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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Pinho Vargas x 3 - II

 

Como é óbvio, e ainda que numa página pessoal, não farei comentário crítico a este disco de obras de António Pinho Vargas. Ainda assim, três notas:
 
1)       Se aceitei escrever as notas ao disco foi também porque já me tinha pronunciado criticamente sobre todas as três obras, sendo que considero Six Portraits of Pain e Acting Out duas das composições mais relevantes do autor, com Monodia e a ópera Os Dias Levantados; por razões várias, que em parte se podem deduzir do próprio texto para o livrete, Six Portraits of Pain é uma obra que muito em especial me toca, e que, tendo sido encomendada pela Casa da Música para a sua inauguração, passou de algum modo despercebida nas “festividades” e “solenidades” que então ocorreram (contudo, para o disco, e ao contrário do que sucede com as outras duas obras, em captações “live”, não foi utilizado o registo da estreia, mas antes feita uma nova gravação de estúdio).
 
2)       Creio, todavia, que não se pode deixar de salientar a entrega de todos os solistas, Ansi Kartunnen em Six Portraits, Elisabeth Davis e Miguel Henriques em Acting Out.
 
3)       Em qualquer caso, e para além de todas as apreciações, há por certo um aspecto que importa assinalar: se com as obras de autores portugueses contemporâneos ocorre redobradamente uma ausência de “vida própria”, isto é, para além da situação genérica de com mais frequência as apresentações se limitarem às estreias faltam de forma dramática modos de circulação de partituras e de discos, este cd tem fazer notar uma suplementar valia da Casa da Música, com as obras interpretadas pelos seus dois grupos residentes, o Remix Ensemble e a Orquestra Nacional do Porto – e esse é um facto mesmo muito importante.

Pinho Vargas x 3 - I

 

 

António Pinho Vargas
Six Portraits of Pain, Acting Out, Graffiti (Just Forms)
Anssi Kartunnen, Miguel Henriques, Elizabeth Davis
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Franck Ollu, Martin André, Baldur Bronnimann
Numérica
 
 
O compositor, sujeito e historicidade
 
 
A personalidade artística de António Pinho Vargas é singular por uma dupla presença no campo musical: pianista, compositor e jazzman por um lado, compositor contemporâneo por outro.
 
A singularidade radicaliza-se tanto mais quanto estas vertentes aparecem inteiramente dissociados: não só Pinho Vargas não se tem mostrado de modo nenhum adepto de qualquer modo de crossover – tendência hoje cada vez mais insistente em autores que integram nos seus processos composicionais os sedimentos de uma escuta conceptualmente mais ampla -, como também, e apesar do treino como pianista, inclusive académico, não é intérprete das suas próprias composições eruditas.
O que poderia à primeira vista parecer um caso bifacetado, para não dizer mesmo artisticamente de dupla personalidade, tem contudo outras implicações, a saber, uma aguda percepção teórica da historicidade e das diferentes inscrições sociais de práticas e formas musicais, e uma não menos aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical.
 
A noção de “pulsão”, ou mesmo de “pulsação” (no que isso supõe mesmo de uma relação imediata com o investimento físico e emotivo e com as interacções) tão importante no jazz, o beat, seja de periodicidades regulares ou irregulares, manifesta-se assim também como fulcral no seu trabalho de compositor contemporâneo. Ocorre assim falar a propósito da sua poética composicional de dispositivos pulsionais bem como, mais latamente, de uma problematização do sentir.
 
Intuitivamente também que o tenha sido, Pinho Vargas não deixou de absorver ao seu modo particular a influência de compositores que, tendo sido eles próprios pianistas, elaboraram uma escrita para o instrumento mais vincadamente também percutiva, motriz e “organicista” (nesse sentido físico e pulsional) como Prokofiev e sobretudo Bártok  - dado que aflora especialmente em Acting Out.
 
 
Retomando as inscrições iniciais de um discurso já autónomo que são Monodia – quasi um requiem e Noturno/Diurno, não menos curial é ter presente o que o autor escreveu sobre a primeira dessas peças: “Uso uma simples sucessão melódica e um gesto musical lírico e consonante – mas que prazer nestas palavras – como ponto de partida da peça. Ela é excessiva, tensa, às vezes quase insuportável. Escrevi uma pequena teoria do grito mas perdi o papel”. O gesto da liberdade, ou antes, da emancipação – e da emancipação enquanto constituição de um sujeito autor de discurso próprio – assinala-se na associação “lírico e consonante – prazer”, o segundo termo introduzindo assim também nos dispositivos pulsionais um princípio, o princípio do prazer precisamente, enquanto por outro lado se assinala “tensa[ão]/grito”.
 
É particularmente interessante notar que essas duas obras matriciais, que aliás têm relações muito próximas, evocam de modo quase irresistível o primeiro Schönberg, ainda proto-expressionista, e o do sexteto Noite Transfigurada e do Quarteto nº2.
 
Sabendo-se como Schönberg representou e representa o paradigma do que Richard Taruskin designou por “falácia poiética”, isto é, uma auto-legitimação do artista pela qual o mais importante da obra reside na sua própria feitura, nas marcas da autoria, concepção correlativa à hegelinização da história da música e dos atributos dos “heróis do seu devir progressivo” (e tanto mais “heróicos” quanto enfrentando hostilidade de recepção pública, como tão em particular no caso de Arnold Schönberg), uma tal aproximação numa perspectiva pós-moderna poderá ser surpreendente.
 
Mas, justamente, falamos de um Schönberg de algum modo ante-schoenberguiano, em termos de sistema e profetismo, em que particularmente se assinalam a “tensão/grito”, o proto-expressionismo mas seguramente em qualquer caso uma marcada expressão. A analogia profunda de Pinho Vargas com essa matriz é essa de expressão, nos termos de uma “stimmung” e mesmo de uma angústia (o grito), de uma “angst”.
 
Parafraseando e invertendo os termos do conhecido livro de Harold Bloom A Angústia da Influência, dir-se-á que de modo recorrente se encontra disseminada nas obras de Pinho Vargas – e certamente nas três incluídas neste disco, mesmo que por modos muito diversos – uma “influência da angústia”, como inerente ao sujeito, na sua personalidade e historicidade.
 
Daí também que nestas três obras, mais marcadamente – como é óbvio – nas duas que implicam explicitamente solistas, Acting Out e Six Portrait of Pain, disseminadamente em Graffiti [Just Forms] em particulares destaques instrumentais ao longo das suas secções, haja “dramatis personae”.
 
