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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

As mãos e os afectos (António Pinho Vargas X 3 - IV)

 

 

 
António Pinho Vargas
Casa da Música, 14 de Dezembro
 
Quando do lançamento de Solo, o duplo disco que marcou o regresso de António Pinho Vargas aos territórios improvisacionais jazzísticos após uma longa ausência de 12 anos, reservei a audição directa para mais tarde – ou, se quiserem, por outras palavras, por variadas razões não me apeteceu ir ao concerto de apresentação na sala onde o disco foi gravado, o Pequeno Auditório do CCB.
A oportunidade surgiu agora, cinco meses volvidos. Resultou ela também de uma circunstância infeliz: na programação da Casa da Música estava previsto para o passado dia 14, e integrado no “Focus Nórdico” desde ano de 2008, a apresentação do Esbjörn Svensson Trio, e, como se sabe, Svensson morreu acidentalmente; a data vaga foi assim ocupada por um concerto de Pinho Vargas.
Acontece que não é facto dispiciendo ouvir o pianista na sua cidade de origem, aquela em que começou os seus estudos musicais e a sua vida de músico profissional, justamente de jazz. E não é dispiciendo não propriamente por essa circunstância biográfica em si, mas porque, como era previsível, e se confirmou, António Pinho Vargas colhe no Porto um capital de afectos que é um factor importante no “feed-back” do público a um músico – e o jazz é, por assim dizer, o mais interactivo dos géneros musicais, de interacção entre os membros de um grupo, mas também de interacção entre os músicos, ou um músico a solo, e a resposta do público. E a resposta da sala, a manifestação dos afectos, foi a razão porque fez Pinho Vargas escolher tocar ainda, extra programa , “Cantiga para Amigos”.
No momento em que está prestes a estrear uma sua nova ópera, Outro Fim, já amanhã na Culturgest, e glosando o tópico que ele tem insistido da sua “heteronímia”, da sua dupla existência enquanto pianista-compositor de jazz e compositor erudito contemporâneo, encontra-se ele assim em pleno apogeu dessa heteronímia. E embora “a influência da angústia”, invertendo os termos de Harold Bloom, seja umas das suas características composicionais mais marcantes como já assinalei, não parece que este presente “apogeu da heteronímia” lhe seja particularmente angustiante, a julgar pelo que se lhe ouviu na Casa da Música, seis dias antes da estreia da ópera.
Como também já disse, Pinho Vargas tem uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical, uma noção dos dispositivos pulsionais e do sentir. Essa relação estabelece-se imediatamente no jazz pelo jogo e mãos – e de pés, também, bastante activos. Ouvindo-o agora, não creio que os dois campos sejam afinal tão absolutamente impermeáveis: a sua linha de improvisação em “Quedas d’água (com lágrimas)” derivou para “clusters” no extremo agudo que se diriam provindas da sua aprendizagem junto de Ligeti e da sua admiração por esse compositor – esse facto, mais que uma remota memória da herança do “free jazz” dos seus primórdios musicais (Cecil Taylor, nomeadamente), já que entretanto, e sobretudo, as suas linhas aproximaram-se no “toucher” de um Chick Corea, ou, mais recentemente, na assumpção descomplexada de uma base de melodismo tipo “song”, de um Mehldau.
Curioso foi que tivesse incluído no programa um tema que não consta do disco Solo, “Da Alma”. E justificou-se ele, dizendo ter sido um “lapso”, porque esse tema, como outros já gravados, consta do disco resultante das mesmas sessões mas que só será lançado para o ano. Diria que “lapso” foi essa sua explicação. É óbvio que foi o lançamento do disco que o recolocou “on the road” fazendo concertos a solo, mas esses não têm que ser meros concertos promocionais, estritamente limitados ao repertório constante do disco. Neste momento, afinal, António Pinho Vargas é, mais do que nunca, um músico conscientemente livre, e se essa é uma razão pela qual não deu sinais deste “apogeu da heteronímia” estar a ser um momento de particular “influência da angústia”, também supõe que ele será tanto mais livre quanto compuser os seus concertos de acordo com os temas que o sentir ditar, e não segundo a estrita razão de haver um disco que é de novo a razão imediata, mas não única, para o reencontro das mãos e dos afectos.

 

Pinho Vargas x 3 - III

 

 

António Pinho Vargas
Solo
2 cds David Ferreira

 

 

 

 

o escrevi nas notas ao recente disco com três obras de António Pinho Vargas, mas há algumas considerações que se me afiguram importantes de retomar a propósito deste outro disco que marca o seu regresso ao campo jazzístico após longa ausência.

