ou princípios apriorísticos, a música de Magnus Linbderg revela-se de extraordinária “organicidade”, nas suas torrentes rítmicas e harmónicas, que lhe suscitam uma pulsão vital e uma energia muito próprias, de enorme impacto sensorial na escuta, bem distinta e reconhecível. A extraordinária Aura – In memoriam Witold Lutoslawski de 1993-94, a meu ver uma das portentosas obras musicais dos últimos anos, é particularmente esclarecedora da poética de Lindberg e a da sua tendência às grandes massas e à grande forma – uma “meta-forma-sonata”, foi dito, um modo de enunciação de uma narratividade não-funcional, pensando a música também nos seus encadeamentos temporais, horizontais, e não apenas na verticalidade, como fundamentalmente decorreu e decorre das ortodoxias seriais e pós-seriais. É, se quisermos, uma concepção dinâmica decorrente dos próprios quadros harmónicos, mas não deixando estes restritamente flutuantes e magmáticos.
Há na música de Magnus Lindberg uma dimensão sensorial imediata, física, longe das concepções teoricistas dessas ortodoxias pós-seriais, que de modo nenhum exclui a elaboração formal, mas também de modo nenhum renega um princípio do prazer.
Hoje às 19h30, a Orquestra Nacional do Porto, dirigida por Martin André, abre o “Focus Nórdico”, com um programa constituído por obras de quatro “clássicos”, Alfvén, Grieg, Nielsen e Sibelius (Finlândia) e, com o próprio compositor como solista, o Concerto para Piano de Lindberg, obra dos inícios dos anos 90, marcado pelo influxo das pesquisas no IRCAM e da escola espectral.
É interessante aliás notar, pelo que que revela de diferenciador em relação aos preceitos da “vanguarda”, serial e pós-serial, que ao longo desta residência se ouvirão o Concertopara Piano, oConcerto para Violoncelo e o muito recente Concerto para Violino (do catálogo do autor constam ainda um Concerto para Clarinete e um Concerto para Orquestra ). Mas o evento maior que há desde já que assinalar será outro programa da ONP (também com o grande violoncelista Truls Mork) com essa obra de génio que é Aura, a 23 de Fevereiro. Ouvidos bem abertos, pois...
Ainda no ciclo barroco da Casa da Música tive ocasião de ouvir Fabio Biondi com a Europa Galante dar a conhecer-nos extractos de uma pouco interessante ópera de Domenico Scarlatti, Narcissus, mas infelizmente não pude assistir – e tinha o maior interesse – uma semana depois a um outro concerto, fruto do trabalho que entretanto Biondi fizera com a própria Orquestra Barroca da Casa da Música.
Ouvi sim o recital de Andreas Staier em pianoforte, a 18 de Novembro, tocando nomeadamente obras de Domenico Scarlatti (estas sim, as importantes, algumas sonatas) e Mozart, não só pelo prazer de ouvir esse espantoso músico como também pela curiosidade em saber como soaria o instrumento na Sala Suggia, o grande auditório da Casa da Música.
Essa estreia foi eloquente, pelas incríveis cores e variedades de planos obtidas por Staier, um verdadeiro alquimista das teclas. Ocorreu-me de súbito a memória antiga da estreia de Gustav Leonhardt em Portugal: o único cravo de modelo de época existia no Porto, propriedade de Maria Lurdes Santos (também este pianoforte ora usado é particular, propriedade de Helena Marinho), e foi aí, no Ateneu Comercial, que Leonhardt se apresentou a 4 de Maio de 1979, a que se seguiu, um dia depois, um recital de orgão na Sé de Lisboa.
Mas recordei-me também ter sido o mesmo Andreas Staier, a 14 de Setembro de 2002, em Queluz, nos Concertos PT/ Em Órbita, que fez o primeiro recital com o pianoforte Clementi restaurado por Joop Klinkhamer, com os fundos obtidos pelo Em Órbita com receitas de bilheteira dos concertos, por contributo privado pois.
É mais que inépcia, é gravoso desleixo dos responsáveis por Queluz e da sua tutela, que com o fim daqueles Concertos o instrumento tenha ficado sem utilização, o que é o mesmo que ao abandono, já que a sua conservação em bom estado depende de uso. É assim que a gestão dos orgãos e entidades do ministério da Cultura vela pelo património, e pelo património que foi possível restaurar por contributo generoso de privados! “Conservadores”, dizem eles? Burocratas negligentes, isso sim!
Se há obra que, creio bem (e tenho-o praticado), justifica a ideia de peregrinação, essa é as Vespro della Beata Vergine de Monteverdi. Só que neste enunciado há também uma questão: ao certo que “obra” são as Vespro?