Não se trata apenas de um problema de estrutura, mas ainda de uma questão de sujeito, de sujeito do discurso, que se diria mesmo ontológica, com esta ressalva de não pouca importância: como está implicado no uso de um termo do vocabulário da psicanálise para título de uma peça, Acting Out, o indivíduo já é de si uma “dramatis persona” e um espaço de conflitualidade e tensões.
 
Se atentarmos à estrutura da obra, com as suas secções de “antecedentes” e “respostas”, e ao próprio jogo entre o piano e a percussão e destes com a orquestra, compreender-se-á a referência psicanalítica “na sua conexão com a transferência [do recalcado]".
 
Numa fase mais recente, Pinho Vargas incluiu na apresentação das suas obras um texto sobre “a melancolia física do artista”, com uma epígrafe colhida em Peter Sloterderjik: “não há apenas aprendizagem positivas...ao lado há também um verdadeiro curso de decepções”.
Esse texto não diz respeito à condição da pessoa, mas sim do “artista”. Por certo que, nessa afirmada consciência, nesse “curso de decepções”, ocorrem condições concretas – da percepção de “uma inutilidade da arte e da música no quadro do espaço tempo em que vivo”, afirma.
 
 
Six Portraits of Pain, para violoncelo e largo conjunto instrumental, encomenda da Casa da Música para a sua abertura pública, é a obra dessa inquietação, dessa dor tornada constituítiva à melancolia do artista (“Esta dor constitui-nos, esta dor é agora o nosso estado de espírito” – Thomas Bernhard). Mas não menos é a afirmação da possibilidade de, pela “coisa-em-si”, pela obra, ter uma experiência estética que também exista autonomamente do tempo e espaço das suas condições materiais de gestação, a possibilidade de uma suspensão e uma “ucronia”, para além do tempo.
 
 
Com os textos de outros, em diálogo “ucrónico” com eles, o que Pinho Vargas delineia é uma possibilidade de reinscrição do sujeito como matéria da própria música. É um trilho pessoal e no entanto próximo do de outros, em reconsideração dos paradigmas de inscrição do sujeito.
 
Não é fortuito que o compositor esclareça que o primeiro texto que escolheu e “de certo modo, o mais importante porque (me) lançou para a questão fundamental da liberdade de pensamento, da arte, da política e das diversas repressões que marcam as suas histórias” tenha sido colhido em A Filosofia Crítica de Kant, obra em que Deleuze nos situa na “revolução coperniciana” do filósofo alemão, a faculdade de conhecer como legislador, o primado do sujeito, a sua emancipação: Kant, pois, em vez de Hegel – e da hegelinização da história da música.
 
Six Portraits of Pain é um novo modo de ”acting”, introspectivo, não sem paralelos e também elucidativas dissemelhanças com o de Acting Out.
 
A obra não é apenas um diálogo entre o violoncelo e o conjunto mas tem também diversas “dramatis personae” que se destacam, sendo de realce o “concertino” que se forma entre o violoncelo e dois violinos.
 
A sonoridade grave e nobre do violoncelo, como também o uso do instrumento em toda a sua extensão, são particularmente vibrantes no “macro-retrato”, o percurso em que o sujeito se delineia afinal. E poderá parecer surpreendente, mas não tanto na tentativa de leitura que aqui se ensaia, que de novo surja nesta obra a reminiscência da Noite Transfigurada de Schönberg.
 
A estrutura de Graffiti [Just Forms] é diferente pela marcante presença de um acorde de base, qual risco inicial, impulsivo (ou, ainda, pulsional), do próprio gesto de grafitar. O “rasgo” desse acorde-gesto (“rasgo” como noutro momento “grito”) traz consigo os elementos potenciadores da forte saturação da obra. Sucede isso também porque, em analogia ainda com o gesto de grafitar, o compositor usa materiais de base relativamente esquemáticos, ou melhor dizendo, de “traço grosso”, para ir introduzindo outras possibilidades, de rupturas abruptas, de timbre, de registo, de sobreposições.
 
Depois de Acting Out, com as suas ressonâncias psicanalíticas, e do “acting in[ner]” melancólico de Six Portaits of Pain, Graffiti [Just Forms] é uma possibilidade de “re-enactment” tentando delinear uma mais lata homologia, considerando não apenas a historicidade dos materiais musicais mas também as condicionantes sociológicas de formulação de discurso no quadro concreto de uma situação semi-periférica como a de Portugal, com todas as suas limitações estruturais, que fazem de algum modo que as possibilidades dessa formulação possam ser Just Forms [Graffitis].
 
 
Augusto M. Seabra
 
 
Extractos do texto escrito para o livrete desde disco.

 

Evil Machines - um sério caso de humor e imaginação

 

Fotos José Frade
 
 
 
EVIL MACHINES
Libreto e encenação de Terry Jones
Música de Luís Tinoco
Figurinos de Vin Burnham
Direcção musical de Cesário Costa
Lisboa, Teatro Municipal de São Luiz
Estreia Mundial
 
 
Quando da apresentação, também no São Luiz, de uma anterior obra de Luís Tinoco, já essa sobre textos de Terry “Monthy Python” Jones, Histórias Fantásticas, que especialmente saudei, tive ocasião de relembrar Zapping, esse brilhante objecto paródico, com uma deslocação rápida de materiais musicais, como se fossemos sintonizando sucessivos postos radiofónicos, nos quais ouvíamos designadamente duas obras que também integravam o programa do concerto em que foi estreada, a Sinfonia nº102 de Haydn e a Sinfonia nº39 de Mozart – é, por assim dizer, uma obra “em situação”. E escrevi então que, apesar de se poder temer um carácter circunstancial, isto é, que supunha uma diferença acrescida entre percepção e compreensão da obra, pois que implica no ouvinte o quadro paródico, Zapping afinal deixara marcas, sendo com Sundance Sequence uma das obras de Tinoco que Histórias Fantásticas evocava.
 
Já agora também me ocorre que quando da estreia de Zapping escrevi que a obra era brilhantemente representativa de um aspectos mais notórios da condição pós-moderna, as práticas de “paródia” – a serem entendidas não só ou nem tanto no sentido humorístico corrente, mas no de trabalho explícito sobre referências e materiais anteriores.
 
