Feitos os considerandos gerais, há a notar que este anúncio é verdadeiramente extraordinário a nível do governo e da Câmara de Lisboa.
Não posso, uma outra vez, deixar de relembrar o que consta do Programa do Governo:
“A política cultural para o período 2005-2009 orientar-se-á por três finalidades essenciais. A primeira é retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram. A segunda é retomar o impulso político para o desenvolvimento do tecido cultural português. A terceira é conseguir um equilíbrio dinâmico entre a defesa e valorização do património cultural, o apoio à criação artística, a estruturação do território com equipamentos e redes culturais, a aposta na educação artística e na formação dos públicos e a promoção internacional da cultura portuguesa. A opção política fundamental do Governo é qualificar o conjunto do tecido cultural, na diversidade de formas e correntes que fazem a sua riqueza do património à criação, promovendo a sua coesão e as suas sinergias.”
O que se vem passando, como bem (ou mal) sabemos, é o inverso: asfixia financeira reforçada, desqualificação, secundarização.
E de onde vem o dinheiro? Pois, das empresas que têm negócios em África: "a banca, a EDP, têm estratégias de projecção para o futuro que passam pela África para além dos PALOP". Se nos lembrarmos da demarcação do BES em relação às declarações de Bob Geldof, demarcação submissa para com a cleptocracia angolana, isto não augura nada de bom – porque há um factor nada dispiciendo a considerar que é o de muitos artistas africanos terem posições críticas ou conflituais com os poderes dominantes.
Mas diria que ainda mais extravagante do ponto de vista político é o investimento da CML.
Sabe-se a sua apertada situação financeira. Mais: para angariar fundos, e de modo mesmo indecoroso, alguns espaços públicos (pelouro do vereador Sá Fernandes) estão a servir para publicidade, como dois dos espaços mais nobres de Lisboa, o Terreiro do Paço e o Marquês de Pombal, que de modo literalmente obsceno são agora campo de publicidade da TMN.
Não há dinheiro para a EGEAC, a empresa gestora dos equipamentos culturais, e para os teatros municipais. E há uns meses atrás foi mesmo cancelada uma iniciativa que nos três últimos anos vinha tendo êxito, público crescente e repercussão – pois imagine-se que era o África Festival! Agora vá lá compreender-se – ou antes, compreende-se que desta vez arrastando a deficitária Câmara Municipal de Lisboa, houve o “Quero, mando e posso” de Sócrates, que fará a apresentação oficial do África.Cont. no próximo dia 9.
No meio disto tudo se prova uma vez também a inexistência política de José António Pinto Ribeiro, o qual, como vai sendo hábito, fica na Ajuda, vendo lá do alto passar os navios.
Logo abaixo, o seu solicito colega da Economia e Inovação, Manuel Pinho, ocupa-se do pólo museológico e turístico de Belém, com o novo Museu dos Coches (que na situação actual dos museus portugueses estava longe de ser uma prioridade), obra de um laureado do Prizkter (o “Nobel” da arquitectura), o brasileiro Paulo Mendes da Rocha, e da construção dos módulos 4 e 5 do CCB.
Mas porque me hei-de eu queixar? O África.Cont. ficando nas Tercenas do Marquês, entre as Janelas Verdes e a 24 de Julho, passo a ter na vizinhança três museus ou centros, o de Arte Antiga, o nóvel do Oriente e depois este, um autêntico “museum district bis” – chic a valer!
Uma vaga assola o país: a dos centros culturais e dos centros de arte contemporânea. Bom seria que tivesse consistência, mas infelizmente, para além de alguns casos de trabalho continuado e gestão qualificada (Guimarães, Braga, Guarda, Viseu e poucos mais), o que na maioria dos casos se verifica é a ambição espalhafatosa de alguns edis, que uma vez feita a obra a deixam ao deus-dará, sem conteúdos e programação.
Também já tivemos recentemente uma ministra, a ilustre confrade queiroziana Isabel Pires de Lima, que sonhava com museus: era o Museu do Mar da Língua nos edifícios que restam do Museu de Arte Popular e o Museu do Multicularismo na Estação do Rossio em Lisboa, o de São João Novo no Porto. Além, claro, do megalómano pólo do Hermitage.
Faça-se ao menos ao sucessor, José António Pinto Ribeiro, a justiça de notar que deixou calmamente cair esses projectos – e ter-se descomprometido é do pouco que conta no seu activo.
Eis que agora, segundo o “Público” de sábado, e na sequência da cimeira euro-africana de Lisboa de há um ano, se anuncia um novo projecto retomando os piores equívocos “multiculturais” (ou “inter-culturais” como passou a estar na moda) dos projectos do Mar e da Língua e do outro para o Rossio, a uma escala muito mais relevante: o Africa.Cont, não um museu mas um centro pluridisciplinar dedicado às artes contemporâneas africanas. E porquê? Por vontade política de Sócrates, e do seu mote, “Quero, posso e mando”, em associação com o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa.
Vamos por parte.
Em primeiro lugar, o próprio conceito de África, pesem ainda as ideologias pan-africanistas, engloba duas entidades histórico-culturais bem diferentes, o Magreb islâmico e a África negra sub-saariana – e hoje em dia, de algum modo já também de forma autónoma a África do Sul.
Haverá que reconhecer ser um pouco estranho que, independentemente do Museu de Etnologia, não haja um espaço museológico dedicado às culturas que foram as da África Colonial portuguesa, ao que agora se chama “artes primeiras”, consagradas no Museu do Quai Branly aberto no ano passado em Paris.
Mas, independentemente disso, é óbvio que há em Portugal um enorme desconhecimento das artes contemporâneas africanas.
Doeu-me imenso verificar, em Junho do ano passado, quando morreu o senegalês Ousmane Sembene, o autor que praticou procedeu à “invenção cinematográfica de um continente”, a África negra, que o facto quase tivesse passado despercebido na imprensa portuguesa. Estou curiosíssimo de ver Teza, o primeiro filme em quase 10 anos do etíope expatriado Hailé Gerima (que noutros tempo, quando o Festival da Figueira da Foz era um nosso ponto de encontro obrigatório, obteve o Grande Prémio, em 1976, com A Colheita dos 3 Mil Anos),que esteve no recente Festival de Veneza. Por cá é nulo ou quase o conhecimento dos fotógrafos malianos Seydou Keita e Malick Sidibé. Há vários coreógrafos africanos interessantes e, como bem se sabe (e muito também se não saberá) inúmeros músicos importantes.
Agora atenção: o reverso do preconceito colonial tem sido uma certa condescendência “multiculturalista”, que entendo a seu modo como a outra face de uma atitude neo-colonial: por exemplo, solicitam-se “artistas africanos” não pelo seu intrínseco valor enquanto “artistas” mas porque são “africanos”. Esse foi a meu ver aliás o aspecto contestável da acção de António Pinto Ribeiro (inevitavelmente ouvido no trabalho do “Público”) na Culturgest, prolongado agora nalgumas das suas iniciativas na Gulbenkian.
Podia ser frutuoso, em abstracto, que houvesse vontade política de lançar pontes, mas este projecto para "perpetuar esta realidade de Lisboa ser a ponte entre a Europa e África" (António Costa dixit) vem ainda do fundo histórico-colonial, e não tem sentido nas geografias humanas e culturais de hoje – não há “A ponte”, mas vários espaços privilegiados como Paris e a França em geral, ou até Berlim, com nomeadamente a actividade da Haus der Kulturen der Welt.