A famosa colectânea de 1610 é isso mesmo, uma “colectânea” de música sacra, mesmo uma “enciclopédia”, na definição de Philippe Beaussant: “Todas as formas, maneiras e estilos aí se cruzam e até se misturam. Vastos salmos a seis, sete, oito, ou mesmo dez vozes em dois coros; antífonas para uma só voz, ou para dois tenores, ou para três vozes masculinas; páginas virtuosas e meditações sobre frases de cantochão, monodias recitativas, dignas do lamento de Orfeu nas campanhas da Trácia, e sonatas para oito intrumentos sobre um Sancta Maria, ora pro nobis indefinidamente repetido; sumptuoso aparelho instrumental ou baixo contínuo sozinho...”.
Que Claudio Monteverdi aspirava a uma dedicatória papal, sabe-se. Que por certo grande parte dos trechos, senão todos, tinham sido originalmente destinado à Capela Ducal de Santa Bárbara em Mântua, é dedução lógica. E, como se sabe, em vez do ambicionado caminho de Roma, Monteverdi viria sim a rumar a Veneza, três anos depois.
Esta contextualização é importante porque de um modo ou outro tem influenciado diferentes interpretações e realizações da colectânea: já houve quem postulasse que seriam originalmente uma “Vésperas de Santa Bárbara” (hipótese do musicológo Graham Dixon, com conretização na gravação de Harry Christophers), quem a explorasse no sentido da policoralidade veneziana (Gardiner), ou até quem insista, em nítido contrassenso, que elas são em si mesmo um ofício, e proceda a uma reconstituição litúrgica (McCreesh).
Já ouvi Vésperas das mais grandiosas e, diría pelos efectivos, “de câmara”, e até tive ocasião de ouvir uma e outra concepções em intervalo de poucos dias, entre Salzburgo e Innsbruck, quando dos 450 anos da morte de Monteverdi, em 1993. Mas, como todos os que tiveram a ocasião de assistir a essa realização prodigiosa, recordo sobretudo, e ainda recordo emocionadamente quase 20 anos passados, aquela que foi dirigida por Jordi Savall nos Jerónimos a 26 de Outubro de 1988, imediatamente antes da gravação (um registo extraordinário, que ele acaba de reeditar, remasterizado, na sua editora AlliaVox). Longe das frequentes facilidades e jogadas de marketing que agora lhe são usuais, era um Savall em apoteose, e que também ele perspectivava as Vésperas no horizonte veneziano, dirigindo uma equipa como não mais se reuniu: Montserrat Figueras, Maria Cristina Kiehr, Guy de Mey, Gian Paolo Fagotto, Bruce Dickey, Pedro Memelsdorf, Stephen Stubbs, Rolf Lislevand, Andrew Lawrence-King, Rinaldo Alessandrini ou Marco Mencobini!
Sigiswald Kuijken
E, agora, houve estas espantosas Vésperas de Kuijken na Casa da Música. Opções reduzidas, apenas com dez vozes reais (pormenor importante : quase todas idiomáticas e com cores latinas, e foi com as duas que o não eram, as sopranos, que houve o único ligeiro desasjustamento, no "Pulchra es" ), cada uma delas com papel específico, realização instrumental entre a severidade sempre presente do baixo e a exuberância magnificente dos cornetos, “instrumentarium” incluíndo violinos e violas especialmente reconstituídos de acordo com iconografia da época (Caravaggio, nomeadamente), em posição mais baixa que o habitual, não tanto “da brazzo”, mas “da spalla”, escrupulosa observação das indicações instrumentais da partitura e restrição dos efectivos a essas indicações - assim, por exemplo, as flautas transversas foram usadas apenas no "Ave Maria Stella" e "Magnificat" finais.
Podia-se temer esta obra no específico espaço da Casa da Música? Magistral lição de engenho e simplicidade a de Kuijken: com pequenos movimentos, por exemplo voltando os cantores de costas para o público, ou orientando os cornetos em direcções opostas, realizavam-se os efeitos da espacialidade.
Com Sigiswald Kuijken e La Petite Bande já tinha eu tido a oportunidade de ouvir uma intensa interpretação de uma grande obra sacra: a Paixão Segundo São João de Bach, na própria sexta-feira de paixão, em 1993, em Antuérpia, com o Evangelista de Christoph Prégardien. Foi prodigiosa e comovente a beleza agora destas Vespro della Beata Vergine na Casa da Música, um dos concertos mais memoráveis dos últimos anos.
Tendo vindo, nalguns textos sobre discos abaixo publicados, a andar à volta do barroco, é imperioso falar também da situação concreta em termos de concertos e de outras manifestações.
Pese ainda uma não desmentida “vaga”, forçoso é concluír que a situação geral em Portugal é de um estranho e inusitado refluxo. O vazio deixado pelo já referido fim dos Concertos Portugal Telecom/ Em Órbita, um exemplo pela negativa das vicissitudes do mecenato, não foi preenchido.