Há uns tempos atrás, num encontro casual com Luís Tinoco –  mas que não por acaso ocorreu quando ambos nos debruçávamos numa discoteca sobre as estantes de jazz –, disse-lhe que tinha acabado de ler no programa do Festival Musica de Estraburgo de 2007 um texto falando de “composição pós-pós-moderna” e que imediatamente me ocorrera também ele.
 
Por isso, trago também para aqui os termos desse texto de Antoine Gindt: “Segundo alguns, continua a haver duas filiações musicais na Europa: os herdeiros de Schönberg e portanto de uma vanguarda globalmente atonal, e os prossecutores de uma tradição mais académica na qual orquestração rima com harmonia.. Mas eis que surge, ao lado deste debate vetusto, uma tendência que reclica e reintegra materiais mais heterogéneos da história recente da música: será zona de margens, ‘no music’s land’ ou futuro da composição pós-pós-moderna?”
 
Curiosamente em contraste com um caso como o de Emmanuel Nunes (por este ser compositor em destaque no mesmo festival), Gindt falava de uma nova geração “para a qual o material também provém de um potencial mais largo de potencialidades já manufacturadas, mais imediata e directamente reconhecíveis, colhidas no banco mundial de sons, um mundo em reciclagem permanente, porque à distância e facilmente disponível. A citação pela colagem e ainda mais a impressão sonora constituem novos utensílios para o compositor”. E falava de autores que recusam a separação estrita entre “high art” e “low art”, de uma geração que adoptou a heterogeneidade colhendo também as influências e heranças do jazz e do rock, compositores como Heiner Goebbels, Fausto Romitelli, Bernhard Lang, François Sarhan e Oscar Bianchi – elenco em que se podem incluír também o notável Bruno Mantovani e, creio bem, Luís Tinoco.
 
A biografia de um autor, de um qualquer autor, não é a “chave” de interpretação da sua obra, e ainda mais em música. Mas também há dados biográficos que podem ser esclarecedores quando algumas características se tornam manifestas. Cabe assim recordar que para além da sua formação clássica, Luís Tinoco também cresceu no meio do jazz, por via do seu pai, José Luís Tinoco (de resto também um dos notáveis “song-writers” portugueses), e praticou ele mesmo o jazz, como cabe recordar que antes de optar pela composição e a Escola Superior de Música tinha primeiro frequentado a Escola Superior de Teatro e Cinema.
Terry Jones e Luís Tinoco
 
 
Evil Machines é de algum modo uma obra eminentemente cinematográfica. Se em Sundance Sequence o “script” era por assim dizer virtual, embora importante à narratividade da obra, agora o gesto foi mesmo o de pôr um texto em música, de o “musicar”. Já escrevi, logo após a estreia da obra, que enquanto Terry Jones se lhe refere mesmo como “ópera”, Tinoco mostra-se mais circunspecto na caracterização, correctamente a meu ver, a designação mais pertinente sendo a que consta do próprio espectáculo, “fantasia musical”.
 
Uma ópera é (também) estruturalmente organizada pela música. Uma “fantasia musical” como esta, mesmo totalmente cantada, trabalha de modo heterogéneo as sugestões do texto, por exemplo dando-lhe a imediata concretização sonora, por exemplo integrando também a citação parodiada como a de “God Save the King”.
 
É inegável que os muito fantasistas e delirantes figurinos de Vin Burnhan são o dado mais imediato da realização. Mas a caracterização das personagens e situações são indissociavelmente matéria do libreto e da música.
 
Tinoco não temeu que Evil Machines se aproximasse do modelo do “musical”, embora de escrita mais complexa – e essa atitude é mérito seu, sinal de uma liberdade criativa em que os compartimentos da “high art” e da “low art” já não são estanques.
 
Aqui e além reaparece a influência de John Adams – justamente  exemplo de uma situação composicional sem essas compartimentações - que tão importante é noutra obra de Tinoco, Round Time (que pode ser ouvida no seu sitío, www.tinocoluis.com), a pulsão jazzistica é recorrente, as invenções tímbricas muitas, a escrita vocal é ágil. Só num momento, “We Have All Monsters”, me parece que o compositor cedeu a uma facilidade de “canção”, porventura também porque esse é um momento de “moralidade”.
 
Cabe falar ainda também de um notável elenco, quase todo jovem ou relativamente jovem, com o evidente destaque desse talento consumado que é a soprano Ana Quintans, mas também, entre outros, de dois cantores que aqui confirmam serem casos a justificar atenção, o tenor Fernando Guimarães e o barítono João Merino. E há a notar que está patente o trabalho de “coaching”, que é mais que escorreita a pronúncia inglesa deste elenco português.
 
Mas cabe sobretudo falar de um exemplar trabalho de equipa, do entendimento Terry Jones-Luís Tinoco, dos contributos também da direcção musical de Cesário Costa, à frente da Orquestra Metropolitana de Lisboa, ou do delineamento coreográfico de Paulo Ribeiro, do trabalho de produção que implicou esta aposta do director artístico do São Luiz, Jorge Salavisa, de um espectáculo com um valor tal que a sua “exportação” nada teria de surpreendente.

Luís Tinoco

 

 

Luis Tinoco
Chamber Works
Antipode, Trois Poèmes de l’Orient, Forgotten Places, Sundance Sequence, Invention on Landscape
Eileen Hulse
Lontano, Odaline de la Martinez
CD Lorelt
 
Luis Tinoco é um dos mais brilhantes e inventivos compositores portugueses. Invention on Landscape, uma das obras incluídas neste disco, é particularmente sintomática, de modo explícito, de uma sua característica distintiva: Tinoco é um construtor de paisagens musicais. O seu pensamento é fundamentalmente harmónico, delineando subtis curvas de mobilidade e texturas, mas também com uma forte noção concreta do “som”, dessas texturas que compõem as paisagens no tempo, e com um sentido narrativo muito particular.
 
De resto, atentando ainda aos títulos, poderá notar-se que não é só Invention on Landscape, mas também Antipode e Forgotten Places, mesmo Trois Poèmes de l’Orient sobre poemas de Pessanha (embora esta se me afigure a obra menos convincente do presente conjunto), que têm essa noção evocativa de espaços e paisagens – espaços imaginários de paisagens musicalmente construídas.
 
Músico também de formação jazzística, Tinoco tem igualmente uma notável sentido da pulsão e é plausível que essa marca de formação seja vectorial ao seu notório pendor por instrumentos de palheta, clarinetes e saxofones.
 