A personalidade artística de Pinho Vargas é singular por uma dupla presença no campo musical: pianista, compositor e jazzman por um lado, compositor contemporâneo por outro.

A singularidade radicaliza-se tanto mais quanto estas vertentes aparecem inteiramente dissociados: não só Pinho Vargas não se tem mostrado de modo nenhum adepto de qualquer modo de crossover composicional, como também, e apesar do treino como pianista, inclusive académico, não é intérprete das suas próprias composições eruditas.

 

O que poderia à primeira vista parecer um caso bifacetado, para não dizer mesmo artisticamente de dupla personalidade (e nesse sentido inclusive mais complexo do que a “heteronímia” de que ele próprio fala), tem contudo outras implicações, como uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical.

A noção de “pulsão”, ou mesmo de “pulsação” (no que isso supõe mesmo de uma relação imediata com o investimento físico e emotivo e com as interacções) tão importante no jazz, o beat, seja de periodicidades regulares ou irregulares, manifesta-se assim também como fulcral no seu trabalho de compositor contemporâneo. Ocorre assim falar a propósito da sua poética composicional de dispositivos pulsionais bem como, mais latamente, de uma problematização do sentir.

 

Ora, ainda que de modos de todo diversos, não menos há que falar de dispositivos pulsioniais e de sentir a propósito deste Solo.

 

É provável que uma tão longa ausência não deixe também de se relacionar com um anseio de reconhecimento e legitimação no campo composicional erudito. Se Pinho Vargas tem certamente a noção de ter também a facilidade composicional, digamos mesmo que estritamente melódica, que fizeram alguns dos seus temas como “Tom Waits” e “Vilas Morenas” tornaram-se bem reconhecidos, os únicos temas “novos” que surgem em Solo, “Funerais” e “Casas de Granito no Minho” são afinal também dos anos 90, da mesma época dos outros. Não há portanto, em rigor, “temas novos”, elementos mais recentes de composição jazzística.

 

De certa maneira, este regresso (por coincidência simultâneo com um disco com três composições “eruditas”) radicaliza a personalidade bifacetada: há o Pinho Vargas-compositor, que nunca é intérprete das suas obras, e o Pinho Vargas-pianista, que não dá novos sinais de composição, é apenas intérprete, re-inventor de si mesmo.

 

Pode-se considerar uma tal noção, de “re-inventor de si mesmo”, no sentido em que ele se revisita, de algum modo retoma os seus próprios standards e apenas esses, tanto mais quanto a solo. E é no modo como o faz que há igualmente falar de “uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical”, de dispositivos pulsionais e de sentir. Solo é o disco mais livre e luminoso de António Pinho Vargas, dir-se-ia mesmo, no notório princípio do prazer deste sentir, aquele em que ele surge mais “descomplexado”.


“Drôle de chemin” – foi precisa uma tão longa ausência, uma dedicação exclusiva à prática composicional erudita no entretanto, para Pinho Vargas sentir de novo, e nos dar a ouvir, todo o prazer que também tem em ser pianista de jazz, em pelos modos da improvisação jazzística ter essa relação física e pulsional imediata com matérias musicais.

 

Reencontra-se o toque preciso e cristalino, na linhagem de um Chick Corea. Mas certamente não é fortuito que um outro pianista que Pinho Vargas agora por vezes refere seja Brad Mehldau, que tem também uma aproximação livre e descomplexada dos “standards”, mesmo das “songs”.

 

Parecerá bizarro que esteja subentendido em Solo um outro título, pelo qual Pinho Vargas queria designar o disco: “Imperfeições” (e assim o cd 1 e o cd 2 têm os subtítulos de “Imperfeições 1” e “Imperfeições 2”). Mas a “imperfeição” é o do próprio rasgo irrepetível de cada momento, da volúpia do sentir e de uma pulsão, da réstea que fica gravada, sem o “reworking” adicional - ou, se se quiser, é axiologicamente do próprio princípio da indeterminação, do único e da sua multiplicidade, na arte do jazz.

 

Ouça-se a simplicidade contida de “Casa de granito no Minho” ou de “Lindo ramo, verde escuro” como a longa divagação de “Fado Negro”, a energia imediata de “Tom Waits” como a amplitude de meios pianísticos e sonoridades de “General complex”, o “staccato” e os “ostinati” de “Vilas morenas”, “As mãos” ou ainda mais “O Movimento parado das árvores”, ouça-se sobretudo, momento de excepção, o modo como após “Prelude to June (Tabor)”, Pinho Vargas “ataca” propriamente “June”, em euforia de revisitação, de se redescobrir.


