Um disparate de maravilha
Ruínas da Igreja de S. Paulo em Macau
Confesso que nada sabia da iniciativa das “Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo” e da polémica que estava a suscitar até um dia destes ter sido contactado para um comentário por uma publicação. A iniciativa devia arrancar hoje com o voto simbólico do Presidente da República. A boa notícia, viemos a sabê-lo hoje mesmo, é que com tanta polémica foi afinal adiada. Se calhar a má notícia é que não foi pura e simplesmente cancelada.
A empresa promotora – porque há uma empresa promotora -, no fundo uma “produtora de eventos” como agora se usa dizer, era a mesma das “Novas Setes Maravilhas do Mundo”, que teve a sua final em Lisboa, em Julho do ano passado, que para o efeito criou mesmo um “label”, como se diz na indústria discográfica, a “New 7 Wonders Portugal”.
Lembram-se do choque que foi suscitado pelo concurso dos “Grandes Portugueses”, com o ditador Salazar em 1º lugar, e um homem de vocação também ditatorial, Álvaro Cultural, em segundo? Parece muito diferente, e de vocação cultural a iniciativa ora adiada, mas o princípio de base é exactamente o mesmo, o simulacro de uma democracia participativa, por via dos meios tecnológicos.
Já aqui tive ocasião de recordar que escrevi em tempos um texto, “Foi você que pediu uma democracia SMS?”, sobre a intrínseca perversidade das sugestões mediáticas dessa pretensa “democracia participativa” e os “inquéritos feitos” por jornais junto dos seus “leitores” – dos leitores que se dispõe a fazer militantemente a sua opção por meio da Internet, como é óbvio. E esse meu texto data de Novembro de 2002, bem antes portanto da celeuma provocada pela votação nos “Grandes Portugueses” – e nessa ocasião recordei também quão curioso achava que o mesmo método tenha sido “pacificamente” aceite como metodologia de outro análogo concurso, o das “Novas Sete Maravilhas do Mundo”, que até teve o patrocínio do Ministério da Cultura da Profª Pires de Lima, e mesmo um representante destacado em jeito de comissário por esse ministério, nada menos do que um dos bonzos do regime, o Prof. Freitas do Amaral, supondo-se que deveria mesmo ter sido motivo de “orgulho nacional” o facto da apoteose ter tido lugar em Lisboa!
Neste agora não falta outra vez a chancela do patrocínio do ministério da Cultura, mas também da própria Presidência da República. E claro que também há comissário, e olha quem!, nada mais que um bonzos acumuladores-mor do regime, o ex-ministro e ex-comissário europeu António Vitorino, dirigente do partido do governo, o homem que além de ter um programa de opinião no 1º canal da televisão pública, está também na situação, certamente única no mundo, de ser colunista num jornal, o “Diário de Notícias”, e ser membro do Conselho Editorial do concorrente directo, o “Público”, e que, não obstante não se lhe conhecerem particulares interesses culturais, foi também nomeado já por este governo para o Conselho de Administração da Fundação Vieira da Silva – Arpad Szenes, mais este comissariado agora – talvez em reminiscência pela sua passagem pelo governo de Macau.
A notícia do adiamento no “Público” de hoje dá suficientes pormenores da contestação por parte de historiadores e especialistas entre 22 bens entre os que figuram na lista do Património Mundial da UNESCO. Como fazem notar pessoas de reconhecida competência, como Pedro Dias (que esteve na origem da contestação), Paulo Varela Gomes ou Paulo Pereira, desde logo há critérios políticos na escolha da UNESCO, nas suas inclusões e exclusões, há bens em que a origem portuguesa é discutível e outros em que, sendo essa origem inegável, e que são de não menos inegável importância, não estão contudo incluídos. É curial citar nomeadamente a seguinte chamada de atenção:
“Paulo Varela Gomes, numa apreciação dos 22 bens, lamenta o excesso de lugares africanos, a maioria dos quais sem qualquer relevância monumental’, também ‘a abundância de cidades brasileiras’ e, em contrapartida, o facto de surgirem ‘apenas cinco sítios na Ásia’. E vê nisto o sinal de que a UNESCO ‘não tem achado politicamente correcto chamar a atenção ou assinalar o passado histórico mais ‘imperial’ dos portugueses. Por esta razão, diz este historiador (e Pedro Dias e Walter Rossa concordam), estão de fora da lista sítios especialmente relevantes na Índia, como Diu, Damão, Baçaim, Chaul ou Cochim. Outros bens ‘indesculpavelmente’ excluídos são Mombaça, no Quénia, Paraty, no Brasil, ou a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no Bangladesh. Para além de património nos países africanos de língua portuguesa, como a cidade velha de Santiago, em Cabo Vede, a cidade alta de Luanda, Angola, as roças cafeeiras de São Tomé e Príncipe ou a ilha de Ibo, em Moçambique”.
Mas se já tudo isto é contestável, e quanto, há de se perguntar, com redobradas razões, com que raio de conhecimento de causa iriam os votantes fazer por telefone, Internet ou sms as suas escolhas, como se pode aceitar qualquer espécie de decisão que seria ou será sempre consequência de redes mais ou menos de “lobby”?
Pois, da outra vez, a das “Nova Sete Maravilhas do Mundo”, o concurso encerrou com um espectáculo no Estádio da Luz com – horror! – Jennifer Lopez e tudo, que para azar da difusão e venda de direitos (porque para a “produtora de eventos” também disso se trata) calhou ter a concorrência do “Live Earth” patrocinado por Al Gore. Se calhar agora, para a data apontada do próximo 10 de Junho, já estavam a pensar em Nelly Furtado e outros luso-descendentes.
Como se pode atribuir qualquer seriedade a uma tal iniciativa? Como é possível que o ministro da Cultura e mesmo o Presidente da República “apadrinhem” tal iniciativa sem ter a noção de que culturalmente é uma fraude?
Mas, enfim, reconheça-se que a pretexto de património há um conceito de “cultura-espectáculo” (o mero conceito de concurso, desde logo) ao gosto do “show-off” da governação vigente. “Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo” não será mesmo um tema apropriado para um programa destinado aos “Magalhães”?