Se há marcadamente nele um pensamento harmónico, não é em sentido estático, mas no dessas curvas de mobilidades e texturas, com as quais se prendem o sentido não só da pulsão como também da narratividade. Uma obra como Sundance Sequence, que tem um autêntico “script” (a que se deverá atender no sentido evocativo de situações, que não propriamente descritivo), revela também uma ironia muito peculiar, diria mesmo hilariante na utilização paródica de referências, como a harmonização “hollywoodiana” de excertos de Rituel de Boulez ou na reestruturação ao modo da “escola de Darmstadt” de excertos de Ritual de Chick Corea (outro exemplo brilhante desta sua capacidade de trabalhar com originalidade o segundo grau é o uso de materiais da Sinfonia nº102 de Haydn e da Sinfonia nº39 de Mozart em Zapping).
 
Umas das vantagens de um disco deste como é a de possibilitar um retrato mais próximo do autor. E, nesse sentido, esta reunião de obras, em cuidadadas realizações, não só confirma as razões do interesse que o trabalho composicional de Luís Tinoco vinha suscitando, como configura sem margem para dúvidas uma personalidade de vincadas características próprias.
 
A edição foi apoiada pela Gulbenkian e pelo Instituto Camões. A recepção crítica é que lamentavelmente foi quase nenhuma. E após uma importação inicial, o cd já nem está em distribuição no mercado português – mas se é lacuna sintomática, também se pode supri-la com facilidade no mercado electrónico.
 
 
 

À volta de Rauschenberg e Cage - Joan La Barbara

Retrato de grupo: Jasper Johns, Merce Cunnhingham, John Cage, Carolyn e Earle Brown e Roberr Rauschenberg. É em particular importante ter presente o enorme impacto artístico da actividade dos dois pares masculinos, Cunnhingham-Cage e Johns-Rauschenberg
 
 
 
John Cage e Merce Cunningham começaram a frequentar o Black Mountain College, na Carolina do Norte, em 1948. Foi aí, no ano seguinte, que o jovem pintor Robert Rauschenberg os conheceu, tornando-se um outro membro da “comunidade” que se ia constituíndo, com Morton Feldman e Christian Wolff, o pianista (e ocasional compositor também, para Cunningham) David Tudor, e enfim, Carolyn e Earle Brown, que Cage e Cunningham conheceram em Denver em 1952 e atraíram para Nova Iorque (Carolyn Brown, que foi uma das mais importantes bailarinas de Cunningham, uma das traves da companhia, publicou recentemente uma volumosa memória, Chance and Circunstance - Twenty Years With Cage and Cunningham; Cage aliás relatou, e o testemunho de Christian Wolff confirma, que a chegada de Browne provocou inicialmente um choque com Feldman).
 
É com este rede constituída, que ocorreu a dupla deflagração sucessiva de Agosto de 1952, que tão considerável impacto cultural iria ter.
 
A progressiva integração do silêncio no processo composicional alterava por completo as condições de percepção da música, na perspectiva de Cage. Se “o silêncio, em termos gerais, não é uma evidência, a vontade do compositor é-o”,donde decorre que pode ser “vontade do compositor” fazer ouvir “o silêncio”.
 
Em rigor, não se trata do “silêncio” enquanto “não som” ou “vazio” – pelo contrário, o estrito silêncio é uma impossibilidade, “There is no such thing as silence. Something is always happening that makes a sound” -, mas do contínuo do todo sonoro que não é objecto de escuta, nos termos em que a música é objecto de escuta.
 
São estes os pressupostos de 4’33’’,a famosa peça dita “silenciosa”, apresentada pela primeira vez por David Tudor em Woodstock, a 29 de Agosto de 1952, pensada de facto como uma obra musical, com três andamentos – só que os instrumentos presentes em palco não produzem som.
 
De modo deliberado ou não, 4’33’’ transformava-se também numa acção em palco. Mas a barreira entre participantes e público fora já abolida (ou isso se tentara também) dias antes, a 16 de Agosto, com o Theater Event nº1 no Black Mountain College, o que depois seria referenciado como primeiro “happening”, quando na sequência de Cage, e mesmo directamente dos seus cursos na New School of Social Research em Nova Iorque, no fim da década, surgiu um conjunto de “performers” que se dedicaria a tais práticas, entre os quais Allan Krapow, que cunharia esse termo “happening”.
 
Cage delineou uma estrutura rítmica, e encarregou-se de uma conferência – com silêncios devidamente previstos. Cada participante ou grupo de participantes tinha um “compartimento”, e uma vez tendo-lhe sido dada a indicação para começar, poderia dispôr como entendesse. M. C. Richards e Charles Olson diziam poemas, Rauschenberg manipulava um gira-disco, David Tudor estava ao piano e Cunningham e alguns dos seus bailarinos circundavam a assistência assim envolvida, com algumas das White Paintings de Rauschenberg (rasas, tanto quanto 4’33’’ o podia também ser) suspensas.
 
Esse foi o princípio de todos os “combinings” que Cage iria organizar, a apresentação simultânea de várias obras ou acções. Note-se, “combinings”, por um lado, e por outro “combines”, os trabalhos que Rauschenberg iria desenvolver; princípios de combinatória e multiplicidade.
É importante assinalar que se John Cage foi uma influência fundamental ao percurso de Robert Rauschenberg e, por via deste, ao de Jasper Johns (tanto que os dois pintores, com o cineasta de Emilio de Antonio, foram os organizadores do concerto retrospectivo dos 25 anos de actividade do compositor, a 15 de Maio de 1958, no Carnegie Hall), as constelações pictóricas e visuais da “New York School” foram mais complexas, e que nessa complexidade se revela também algo das diferentes personalidades dos compositores.
 
Compositor de intricadas texturas e de grandes expansões temporais, como outros eram pintores de grandes superfícies, Feldman esteve fundamentalmente ligado ao “expressionismo abstracto”, face ao qual Rauschenberg se vinha colocar em contra-corrente. A maravilhosa Rotkho Chapel, De Kooning ou Piano Piece for Philip Guston são obras de títulos e dedicatórias esclarecedoras, tal como o facto de ter escrito a música para o documentário com Jackson Pollock.
 