Não menos deve ser devidamente notado que, no respeitante às alterações introduzidas no modelo de programação da Gulbenkian, com o fim dos Encontros de Música Contemporânea e das Jornadas de Música Antiga, efectivado a partir da temporada 2002/03, foram afinal os ciclos substitutos das segundas que se têm vindo a revelar menos aventurosos face às práticas anteriores: algumas importantes cabeças de cartaz, como Cecilia Bartoli, Andreas Scholl ou, ano sim, ano não, o inevitável Jordi Savall, por vezes William Christie e Le Jardin des Voix, não desmentem a falta de rasgo da programação, antes pelo contrário.
Entretanto terminaram os Cursos da Casa de Mateus, que tinham um protocolo específico e, enquanto tal, excepcional face às regras gerais de apoio às estruturas artísticas – perda que em todo o caso não deixa de ser mais outro buraco negro. E para mais este ano nem sequer houve o Festival de Mafra, que desde a saída de Miguel Lobo Antunes, quando assumiu funções na Culturgest, vinha tendo direcção da equipa do Em Órbita, isto é Jorge e João Miguel Gil – e não se efectivou pela razão burocrática da transferência do Palácio de Mafra da tutela do Instituto do Património para o dos Museus, bem como, pasme-se, porque apenas se poderia ter realizado num único fim de semana, dado o agendamento para aí da cimeira Sócrates-Putin de má memória.
Claro que há sempre concertos interessantes integrados no Festival de Póvoa, eventualmente noutros também, como Espinho. Um grupo como o Divino Sospiro tem tido um trabalho regular no CCB, mas também se podem elencar outras iniciativas e propostas de potencialidades que não têm condições asseguradas.
Não menos é de notar que enquanto hoje é de rigor os teatros de ópera programarem devidamente o riquíssimo repertório da ópera barroca, no São Carlos, depois da ousadia (uma das muitas) de João de Freitas Branco ao apresentar L’Incoronazione di Poppea de Monteverdi em 1974, passaram-se mais de 30 anos antes de, com Paolo Pinamonti, haver de novo duas produções em temporadas sucessivas, o suposto Dionisio Re diPortogallo de Haendel e o Motezuma de Vivaldo, ambas com Alan Curtis – é certo que nem uma nem outra foram muito felizes, mas ainda assim preencheram uma lacuna das mais notórias. Como em tantas outras coisas respeitantes ao São Carlos, a continuidade foi para já quebrada, com a fatídica OPART do secretário de Estado Vieira de Carvalho.
Tanto mais são assim de seguir as actividades da Casa da Música, estrutura de parceria pública-privada é certo, mas sem que isso invalide ser uma peça fundamental das políticas públicas de música.
Se desde os tempos ainda do Porto-2001 a aposta fundamental foi a criação e consolidação de um excelente grupo de música contemporânea, o Remix, a CdM não poderia também deixar de vir a ter um agrupamento barroco. A estrutura foi-se constituíndo de forma muito híbrida e mesmo equívoca, diria até que com alguns infelizes percalços de percurso (nomeadamente na preparação e montagem da ópera Joas de Benedetto Marcello em 2002/03), passando pela gestão de recursos que levou a que a formação fosse estranhamente feita a partir do Remix, com a chamada Remix Orquestra, até que passo a passo se avançou para a Orquestra Barroca da Casa da Música, ainda em fase de tirocínio dos seus elementos.
Mas, para além desses dados estruturais, a CdM organiza aquele que afinal é agora – triste situação, olhado o conjunto – o único pólo de programação regular, o ciclo À Volta do Barroco, que na presente temporada ocorreu nos dois fins de semana entre 8 e 18 de Novembro. É pois tempo para rememorar o que sucedeu, aliás com razões amplamente justificadas.
Obras de Olga Neuwirth, G. F. Haas e Bernhard Lang
Klangforum de Viena, dir. Sylvain Cambreling
Gulbenkian, 1 de Dezembro, às 19h
A Casa da Música, no que tem sido o seu sector de programação mais sustentado e dinâmico, o de música contemporânea, teve agora uma outra iniciativa de relevo, nos passados dias 29 e 30 de Novembro: sucessivamente, o Klangforum Wien e o Remix apresentaram duas mesmas obras, encomendas conjuntas, Tombeau de Marie Stuart de António Chagas Rosa e Remix deGeorg Friederic Haas. O Klangforum completou o programou com Die Sterne des Hunger de Bernhard Lang e o Remix com obras de dois autores de um outro momento vienense, o do princípio do século e entre as duas guerras, Alexander Zemlinsky e Franz Schreker, respectivamente dois dos Maeterlinck Lieder na orquestração de Erwin Stein e a Sinfonia de Câmara.
