São Carlos - I
“Candida Höfer em Portugal”
O afastamento abrupto de Paolo Pinamonti da direcção do São Carlos e a sua substituição por Christoph Dammann, em Março transacto, criaram uma situação à beira do abismo, por razões estruturais, que em muito ultrapassam a consideração de méritos: criaram um vazio a sete meses do início de uma nova temporada – e falo genericamente da temporada, e não apenas em particular da ópera.
Que em tão curto espaço de tempo não seria possível mais que um arremedo, era facto desde logo pressentível, evidente para qualquer pessoa minimamente conhecedora, e que apenas o não foi para o ilustre doutorado na história do mesmo Teatro Nacional de São Carlos, o Prof. Mário Vieira de Carvalho, secretário de Estado da Cultura do presente governo socialista, que com os notórios tiques do seu dirigismo cultural de matriz estalinista quis acrescentar mais uma peça à área de directa intendência, mesmo que por interpostos Opart e Dammann – uma peça para ele crucial.
Quem, tendo experiência, e até de direcção de teatros, aceitou o cargo nestas condições, isto é, Dammann, não podia desconhecer os drásticos limites de acção decorrentes de tão precipitada substituição. Cabe-lhe portanto a devida quota-parte de responsabilidade directa pelo que entretanto vai ocorrendo, não esquecendo quem é o responsável principal.
Diga o que disser o ilustre “compositeur portugais” Emmanuel Nunes, que foi parte integrante e desabrida do golpe em São Carlos, na presente temporada resta do planeamento devido ainda a Paolo Pinamonti a estreia em Janeiro da sua ópera, Das Märchen – a qual há razão para aguardar com motivos tantos mais acrescidos à medida que as peças preparatórias, as Épures du serpent vert, têm vindo a ser apresentadas em concerto. Mas entre o que mais resta figura também, e há que perceber em que condições, este Rigoletto -sim, “este” Rigoletto! E depois, quase tudo o resto, é fruto de acasos e imprevistos.
A questão real, por certo agravada e muito pelo golpe dirigista, mas que se coloca para além de directores artísticos e é estrutural, a questão real é a de saber como é possível um bicentenário teatro nacional de ópera ter as temporadas recorrentemente confirmadas só em cima de hora, ou seja, sem um efectivo trabalho de planeamento a médio prazo, com os compromissos devidamente assumidos e para serem cumpridos. Esta é, frise-se, a questão estrutural – a que tem vindo a dificultar, quando não mesmo menorizar, o relevo do São Carlos no circuito internacional dos teatros e do “show-business” da ópera, com as devidas consequências também de valias artísticas.
Christoph Dammann, que aliás ainda está em funções também como director da Ópera de Colónia, tem os suficientes contactos que possibilitaram, em curto espaço de tempo, a vinda de uma Vesselina Kasarova, num concerto bastante equívoco mas com alguns belos momentos de canto, e em rigor de “bel canto”, e de uma das máximas duplas de “lied”, Cristoph Prégardien e Michael Gees, de quem fica a recordar-se uma interpretação modelar do ciclo A Bela Moleira de Schubert. São factos que é devido serem registados e salvaguardados.
O pior, infelizmente, é o que se vai acumulando. Nem vou falar, porque nem tive a curiosidade mínima de assistir, ao concerto em que o tenor José Cura dirigiu (sim, dirigiu) a Sinfonia nº9 de Beethoven. Acontece que por duas vezes sucessivas ouvi maestros que não faziam a mais pequena ideia do repertório e das obras concretas que estavam a dirigir, Cornelius Meister no tal concerto “Do Barroco ao Bel Canto” com a Kasarova, e agora este infausto Alexander Polianichko no Rigoletto. Acontece também que, mesmo admitindo que Chelsey Schill estivesse em especial infeliz na noite em que a ouvi interpretar Gilda, é manifesto que raia o absurdo promover a jovem soprano a solista residente do Teatro, a única depois do desaparecimento do prometido barítono Ernesto Morillo, cantando em ópera após ópera – tal como foi absurdo programar, no mesmo concerto “Do Barroco ao Bel Canto”, ao lado da Kasarova e de José Fardilha, as sopranos Carla Caramujo e Sara Braga Simões, facto que se revelou injustamente traiçoeiro para as próprias.
Depois há a questão das encenações e das produções, afinal também a da ópera como teatro musical, como tanto insiste no seu magistério o Prof. Vieira de Carvalho. Há questões estruturantes, que eram supostas estar devidamente esclarecidas mas às quais, pelos vistos e infelizmente, se retorna. Por exemplo a das produções alugadas e das condições de co-produções.
Um caso como o da Tosca, encenada por Robert Carsen, que virá da Ópera da Flandres, é manifestamente de “produção alugada”, sendo que, com toda a probabilidade, virá um qualquer assistente. Já este Rigoletto, que acabou por vir a ser montado no São Carlos também por uma assistente (e logo a também responsável pela “coreografia”, pelas perninhas das coristas de “cabaret”, Nuria Castejón!), era de raíz uma co-produção entre o Associação de Bilbao e o São Carlos, e aliás também a Semperoper de Dresden (gentilmente não referida ora no programa). E portanto sejamos claros, o seu a seu dono: a aposta nesta malfadada encenação foi ainda de Paolo Pinamonti com Emilio Sagi, pois que a co-produção estava devidamente anunciada em Outubro de 2006, estava ele em funções, quando da estreia em Bilbao.
Mas se tal facto deve ficar registado, também outro dado é devido: na continuidade do trabalho que vinha desenvolvendo em Lisboa, era Donato Renzetti o maestro previsto, tendo-o já sido inclusive na estreia em Bilbao. Ora, infeliz e incompreensivelmente, Renzetti acabou por ser “saneado” na sequência de Pinamonti – e o preço de o substituir pelo infausto, impreparado e incompetente Polianitchko estão à vista, ou antes, gritantemente audível.
Repito: o Rigoletto ora em cena no São Carlos é lamentável. E para além do facto em si mesmo, não deixa de constituír também uma preocupante confirmação de que esta temporada é de facto um arremedo, por obra do “dirigismo esclarecido” da governação da Ajuda.