Já Earle Browne, autor de grande formação plástica, colhia fundamentalmente de Pollock e da “action painting” o gesto, mas também nele havia a influência maior dos “mobiles” de Calder. O famoso December 1952, uma das peças de Folio and Four Systems, foi o verdadeiro pradigma das “partituras gráficas” – e de resto, simplesmente olhando para a partitura, é difícil não evocar Calder mas também Mondrian.
Joan La Barbara jogando com John Cage
 
Prosseguindo o ciclo paralelo à exposição Robert Rauschenberg: Em Viagem 70-76, é hoje a vez de actuar no Auditório de Serralves Joan La Barbara, em concerto que conta também com a participação de dois membros do Drumming, Miguel Bernat e Nuno Aroso.
 
Compositora, performer e artista sonora, Joan La Barbara é uma prodigiosa exploradora e virtuosa da voz humana. Na sua discografia destacam-se nomeadamente Three Voices For Joan La Barbara que Morton Feldman lhe dedicou e Joan La Barbara Singing Through John Cage
 
 
John Cage- Experiences, No. 2 (1948)
Earle Brown - December 1952 (1952)
John Cage - Aria (1958)
John Cage - The Wonderful Widow of Eighteen Springs (1942)
John Cage - Nowth Upon Nacht (1984)
John Cage - 4'33" (1952)
Morton Feldman - Only (1947)
John Cage - 0'00" (4'33", No.2) (1962)
John Cage - A Flower (1950)
John Cage - Music for Three (by One) (1984)
John Cage - Solo for Voice 2 (1960)
John Cage - Solo for Voice 49 (1970) de Song Books
John Cage - Solo for Voice 67 (1970) de Song Books
John Cage - Forever and Sunsmell (1944)
 
Auditório de Serralves, às 21h30

BMC-NYC

 

 

 

 
“BMC-NYC” é uma produção conjunta da Orchestrutopica, da Fundação de Serralves (Porto) e do CCB (Lisboa)
Comissário: Augusto M. Seabra
 
Robert Rauschenberg encontrou John Cage e Merce Cunningham no Black Mountain College em 1949. Algumas das suas primeiras pesquisas, as “White paintings” designadamente, são paralelas à radicalidade de propósitos de Cage, por exemplo na célebre peça silenciosa, 4’33’’.A influência de Cage e dos “happenings” no Black Mountain College é de fundamental importância no percurso de Rauschenberg, influência que, de resto, este transmitiu a Jasper Jonhs; a 15 de Maio de 1958, no Town Hall de Nova Iorque, ocorreu mesmo um concerto retrospectivo de 25 anos de obras de Cage, produzido por Rauschenberg, Johns e o cineasta Emílio de Antonio. Inclusive as suas famosas “Combines” são também elas aproximáveis do princípio da “music of chances” desenvolvido por Cage.Mas, se a também designada “New York School” teve em John Cage o seu pólo de referência, as relações entre as artes, e nomeadamente entre música e pintura, foram também recorrentes na obra de outro dos maiores compositores norte-americanos, Morton Feldman. Em torno da relação da relação Rauschenberg-Cage, este concerto evoca a paisagem artística extraordinariamente fértil que se constituíu no eixo Black Mountain College – New York City.
 
26 de Janeiro | 16.00 | Biblioteca de Serralves |  Apresentação do concerto
por Augusto M. Seabra
 
26 de Janeiro | 21.30. | Auditório de Serralves
27 Janeiro | 17.00 | CCB, Pequeno Auditório
 
 
 
ORCHESTRUTOPICA
Pedro Amaral, maestro
António Pinho Vargas, participação especial
John Cage
Music for Marcel Duchamp
John Cage
CREDO IN US
Christian Wolff
For 5 or 10 Players
 
John Cage
Music for Piano 4-19
John Cage
4'33''
Earl Brown
Folio and Four Systems
October 1952
November 1952
December 1952
MM 87/MM 153 March 1953
Music for “Trio for five dancers” 1953
Four systems Jan 1954
 
Morton Feldman
Ixion

A actualidade da Ópera - II

 

 

 
 
Ontem estreou em Lisboa, no Teatro Municipal São Luiz, o brilhante e divertidíssimo Evil Machines, que o autor do texto e encenador, o celebrado Terry Jones, que integrou os Monty Python, refere mesmo como “ópera”, o compositor Luís Tinoco mostrando-se mais circunspecto na caracterização, correctamente a meu ver. Fique pois a designação que consta do próprio espectáculo, “fantasia musical”.
 
Em breve, no próximo dia 25, ocorrerá a estreia em São Carlos de Das Märchen de Emmanuel Nunes. Lá mais para o fim do ano, aguarda-se na Culturgest a nova ópera de António Pinho Vargas, com libreto de José Maria Vieira Mendes.
 
Mas note-se também o que ocorreu ao longo do ano passado, ou para usar critérios mais pertinentes, no ano passado e no decurso da temporada anterior, 2005/2006, isto é, nos últimos 16 meses.
 
Sucessivamente estrearam: A Little Madness in the Spring, um tríptico de Pinho Vargas, Frédéric Durieux e ìris ter Schiphorst; Itinerário do Sal de Miguel Azguime; Reset de Vasco Mendonça; A Montanha de Nuno Côrte-Real e Metanoite de João Madureira; O Rapaz de Bronze, também de Nuno Corte-Real; enfim, W, de José Júlio Lopes. E no elenco dos factos deve ainda referir-se que chegou a estar anunciada mas não se efectivou por ora a estreia de O Sonho de Pedro Amaral, tendo contudo o autor feito a apresentação de um excerto da ópera.
 
A lista parece suficientemente eloquente de que também aqui e agora é manifesta a nova actualidade de um género que tanto foi proclamado como “morto”, entrem ou não numa categorização estrita de “ópera” as diversas obras referidas – as quais, em qualquer caso, são todas integralmente de teatro musical, e não “teatro musical” no sentido mais restritivo e específico, característico de um Mauricio Kagel ou de um Georges Aperghis.
 
É certo que a característica social e simbólica de distinção e ostentatória do género também é um fantasma não-ausente. Infelizmente, o modo como evoluíu o processo de apresentação de Das Märchen, com as intrigas do compositor junto do poder, e o directo, directíssimo envolvimento desse mesmo poder político, do actual dueto do Ministério da Cultura, nesse processo, são prova acabada de como o prestígio simbólico da ópera, e os seus custos de produção também, a tornam propícia a exemplos de espectáculo majestático.
 