E por isso se pode reiterar que Solo é o disco mais livre e luminoso de António Pinho Vargas, o disco de um sentir que é o do princípio do prazer.
 

Pinho Vargas x 3 - II

 

Como é óbvio, e ainda que numa página pessoal, não farei comentário crítico a este disco de obras de António Pinho Vargas. Ainda assim, três notas:
 
1)       Se aceitei escrever as notas ao disco foi também porque já me tinha pronunciado criticamente sobre todas as três obras, sendo que considero Six Portraits of Pain e Acting Out duas das composições mais relevantes do autor, com Monodia e a ópera Os Dias Levantados; por razões várias, que em parte se podem deduzir do próprio texto para o livrete, Six Portraits of Pain é uma obra que muito em especial me toca, e que, tendo sido encomendada pela Casa da Música para a sua inauguração, passou de algum modo despercebida nas “festividades” e “solenidades” que então ocorreram (contudo, para o disco, e ao contrário do que sucede com as outras duas obras, em captações “live”, não foi utilizado o registo da estreia, mas antes feita uma nova gravação de estúdio).
 
2)       Creio, todavia, que não se pode deixar de salientar a entrega de todos os solistas, Ansi Kartunnen em Six Portraits, Elisabeth Davis e Miguel Henriques em Acting Out.
 
3)       Em qualquer caso, e para além de todas as apreciações, há por certo um aspecto que importa assinalar: se com as obras de autores portugueses contemporâneos ocorre redobradamente uma ausência de “vida própria”, isto é, para além da situação genérica de com mais frequência as apresentações se limitarem às estreias faltam de forma dramática modos de circulação de partituras e de discos, este cd tem fazer notar uma suplementar valia da Casa da Música, com as obras interpretadas pelos seus dois grupos residentes, o Remix Ensemble e a Orquestra Nacional do Porto – e esse é um facto mesmo muito importante.

Pinho Vargas x 3 - I

 

 

António Pinho Vargas
Six Portraits of Pain, Acting Out, Graffiti (Just Forms)
Anssi Kartunnen, Miguel Henriques, Elizabeth Davis
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Franck Ollu, Martin André, Baldur Bronnimann
Numérica
 
 
O compositor, sujeito e historicidade
 
 
A personalidade artística de António Pinho Vargas é singular por uma dupla presença no campo musical: pianista, compositor e jazzman por um lado, compositor contemporâneo por outro.
 
A singularidade radicaliza-se tanto mais quanto estas vertentes aparecem inteiramente dissociados: não só Pinho Vargas não se tem mostrado de modo nenhum adepto de qualquer modo de crossover – tendência hoje cada vez mais insistente em autores que integram nos seus processos composicionais os sedimentos de uma escuta conceptualmente mais ampla -, como também, e apesar do treino como pianista, inclusive académico, não é intérprete das suas próprias composições eruditas.
O que poderia à primeira vista parecer um caso bifacetado, para não dizer mesmo artisticamente de dupla personalidade, tem contudo outras implicações, a saber, uma aguda percepção teórica da historicidade e das diferentes inscrições sociais de práticas e formas musicais, e uma não menos aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical.
 
A noção de “pulsão”, ou mesmo de “pulsação” (no que isso supõe mesmo de uma relação imediata com o investimento físico e emotivo e com as interacções) tão importante no jazz, o beat, seja de periodicidades regulares ou irregulares, manifesta-se assim também como fulcral no seu trabalho de compositor contemporâneo. Ocorre assim falar a propósito da sua poética composicional de dispositivos pulsionais bem como, mais latamente, de uma problematização do sentir.
 
Intuitivamente também que o tenha sido, Pinho Vargas não deixou de absorver ao seu modo particular a influência de compositores que, tendo sido eles próprios pianistas, elaboraram uma escrita para o instrumento mais vincadamente também percutiva, motriz e “organicista” (nesse sentido físico e pulsional) como Prokofiev e sobretudo Bártok  - dado que aflora especialmente em Acting Out.
 
