Cada realização concreta em concerto de uma obra musical é única, fruto das circunstâncias do momento e do carácter e intensidade da escuta directa. Podemos todavia reconhecer uma interpretação, tanto mais quando se trata de uma tournée promocional de um disco, como sucedeu com este recital em que Andreas Staier interpretou as Variações Goldberg. Acontece que houve uma diferença de vulto: o instrumento – o Dowd da Gulbenkian é completamente diferente do Sidey segundo Hass do registo discográfico, e este, como referido, é em particular fundamental à gravação de Staier.
Diga-se desde já que as diferenças foram bem audíveis e que o intérprete não se “entendeu” do modo mais coerente com o instrumento. Foi mesmo surpreendente a quantidade de notas erradas, o que diria inconcebível num intérprete da craveira de Staier.
Mas a concepção global foi evidentemente a mesma entre o disco e o recital. Staier insistiu nos contrastes e na variedade, fazendo uso muito prolífero e frutuoso do registo de alaúde, com ataques menos fulgurantes e tempos menos vertiginosos nalgumas variações, mas com um jogo digital e variabilidade agógica verdadeiramente impressionantes, alçando-se a um nível ímpar de magnificência na parte final, depois da tal célebre Variação XXV.
Se o seu disco é uma experiência pelas opções radicais, esta realização em recital, ainda que com as tais incompreensíveis notas falhadas, foi uma demonstração eloquente.
PS – Já que vieram à baila os concretos instrumentos, e sendo Staier exímio executante de cravo e também pianoforte, tendo sido ele que veio fazer a estreia do restaurado pianoforte Clementi de Queluz, noutra iniciativa do Em Órbita, e tendo sido ele também a fazer o primeiro recital de pianoforte na Casa da Música, ocorreu-me o recital inaugural do Dowd da Gulbenkian, com Kenneth Gilbert há quase 30 anos, e de novo se me pôs uma questão: quando é que a Fundação adquire um pianoforte?
Andreas Staier é um dos mais notáveis músicos actuais, intérprete inteligentíssimo e executante de excepção, virtuose exímio do cravo e do pianoforte. Para um cravista da sua craveira, fez-se longamente esperar a gravação do maior monumento escrito para o instrumento, as Variações Goldberg, o Clavierbüng IV. Quando as interpretou em 2000 em Queluz, no âmbito dos sempre saudosos Em Órbita / Portugal Telecom, e por interessante que a sua interpretação tenha sido, e foi, não deixou de se pressentir que faltava maturar uma concepção. Mas creio que nenhum de nós suporia que fossem precisos 10 anos para finalmente a gravação ser publicada.
Desde a Ária inicial pressentimos que este é um caso à parte. Evidentemente que na rica discografia da obra há um caso entre todos de excepção, as duas gravações de estúdio de Glenn Gould, aliás entre si tão diferentes de modo extremo. Mas se há Hantaï (outro caso de duas diferentes gravações), Lars Ulrik Mortensen, Koriolov, Perrahia, Scott Ross, Céline Frisch, etc., há que dizer que esta gravação é, de outro modo, também um caso à parte. Como é óbvio todas as grandes gravações são singulares, mas esta é radical nas suas opções.
Dir-se-á que há uma desconstrução da obra, e que embora a interpretação seja historicamente muito fundada (é ver e ouvir as explicações de Staier no dvd que acompanha o cd), é também resolutamente moderna. Não por acaso, a editora solicitou textos para o livrete, em concreto sobre a interpretação, a dois compositores contemporâneos, Isabel Mundry e Brice Pauset, e embora Staier respeite a letra e a forma da partitura ocorre-nos, como gesto, a orquestração por Anton Webern do Ricercare da Oferenda Musical.
Desde logo, esta interpretação soa diferente, e de que maneira! A razão está no instrumento, o exuberante, colossal e monstruoso cravo, com dezasseis pés, construído por Anthony Sidey segundo um modelo Hass de Hamburgo, de 1734 - Hamburgo 1734, assim se intitulava precisamente o espantoso recital com que Staier nos deu a conhecer o instrumento. Uma dúvida nos ocorre todavia: se o intérprete utilizou de novo o instrumento noutro magnífico recital, dedicado aos Early Works de Bach, é esse instrumento o mais adequado para uma obra, como as Variações Goldberg, que no entanto até lhe é mais próxima em termos cronológicos que os tais Early Works?
Captado de um modo a pôr em relevo a sua imensa sonoridade, de resto com uma ressonância dos baixos mesmo algo incomodativa, o instrumento tem uma variedade de registos que o aproximam do órgão, mas não sem que por vezes a clareza das vozes deixe de ser “esmagada”.
Com ataques clamorosos (Variação X, XVI), com uma variedade imensa de registos e de agógica, esta é uma interpretação monumental que atinge o paroxismo na célebre Variação XXV, que aqui nada tem do “espressivo” mais habitual, antes pelo contrário, num tempo lento sublinha esse carácter monumental, naquele que é o mais crítico ponto da interpretação.