A um outro nível, a dupla operação A Montanha /Metanoite, no Fórum Cultural “O Estado do Mundo” da Gulbenkian, foi também uma operação ostentatória e desastrosa. Digamos que foram mais as duas óperas “comemorativas” do 50º aniversário da Fundação e condenadas a por aí se ficarem, sendo o desastre em especial notório no tocante à de Côrte-Real; entre outros motivos, como depois ficou claro, essa amarga decepção ocorreu também porque não era de facto cabalmente exequível que o autor estivesse em simultâneo dedicado ao processo de composição de duas óperas, essa e O Rapaz de Bronze, sendo ainda para mais que foi ele próprio o libretista de A Montanha, a outra ópera sendo muito mais interessante, entre outros motivos, porque de facto tinha devidamente um libreto, de José Maria Vieira Mendes.
 
Como não pode deixar de se notar também, esta significativa sucessão de novas óperas e obras de teatro musical é, todavia, um facto quase publicamente ignorado. Pode ser que me tenha escapado alguma referência (pode ser, ainda que duvide), mas só me recordo de ter lido críticas às duas obras que estrearam na Casa da Música, A Little Madness in the Spring e O Rapaz de Bronze, e ambas de um crítico também compositor, Fernando Lapa.
 
Não sei ou não, esse sim é um facto de que duvido, se na imprensa portuguesa ainda existe “crítica musical”. Não creio é que uma tendência tão insistente e importante possa deixar de ser assinalada. E, a propósito, não menos foi lamentável que quando da estreia de W a Culturgest tenha anunciado um suposto colóquio internacional, que contudo foi confidencial, “Next Opera Next”, co-organizado pela “Coisa-em-Si”, a produtora do próprio José Júlio Lopes, e o CESEM, o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa – e que, provavelmente, foi mais uma manifestação “para si mesmos”, entrópica, dos senhores musicólogos “cesemianos”, dado a acrescentar, na repartição das competências, à tendência ao desaparecimentos de críticas na imprensa.
 
É pois tempo de falar concretamente de obras novas, de Evil Machines, mas também de recordar alguns percursos recentes.

A actualidade da Ópera - I

 

 

 

 

Brecht achava que a ópera era “culinária”. Adorno escreveu que “sobre nenhuma outra arte são mais pertinentes  as considerações de Benjamin sobre o declínio da aura [da obra de arte], a vanguarda promulgou durante décadas a morte da ópera e o então seu profeta, Pierre Boulez, proclamou mesmo, numa célebre entrevista ao “Spiegel” em 1967, que era preciso “incendiar os teatros de ópera” - propósitos que até foram retidos por zelosos vigilantes, e fizerem mesmo com que ele fosse brevemente detido pela polícia suíça a seguir ao 11 de Setembro de 2001, pois que ficara referenciado como suspeito de “terrorismo”! Mas, entretanto...
 
Lembro-me de, num colóquio sobre ópera contemporânea - creio ter sido na Ópera da Bastilha, quando aí foram apresentados Os Soldados de Bernd Alois Zimmermann, em inícios de 1994 -, alguém dizer que o simples facto de se saber do interesse do mesmo Pierre Boulez em, afinal, eventualmente compôr uma ópera, era sintomático. Se esse intento ainda se concretizará ou não, ver-se-á, pois Boulez permanece extremamente crítico da instituição que são os teatros de ópera:
 
“Penso que a renovação da ópera é um fenómeno muito artificial. È uma moda que se aplica a tudo (...). Para mim, trata-se em primeiro lugar da influência de encenadores no domínio da ópera. (...) Isto dito, não estou seguro que esta nova grande paixão pela ópera tenha reconsiderado todos os problemas do género, e nomeadamente a relação palco-fosso-público. Com efeito, assisti a algumas encenações de teatro, por exemplo de Peter Stein ou de Patrice Chéreau, para citar dois nomes muito conhecidos, e constatei que não utilizam o espaço teatral da mesma maneira. Eles criam para uma peça um espaço teatral muito específico. (...) Se eu devesse escrever uma obra de teatro e música – e digamos deste modo, já que o termo ‘ópera’ implica uma conotação tradicional – preferiria organizar un espaço à minha vontade, e não ficar escravo de uma relação imóvel (...). Escapar ao quadro convencional da ópera é tão difícil que a maioria das obras novas não vão ao fundo da sua revolução” (Pierre Boulez, Claude Samuel – “Èclats 2002”, ed, Mémoire du Livre, 2002).
 
 
Notar-se-á como nos propósitos de Boulez está mesmo explícita a noção de “revolução” e a desconfiança do “termo ‘ópera’” por implicar “uma conotação tradicional”; isto dito, os problemas de dramaturgia musical que enuncia são de toda a pertinência, mesmo que vá sendo difícil de aceitar que sejam condição obrigatória à renovação do género – “renovação” que não “revolução”. Daí também que esse projecto entretanto acalentado tenha vindo a ser adiado: Boulez pensou numa colaboração com Heiner Müller, e tendo este falecido, encarava a hipótese de trabalhar com Edward Bond – era pelo menos o ponto da situação. Mas tudo ponderado, o facto de se saber do interesse de Pierre Boulez em talvez compôr uma ópera, mesmo que o termo seja outro, não deixa de ser suficientemente sintomático, tão forte foi o rasto da análise adorniana, e bouleziana, da morte da ópera depois do Wozzeck e da Lulu de Alban Berg.
 
Por certo que a renovação teatral foi decisiva: longe da estagnação, da fossilização mesmo, que houve durante décadas, a ópera, depois de Wieland Wagner, Luchino Visconti e Giorgio Strehler, foi espaço para as mais elaboradas e exaltantes experiências cénicas, devidas a um Patrice Chéreau, um Peter Stein, um Luca Ronconi, um Bob Wilson, um Peter Sellars, etc.
 
Depois de tanto se ter proclamado a morte da ópera, difícil vai sendo mesmo saber de um compositor de relevo que não tenha escrito uma ópera, esteja em vias disso ou a tal aspire. Talvez, se não Adorno, o próprio Walter Benjamin pudesse afinal ter constatado, não fosse o seu destino trágico, que a ópera, longe de dissipar a sua aura, afinal resiste, anacrónica, na aceleração vertiginosa da modernidade. E talvez seja disso também sinal que a experiência trágica de Benjamin seja já matéria de ópera, Shadowtimes de Brian Ferneyhough ou, muito recentemente, W de José Júlio Lopes.
 
Falemos então concretamente de ópera, “hic et nunc”, aqui e agora.

Magnus Lindberg

 

 

Personalidade central ao “Focus Nórdico” que a Casa da Música irá apresentar ao longo deste ano, o finlandês Magnus Lindberg (n. 1958), será mesmo o “compositor em residência”. Feliz situação, credora de toda de toda o destaque, pois Lindberg é certamente um dos autores mais marcantes da actualidade, um dos que mais importa.
 