 
Retomando as inscrições iniciais de um discurso já autónomo que são Monodia – quasi um requiem e Noturno/Diurno, não menos curial é ter presente o que o autor escreveu sobre a primeira dessas peças: “Uso uma simples sucessão melódica e um gesto musical lírico e consonante – mas que prazer nestas palavras – como ponto de partida da peça. Ela é excessiva, tensa, às vezes quase insuportável. Escrevi uma pequena teoria do grito mas perdi o papel”. O gesto da liberdade, ou antes, da emancipação – e da emancipação enquanto constituição de um sujeito autor de discurso próprio – assinala-se na associação “lírico e consonante – prazer”, o segundo termo introduzindo assim também nos dispositivos pulsionais um princípio, o princípio do prazer precisamente, enquanto por outro lado se assinala “tensa[ão]/grito”.
 
É particularmente interessante notar que essas duas obras matriciais, que aliás têm relações muito próximas, evocam de modo quase irresistível o primeiro Schönberg, ainda proto-expressionista, e o do sexteto Noite Transfigurada e do Quarteto nº2.
 
Sabendo-se como Schönberg representou e representa o paradigma do que Richard Taruskin designou por “falácia poiética”, isto é, uma auto-legitimação do artista pela qual o mais importante da obra reside na sua própria feitura, nas marcas da autoria, concepção correlativa à hegelinização da história da música e dos atributos dos “heróis do seu devir progressivo” (e tanto mais “heróicos” quanto enfrentando hostilidade de recepção pública, como tão em particular no caso de Arnold Schönberg), uma tal aproximação numa perspectiva pós-moderna poderá ser surpreendente.
 
Mas, justamente, falamos de um Schönberg de algum modo ante-schoenberguiano, em termos de sistema e profetismo, em que particularmente se assinalam a “tensão/grito”, o proto-expressionismo mas seguramente em qualquer caso uma marcada expressão. A analogia profunda de Pinho Vargas com essa matriz é essa de expressão, nos termos de uma “stimmung” e mesmo de uma angústia (o grito), de uma “angst”.
 
Parafraseando e invertendo os termos do conhecido livro de Harold Bloom A Angústia da Influência, dir-se-á que de modo recorrente se encontra disseminada nas obras de Pinho Vargas – e certamente nas três incluídas neste disco, mesmo que por modos muito diversos – uma “influência da angústia”, como inerente ao sujeito, na sua personalidade e historicidade.
 
Daí também que nestas três obras, mais marcadamente – como é óbvio – nas duas que implicam explicitamente solistas, Acting Out e Six Portrait of Pain, disseminadamente em Graffiti [Just Forms] em particulares destaques instrumentais ao longo das suas secções, haja “dramatis personae”.
 
Não se trata apenas de um problema de estrutura, mas ainda de uma questão de sujeito, de sujeito do discurso, que se diria mesmo ontológica, com esta ressalva de não pouca importância: como está implicado no uso de um termo do vocabulário da psicanálise para título de uma peça, Acting Out, o indivíduo já é de si uma “dramatis persona” e um espaço de conflitualidade e tensões.
 
Se atentarmos à estrutura da obra, com as suas secções de “antecedentes” e “respostas”, e ao próprio jogo entre o piano e a percussão e destes com a orquestra, compreender-se-á a referência psicanalítica “na sua conexão com a transferência [do recalcado]".
 
Numa fase mais recente, Pinho Vargas incluiu na apresentação das suas obras um texto sobre “a melancolia física do artista”, com uma epígrafe colhida em Peter Sloterderjik: “não há apenas aprendizagem positivas...ao lado há também um verdadeiro curso de decepções”.
Esse texto não diz respeito à condição da pessoa, mas sim do “artista”. Por certo que, nessa afirmada consciência, nesse “curso de decepções”, ocorrem condições concretas – da percepção de “uma inutilidade da arte e da música no quadro do espaço tempo em que vivo”, afirma.
 
 
Six Portraits of Pain, para violoncelo e largo conjunto instrumental, encomenda da Casa da Música para a sua abertura pública, é a obra dessa inquietação, dessa dor tornada constituítiva à melancolia do artista (“Esta dor constitui-nos, esta dor é agora o nosso estado de espírito” – Thomas Bernhard). Mas não menos é a afirmação da possibilidade de, pela “coisa-em-si”, pela obra, ter uma experiência estética que também exista autonomamente do tempo e espaço das suas condições materiais de gestação, a possibilidade de uma suspensão e uma “ucronia”, para além do tempo.
 