A ideia que de na música contemporânea o conceito de interpretação tende a dissipar-se é um daqueles contrassensos que à força de serem insinuados se tornam estereótipos. Na tradição erudita da música ocidental, uma tradição escrita, a “obra” enquanto tal é ao mesmo “a coisa em si” e um estado virtual, pois que apenas se realiza, e é ouvida, em interpretações concretas.
Só o facto de a nesse sentido propriamente chamada “música clássica” se ter tornado numa espécie de “museu” de obras do passado, e com repetições sistemáticas de repertório, tendo-se as diferenças de interpretação tornado no factor distintivo, inclusive nos discursos críticos, só esse facto, de um alheamento do presente, poderá explicar – ainda que não justificar – a subestimação de que as concretas realizações e interpretações são não menos importante na música contemporânea. Mais: o impacto da descoberta de uma obra nova depende sobremaneira da realização concreta ouvida.
Por isso a iniciativa desses dois concertos sucessivos e necessariamente contrastantes terá sido por certo tão interessante. E escrevo “terá”, já que lamento não poder ter estado presente (embora não deva deixar de assinalar o relevo da proposta), e tanto mais quanto no concerto do Remix havia também as obras de Zemlinsky e de um Schreker tão raramente em Portugal, o país onde ele se tentou refugiar. Assim, ouvi o Klangforum depois na Gulbenkian, num concerto designado “Os Novos Austríacos”, este com o “ganho” de incluir uma obra de uma autora destacada, Olga Neuwirth, Spazio Elastico.
Eis que nesse sábado, 1 de Dezembro, sucedeu uma coincidência espantosa: um outro concerto de motivo “austríaco”, “Um Concerto para Thomas Bernhard” da Orquestra Metropolitana de Lisboa, encerrando no CCB o ciclo dedicado àquele escritor, de minha muito particular predilecção – uma outra proposta fora do comum, tanto mais interessante quanto a música é importante na obra de Bernhard, e que incluía a 1ª encomenda de uma encomenda a António Pinho Vargas, Um Discurso de Thomas Bernhard.
Só por estas circunstâncias excepcionais, pelo relevo das duas obras concretamente ouvidas e pela impossibilidade de permanecer para a de Lang (compositor sobre o qual terei, de qualquer modo, ocasião de falar em breve) pois havia o outro concerto no CCB às 21h, e esse era circunstância irrepetível, só por isso me permito esta crítica apenas referente a Spazio Elastico de Neuwirth e Remix de Haas.
Em 2002 houve uma circunstância insólita num concerto do Quarteto Hagen nesta mesma Gulbenkian: no programa estava anunciado o Quarteto nº2 de Pavel Haas, compositor checo, um dos que tragicamente viria a morrer em Auschwitz, mas a obra que ouvimos era certamente outra – e era o Quarteto nº2 sim, mas de Haas, Georg Friedrich (como Haendel). Agora devidamente identificado, voltou-se então a ouvir este Haas na Gulbenkian.
Remix é de um fôlego admirável. E uma obra surpreendente, e se calhar tanto mais quanto os diversos elementos que a compõem não são em si mesmo, nenhum deles, em nada surpreendentes. Diz Haas: “Em Remix eu não queria experimentar nada de novo. Queria usar apenas os elementos já testados, com os quais tinha obtido alguma experiência, e colocá-los numa relação diferente” (e enumera esses elementos com a referência às obras em que eles estavam “já testados”). É em particular a sequência livre dos diferentes elementos, a “termodinâmica” do processo e a espantosa densidade do agregado que impressionam. E é ao mesmo tempo uma obra cintilante – como o sublinhou a direcção de Sylvain Cambreling, como de resto se compreende do perfil interpretativo do maestro.
Que num concerto de título “Os Novos Austríacos” houvesse uma obra de Olga Newirth era expectável – a ausência é que podia ser surpreendente. Mas diga-se que a escolha de Spazio Elastico foi especialmente interessante, na função acrescida da marcada diferença de características e eludicação recíproca dessa obra e de Remix: enquanto esta é uma obra de “processo”, do princípio ao fim, a primeira, como é distintivo de Neuwirth (outra autora de quem muito em breve aqui se voltará a falar), é marcadamente brutal nos seus contrastes de episódios, movimentos múltiplos e sonoridades inabituais, na escrita de concerto, entenda-se – por exemplo, nesta obra, a presença de dois instrumentos eléctricos, guitarra e piano.
Remix de Georg Friedrich Haas é uma obra a recordar e certamente a reencontrar – e tendo neste concerto sido ouvida na integração do Klangforum dirigido por Sylvain Cambreling, é também doravante uma peça emblemática no repertório do Remix da Casa da Música.