A informação, e sobretudo a circulação das obras demorando, e acrescendo ainda mais o tempo para nos apercebermos da dimensão do impacto, poderemos hoje dizer que, ao correr do tempo, nos podemos ir dando conta da importância crucial de Kraft, obra distinguida na Tribuna Internacional de Jovens Compositores da UNESCO de 1986..
 
Para um “jovem compositor”, Lindberg (n.1958) já tinha então um curriculum de relevo, tanto mais que já havia sido distinguido na mesma Tribuna, em 1982, com …de Tartuffe, je crois - e restrospectivamente, poderemos hoje considerar que uma outra obra, datada dessa mesmo ano, Action — Situation — Signification, era também suficientemente esclarecedora de uma poética própria.
 
Da sua narrativa curricular constavam cursos com Franco Donatoni em Siena e com Brian Ferneyhough em Darmstad, além de estudos particulares com Vinko Globokar e Gérard Grisey em Paris, ritos canónicos para um “jovem compositor”, pois. O que nem por sombras se sonhava à época era a importância de uma narrativa particular: o encontro no Conservatório Sibelius de Helsínquia, em 1977, de Magnus Lindberg, Kaija Saariaho, Esa-Pekka Salonen, Jukka-Pekka Saraste (estes dois, hoje bem conhecidos maestros) ou do violoncelista Anssi Kartunen, e a constituição do grupo “Korvart Auki/Ouvidos Abertos”, e do conjunto instrumental Toimi, em reacção ao conservadorismo dominante, que em termos de referências reconhecíveis, podemos associar à “canonização” de Sibelius ou Rautavaara, este aliás professor de composição naquele conservatório.
 
Mas então, Kraft porquê? Pelas extraordinárias explosões rítmicas e de massas sonoras (a obra destina-se a cinco solistas amplificados e orquestra) que Lindberg sumarizava como “uma combinação do hipercomplexo com o primitivo”, declarando que “só o extremo é interessante”. Era uma música de “energia” claro (“kraft”), de “fricção” também, ou, de como ele escrevia nesses anos, a propósito do material e a sua organização, ocorria um paradoxo que “suscita uma tensão irracional entre a expressão e a estrutura, moldando a música com um carácter nervoso, uma fricção, que não é um obstáculo mas uma fonte da inspiração criadora”.
 
Kraft era a irrupção de um “brutalismo” complexo, para o qual, se bem que se podessem e possam tecer similitudes com outras “deflagrações” anteriores, exteriores à narrativa unínoca das ortodoxias primeiro seriais e depois “post”-seriais, como Xenakis, Ligeti ou o Penderecki inicial, ou, mais perto no tempo, Rihm, haverá também de atender a uma noção mais lata de envolvimento sonoro, que não deixava de ter analogias com orientações de cenas “rock” alternativas, ou seja, para parafrasear o título de uma posterior obra do finlandês, analogias Related Rocks – e se mesmo que “related”, a música de Magnus Lindberg não é ainda assim da esfera do rock, os seus ouvidos estiveram bem abertos para a energia “punk” dos Clash, na Londres dos anos 70, ou o “rock industrial” e experimental dos aventurosos Einstürzende Neubauten na Berlim dos anos 80, de algum modo dessas vivências sedimentando-se na sua própria música uma noção fundamental, a de pulsação.
 
“Ouvidos abertos” terá sido uma declaração com uma pragmática própria na situação finlandesa. Mas “ouvidos abertos” é uma proposta mais geral, o entendimento de uma poética mesmo. Daí que Lindberg, por exemplo, tenha sido mesmo um dos que enunciaram uma questão capital, “Porquê evitar?”.
 
Concretizemos: porquê evitar por princípio, por exemplo, certas situações harmónicas só porque de acordo com os príncipios que se consideram caducos da tonalidade funcional, ocorre o que sucede ser um dó maior? Mas então será a “atonalidade”, mormente como se formulou na série dodecafónica, um outro princípio limitativo? “Ainda me lembro do espírito que reinava no meio musical nos anos 80: era imperativo compôr deste ou daquele modo, com o risco de se ficar encerrado num ‘ghetto’. Ora, a música teve sempre necessidade de novas perspectivas. A tonalidade como a atonalidade eram utilizadas na música funcional. Esse é, para mim, e para a maioria dos meus colegas, um anacronismo com o qual não poderia trabalhar. É, creio, um capítulo encerrado”.
 
Em lugar de funcionalidades ou princípios apriorísticos, a música de Magnus Linbderg revela-se de extraordinária “organicidade”, nas suas torrentes rítmicas e harmónicas, que lhe suscitam uma pulsão vital e uma energia muito próprias, de enorme impacto sensorial na escuta, bem distinta e reconhecível. A extraordinária Aura – In memoriam Witold Lutoslawski de 1993-94, a meu ver uma das portentosas obras musicais dos últimos anos, é particularmente esclarecedora da poética de Lindberg e a da sua tendência às grandes massas e à grande forma – uma “meta-forma-sonata”, foi dito, um modo de enunciação de uma narratividade não-funcional, pensando a música também nos seus encadeamentos temporais, horizontais, e não apenas na verticalidade, como fundamentalmente decorreu e decorre das ortodoxias seriais e pós-seriais. É, se quisermos, uma concepção dinâmica decorrente dos próprios quadros harmónicos, mas não deixando estes restritamente flutuantes e magmáticos.
 
Há na música de Magnus Lindberg uma dimensão sensorial imediata, física, longe das concepções teoricistas dessas ortodoxias pós-seriais, que de modo nenhum exclui a elaboração formal,  mas também de modo nenhum renega um princípio do prazer.
 
Hoje às 19h30, a Orquestra Nacional do Porto, dirigida por Martin André, abre o “Focus Nórdico”, com um programa constituído por obras de quatro “clássicos”, Alfvén, Grieg, Nielsen e Sibelius (Finlândia) e, com o próprio compositor como solista, o Concerto para Piano de Lindberg, obra dos inícios dos anos 90, marcado pelo influxo das pesquisas no IRCAM e da escola espectral.
 
