"Ir à ópera", mas sem pipocas
Ópera e cinema – 2
Ao contrário do que poderia supor, o “sonho da ópera” existiu bem cedo no cinema – e até desde os primórdios, mudos. Se, diz-se, o sonho de Edison (o “outro inventor” do cinema), premonitório do dvd, era reunir a imagem e o som, e desde logo fazer registos de ópera, o cinema fez apelo a vedetas da ópera, como Geraldine Farrar, e houve adaptações “mudas” de variadas óperas – por exemplo, e exemplo relevante, Robert Wiene, o realizador do Gabinete do Doutor Caligari, dirigiu também uma adaptação cinematográfica do Cavaleiro da Rosa, tendo o próprio compositor, Richard Strauss, feito um arranjo para música de acompanhamento – mas a esse tópico, histórico, da relação ópera-cinema, ainda voltarei.
Também houve, ainda antes da rádio, possibilidade de ouvir ópera à distância, via telefone, e em Portugal registou-se o caso do Rei D. Luís ouvir à distância no Palácio da Ajuda a ópera que decorria em São Carlos – é caso para dizer que a relação Ajuda-São Carlos vem de longe, bem antes das mais recentes vicissitudes em que um ocupante da Ajuda, e intendente-dirigista dos teatros nacionais, o prolixo Mário Vieira de Carvalho, patrocinar a extraordinária ideia de transmitir directamente do São Carlos a estreia da ópera Das Märchen, do seu compositor de estimação, Emmanuel Nunes.
Mas com a desgraça que se tem visto nessas bandas do São Carlos, é caso agora para nos perguntarmos se não estaremos antes ansiosos por ir ao Corte Inglês (o de Lisboa) ou a outro multiplex que tenha salas digitais ver transmissões directas de óperas do Met, de resto com a vantagem suplementar de nas transmissões directas de ópera desse mesmo Met sermos poupado ao nível de comentários que é usual na Antena 2. Afinal, quem sabe se não estará para breve? Desde que haja também patrocinadores…
Vindo da indústria discográfica, o novo intendente do Met, Peter Gelb, tem estado a operar uma verdadeira revolução de meios. Assim, a 30 de Dezembro de 2006, o Met fez a sua primeira transmissão directa para uma rede de salas digitais nos Estados Unidos e no Canadá, com uma Flauta Mágica em versão adaptada e em tradução inglesa, encenada por Julie Taymor, a realizador do filme Across the Universe – são dessa encenação as imagens acima.
A habilidade de Gelb foi também a de conseguir convencer as vedetas e os sindicatos a terem uma visão de futuro, enquanto por outro lado, negociava com a indústria discográfica – isto é, convencer os intérpretes a não solicitarem os aumentos de “cachets” que se poderiam esperar, fazendo-lhe notar que com estes registos em alta definição haveria rendimentos suplementares no futuro, já que a curto prazo se seguiria a edição em dvd. Por exemplo, o Evgueni Onegin com Renée Fleming e Dmitri Hvorostovsky “chegou-nos” tão “cedo” porque havia sido assim teledifundido. E falo em dvds, mas há também o novo e florescente mercado do “vídeo on demand”.
Confesso que, apesar de tudo, esta ideia da ópera, um espectáculo de sensações e emoções tão directas, ser à distância, me continua a suscitar alguma reserva – mas é um facto que a emoção do directo não deixa de passar na transmissão tecnicamente mediada. Acrescento, já agora, que um dos momentos mais emotivos de ópera que me sucederam em anos recentes ocorreu com a “Ópera ao Largo” que Paolo Pinamonti pôs em prática com o projecto do Anel do Nibelungo encenado por Graham Vick, e em concreto quando, na última récita do Ouro do Reno, os cantores, como que saídos do ecrã, vieram agradecer também ao público que tinha assistido à ópera no Largo de São Carlos.
Acrescento um outro receio, citando textualmente um título de um crítico do “New York Times”, Daniel J. Wakin: “The Multiplex as Opera House: Will They Serve Popcorn?”.
Mas o facto é que é vai havendo cada vez mais transmissões de ópera em alta definição, não só do Met, como também da ópera de San Francisco, que transmitiu nomeadamente Appomattox de Philip Glass – imagem abaixo.
São mais de 400 as salas de cinema dos Estados Unidos e Canadá onde ocorrem estas transmissões, e sendo outro dos objectivos de Gelb renovar o público de ópera, é de notar que a audiência já ultrapassou um milhão.
Curiosamente – mas talvez não sendo assim tão surpreendente – quem não aprecia muito a nova modalidade são os distribuidores de cinema, face a um novo e inesperado “rival” no seu próprio terreno.
Entretanto, o âmbito expandiu-se – desde o início que houve também transmissão para a Grã-Bretanha, a que se vieram acrescentar a Austrália, Nova Zelândia, Alemanha, Holanda, Dinamarca e, desde Abril, também a França. E entretanto, como se a tendência fosse inevitável, também a Royal Opera House de Londres e o Scala de Milão se põem em campo.
A sério, a sério mesmo: será que num futuro próximo passaremos a “Ir à ópera” por exemplo ao Corte Inglês em vez de ao São Carlos, para mais em decrepitude?
Desde que não haja também pipocas…