 
Com os textos de outros, em diálogo “ucrónico” com eles, o que Pinho Vargas delineia é uma possibilidade de reinscrição do sujeito como matéria da própria música. É um trilho pessoal e no entanto próximo do de outros, em reconsideração dos paradigmas de inscrição do sujeito.
 
Não é fortuito que o compositor esclareça que o primeiro texto que escolheu e “de certo modo, o mais importante porque (me) lançou para a questão fundamental da liberdade de pensamento, da arte, da política e das diversas repressões que marcam as suas histórias” tenha sido colhido em A Filosofia Crítica de Kant, obra em que Deleuze nos situa na “revolução coperniciana” do filósofo alemão, a faculdade de conhecer como legislador, o primado do sujeito, a sua emancipação: Kant, pois, em vez de Hegel – e da hegelinização da história da música.
 
Six Portraits of Pain é um novo modo de ”acting”, introspectivo, não sem paralelos e também elucidativas dissemelhanças com o de Acting Out.
 
A obra não é apenas um diálogo entre o violoncelo e o conjunto mas tem também diversas “dramatis personae” que se destacam, sendo de realce o “concertino” que se forma entre o violoncelo e dois violinos.
 
A sonoridade grave e nobre do violoncelo, como também o uso do instrumento em toda a sua extensão, são particularmente vibrantes no “macro-retrato”, o percurso em que o sujeito se delineia afinal. E poderá parecer surpreendente, mas não tanto na tentativa de leitura que aqui se ensaia, que de novo surja nesta obra a reminiscência da Noite Transfigurada de Schönberg.
 
A estrutura de Graffiti [Just Forms] é diferente pela marcante presença de um acorde de base, qual risco inicial, impulsivo (ou, ainda, pulsional), do próprio gesto de grafitar. O “rasgo” desse acorde-gesto (“rasgo” como noutro momento “grito”) traz consigo os elementos potenciadores da forte saturação da obra. Sucede isso também porque, em analogia ainda com o gesto de grafitar, o compositor usa materiais de base relativamente esquemáticos, ou melhor dizendo, de “traço grosso”, para ir introduzindo outras possibilidades, de rupturas abruptas, de timbre, de registo, de sobreposições.
 
Depois de Acting Out, com as suas ressonâncias psicanalíticas, e do “acting in[ner]” melancólico de Six Portaits of Pain, Graffiti [Just Forms] é uma possibilidade de “re-enactment” tentando delinear uma mais lata homologia, considerando não apenas a historicidade dos materiais musicais mas também as condicionantes sociológicas de formulação de discurso no quadro concreto de uma situação semi-periférica como a de Portugal, com todas as suas limitações estruturais, que fazem de algum modo que as possibilidades dessa formulação possam ser Just Forms [Graffitis].
 
 
Augusto M. Seabra
 
 
Extractos do texto escrito para o livrete desde disco.

 

Dois concertos "austríacos" - II

 

 

Um Concerto para Thomas Bernhard

Obras de Mozart, Mendelssohn, Cerha e Pinho Vargas

Luís Lucas, Kurt Azesberger

Orquestra Metropolitana de Lisboa, Michael Zilm

CCB, 1 de de Dezembro de 2007, às 21h

 

 

 

“Há vinte e oito anos exactos havíamos morado em Leopolskron e estudado com o Horowitz, e (no caso do Wertheimer e no meu, não do Glenn Gould naturalmente) com o Horowitz tínhamos aprendido mais durante um verão completo, Verão em que chovera continuamente, do que durante os oito anos anteriores do Mozarteum e da Academia de Viena”.

 

O Náufrago

 

“Tanto quanto me lembro, não houve nada no mundo de que eu gostasse tanto como de música, pensei eu, olhando, através de Reger, para além do museu, para o interior da minha infância”.

Antigos Mestres

 

 

 

Ter como tópico organizador de um concerto um autor literário é facto que só usa suceder no “lied” e na “mélodie”, e mesmo nessa àrea até mais em disco que propriamente em recital. Realizar um concerto em torno de Thomas Bernhard (1931-1989), justifica-se plenamente pela importância da música na sua obra e na sua vida. Ainda assim, estava longe de ser uma proposta “evidente”, de tão “canónicas”, mesmo estereotipadas, que são as linhas de programação de concertos. Há pois, em primeiro lugar, de dar o devido realce à proposta do CCB – encerrando o ciclo dedicado ao escritor austríaco – e da OML, uma Orquestra que, aliás, vem apresentando, com um incompreensível pouco eco crítico, interessantes propostas de programação, já não falando agora de um trabalho de fundo.