É interessante aliás notar, pelo que que revela de diferenciador em relação aos preceitos da “vanguarda”, serial e pós-serial, que ao longo desta residência se ouvirão o Concerto para Piano, o Concerto para Violoncelo e o muito recente Concerto para Violino (do catálogo do autor constam ainda um Concerto para Clarinete e um Concerto para Orquestra ). Mas o evento maior que há desde já que assinalar será outro programa da ONP  (também com o grande violoncelista Truls Mork) com essa obra de génio que é Aura, a 23 de Fevereiro. Ouvidos bem abertos, pois...

Dois concertos "austríacos" - II

 

 

Um Concerto para Thomas Bernhard

Obras de Mozart, Mendelssohn, Cerha e Pinho Vargas

Luís Lucas, Kurt Azesberger

Orquestra Metropolitana de Lisboa, Michael Zilm

CCB, 1 de de Dezembro de 2007, às 21h

 

 

 

“Há vinte e oito anos exactos havíamos morado em Leopolskron e estudado com o Horowitz, e (no caso do Wertheimer e no meu, não do Glenn Gould naturalmente) com o Horowitz tínhamos aprendido mais durante um verão completo, Verão em que chovera continuamente, do que durante os oito anos anteriores do Mozarteum e da Academia de Viena”.

 

O Náufrago

 

“Tanto quanto me lembro, não houve nada no mundo de que eu gostasse tanto como de música, pensei eu, olhando, através de Reger, para além do museu, para o interior da minha infância”.

Antigos Mestres

 

 

 

Ter como tópico organizador de um concerto um autor literário é facto que só usa suceder no “lied” e na “mélodie”, e mesmo nessa àrea até mais em disco que propriamente em recital. Realizar um concerto em torno de Thomas Bernhard (1931-1989), justifica-se plenamente pela importância da música na sua obra e na sua vida. Ainda assim, estava longe de ser uma proposta “evidente”, de tão “canónicas”, mesmo estereotipadas, que são as linhas de programação de concertos. Há pois, em primeiro lugar, de dar o devido realce à proposta do CCB – encerrando o ciclo dedicado ao escritor austríaco – e da OML, uma Orquestra que, aliás, vem apresentando, com um incompreensível pouco eco crítico, interessantes propostas de programação, já não falando agora de um trabalho de fundo.

 

Com tais premissas, terá também de aceitar-se que os modos de enunciação não tenham eles também sido “canónicos”, ou seja que, por exemplo, a Abertura “A Flauta Mágica” de Mozart tenho sido cortado por momentos de leitura de textos referentes à mesma (diga-se contudo que Luís Lucas, excelente “diseur” que é, esteve pouco à vontade nas funções de narrador).

 

Não menos é certo que Mozart – no caso a referida Abertura e a Sinfonia “Haffner” – não é exactamente o autor com quem Michael Zilm tem mais afinidades, ainda que, em “extra”, um número do “singspiel” Zaide, com o próprio Zilm, Lucas e o tenor Kurt Azesberger vocalizando de diferentes modos, tenha sido hilariante. Já interessante foi conhecer a abertura de outra “singspiel”, Die wandernden Komödiantenten/ Os Comediantes Ambulantes de Mendelssohn, anunciada como sendo em 1ª audição moderna – em Betão a personagem principal é um escritor que ambiciona escrever uma biografia de Mendelssohn.

 

 

Friedrich Cerha, compositor austríaco nasciado em 1926, é sobretudo conhecido por a ele se dever o acabamento do Acto III da Lulu de Alban Berg. Dir-se-ia impossível não recordar o facto ouvindo Bevor es zu spaet ist/ Antes que seja tarde para tenor e orquestra, sobre um texto de Derrubar Àrvores de Bernhard. Mas a obra maior de Cerha, convém também recordá-lo, é Baal, ópera sobre a peça do jovem Brecht, ainda “expressionista”. A clarissima herança berguiana em Bevor es zu spaet ist é a das aproximações “expressionistas” e até anteriores, a herança de Wozzeck, de Der Wein e mesmo dos Albenterg Lieder. Mas não se entenda a obra como epigonal, já que não menos se salienta, na força da sua expressão, um raro caso de correspondência musical ao universo inquieto, revolto e agreste do autor do texto.
 
O propósito de Pinho Vargas era de outro tipo, uma vez que, como desde logo o indica o título, a obra constrói-se sobre um texto declarativo, Um Discurso de Thomas Bernhard, pronunciado quando lhe foi entregue o Prémio Nacional de Literatura em 1967, discurso irado, na má-relação que foi a do escritor com a Àustria. A escolha do texto traduz também, por assim dizer, uma “radicalização” da aproximação por parte do próprio compositor neste seu “encontro”, aliás “reencontro”, com Bernhard.
 
Recordo que Pinho Vargas vinha a incluir na apresentação das suas obras um texto sobre “a melancolia física do artista”, com uma epígrafe colhida em Peter Sloterderjik, “não há apenas aprendizagem positivas...ao lado há também um verdadeiro curso de decepções”, e que em Six Portraits of Pain, a sua melhor obra dos últimos anos, um dos “retratos” era do de Thomas Bernhard - “Esta dor constitui-nos, esta dor é agora o nosso estado de espírito”. No texto deste Discurso, o “curso das decepções” é extremo: “Não há nada a dizer a não ser que somos lamentáveis. (...) Não somos nada e só merecemos o caos”.
 
As circunstâncias da encomenda acabaram por ser, ou se tornar duplas, uma vez que a obra é escrita para a mesma formação que a Sinfonia “Haffner”. Ocorria assim também um duplo risco: de a música se tornar envolvente ou sustentáculo da primazia de um discurso verbal e o da própria formação. Riscos esses que creio não inteiramente superados num aspecto: os “tutti” das cordas, numa escrita menos trabalhada que a dos sopros, não deixam de confirmar alguma propensão enfática que se vem notando em obras recentes de Pinho Vargas. Mas não menos é evidente que no fundamental há uma adequação entre os propósitos e a matéria, questão de “autenticidade”, para evocar o conceito adorniano que no caso creio de toda a pertinência.
 
 
P.S. – Na lista das obras de Thomas Bernhard publicadas em Portugal, incluídas no programa geral do ciclo do CCB, faltam as seguintes: O Fazedor de Teatro, tradução de Idalina Aguiar de Melo, Livraria Estante Editora, 1987; Betão, trad. Maria Olema Malheiro, 1989; Trevas, trad. Ernest Sampaio, Hiena, 1993. As omissões são tanto mais chatas quanto induzem uma certa parcialidade de referências editoriais. E aliás o discurso quando do Prémio Nacional está incluído em Trevas.