 

Com tais premissas, terá também de aceitar-se que os modos de enunciação não tenham eles também sido “canónicos”, ou seja que, por exemplo, a Abertura “A Flauta Mágica” de Mozart tenho sido cortado por momentos de leitura de textos referentes à mesma (diga-se contudo que Luís Lucas, excelente “diseur” que é, esteve pouco à vontade nas funções de narrador).

 

Não menos é certo que Mozart – no caso a referida Abertura e a Sinfonia “Haffner” – não é exactamente o autor com quem Michael Zilm tem mais afinidades, ainda que, em “extra”, um número do “singspiel” Zaide, com o próprio Zilm, Lucas e o tenor Kurt Azesberger vocalizando de diferentes modos, tenha sido hilariante. Já interessante foi conhecer a abertura de outra “singspiel”, Die wandernden Komödiantenten/ Os Comediantes Ambulantes de Mendelssohn, anunciada como sendo em 1ª audição moderna – em Betão a personagem principal é um escritor que ambiciona escrever uma biografia de Mendelssohn.

 

 

Friedrich Cerha, compositor austríaco nasciado em 1926, é sobretudo conhecido por a ele se dever o acabamento do Acto III da Lulu de Alban Berg. Dir-se-ia impossível não recordar o facto ouvindo Bevor es zu spaet ist/ Antes que seja tarde para tenor e orquestra, sobre um texto de Derrubar Àrvores de Bernhard. Mas a obra maior de Cerha, convém também recordá-lo, é Baal, ópera sobre a peça do jovem Brecht, ainda “expressionista”. A clarissima herança berguiana em Bevor es zu spaet ist é a das aproximações “expressionistas” e até anteriores, a herança de Wozzeck, de Der Wein e mesmo dos Albenterg Lieder. Mas não se entenda a obra como epigonal, já que não menos se salienta, na força da sua expressão, um raro caso de correspondência musical ao universo inquieto, revolto e agreste do autor do texto.
 
O propósito de Pinho Vargas era de outro tipo, uma vez que, como desde logo o indica o título, a obra constrói-se sobre um texto declarativo, Um Discurso de Thomas Bernhard, pronunciado quando lhe foi entregue o Prémio Nacional de Literatura em 1967, discurso irado, na má-relação que foi a do escritor com a Àustria. A escolha do texto traduz também, por assim dizer, uma “radicalização” da aproximação por parte do próprio compositor neste seu “encontro”, aliás “reencontro”, com Bernhard.
 
Recordo que Pinho Vargas vinha a incluir na apresentação das suas obras um texto sobre “a melancolia física do artista”, com uma epígrafe colhida em Peter Sloterderjik, “não há apenas aprendizagem positivas...ao lado há também um verdadeiro curso de decepções”, e que em Six Portraits of Pain, a sua melhor obra dos últimos anos, um dos “retratos” era do de Thomas Bernhard - “Esta dor constitui-nos, esta dor é agora o nosso estado de espírito”. No texto deste Discurso, o “curso das decepções” é extremo: “Não há nada a dizer a não ser que somos lamentáveis. (...) Não somos nada e só merecemos o caos”.
 
As circunstâncias da encomenda acabaram por ser, ou se tornar duplas, uma vez que a obra é escrita para a mesma formação que a Sinfonia “Haffner”. Ocorria assim também um duplo risco: de a música se tornar envolvente ou sustentáculo da primazia de um discurso verbal e o da própria formação. Riscos esses que creio não inteiramente superados num aspecto: os “tutti” das cordas, numa escrita menos trabalhada que a dos sopros, não deixam de confirmar alguma propensão enfática que se vem notando em obras recentes de Pinho Vargas. Mas não menos é evidente que no fundamental há uma adequação entre os propósitos e a matéria, questão de “autenticidade”, para evocar o conceito adorniano que no caso creio de toda a pertinência.
 
 
P.S. – Na lista das obras de Thomas Bernhard publicadas em Portugal, incluídas no programa geral do ciclo do CCB, faltam as seguintes: O Fazedor de Teatro, tradução de Idalina Aguiar de Melo, Livraria Estante Editora, 1987; Betão, trad. Maria Olema Malheiro, 1989; Trevas, trad. Ernest Sampaio, Hiena, 1993. As omissões são tanto mais chatas quanto induzem uma certa parcialidade de referências editoriais. E aliás o discurso quando do Prémio Nacional está incluído em Trevas.