Cada realização concreta em concerto de uma obra musical é única, fruto das circunstâncias do momento e do carácter e intensidade da escuta directa. Podemos todavia reconhecer uma interpretação, tanto mais quando se trata de uma tournée promocional de um disco, como sucedeu com este recital em que Andreas Staier interpretou as Variações Goldberg. Acontece que houve uma diferença de vulto: o instrumento – o Dowd da Gulbenkian é completamente diferente do Sidey segundo Hass do registo discográfico, e este, como referido, é em particular fundamental à gravação de Staier.
Diga-se desde já que as diferenças foram bem audíveis e que o intérprete não se “entendeu” do modo mais coerente com o instrumento. Foi mesmo surpreendente a quantidade de notas erradas, o que diria inconcebível num intérprete da craveira de Staier.
Mas a concepção global foi evidentemente a mesma entre o disco e o recital. Staier insistiu nos contrastes e na variedade, fazendo uso muito prolífero e frutuoso do registo de alaúde, com ataques menos fulgurantes e tempos menos vertiginosos nalgumas variações, mas com um jogo digital e variabilidade agógica verdadeiramente impressionantes, alçando-se a um nível ímpar de magnificência na parte final, depois da tal célebre Variação XXV.
Se o seu disco é uma experiência pelas opções radicais, esta realização em recital, ainda que com as tais incompreensíveis notas falhadas, foi uma demonstração eloquente.
PS – Já que vieram à baila os concretos instrumentos, e sendo Staier exímio executante de cravo e também pianoforte, tendo sido ele que veio fazer a estreia do restaurado pianoforte Clementi de Queluz, noutra iniciativa do Em Órbita, e tendo sido ele também a fazer o primeiro recital de pianoforte na Casa da Música, ocorreu-me o recital inaugural do Dowd da Gulbenkian, com Kenneth Gilbert há quase 30 anos, e de novo se me pôs uma questão: quando é que a Fundação adquire um pianoforte?
Andreas Staier é um dos mais notáveis músicos actuais, intérprete inteligentíssimo e executante de excepção, virtuose exímio do cravo e do pianoforte. Para um cravista da sua craveira, fez-se longamente esperar a gravação do maior monumento escrito para o instrumento, as Variações Goldberg, o Clavierbüng IV. Quando as interpretou em 2000 em Queluz, no âmbito dos sempre saudosos Em Órbita / Portugal Telecom, e por interessante que a sua interpretação tenha sido, e foi, não deixou de se pressentir que faltava maturar uma concepção. Mas creio que nenhum de nós suporia que fossem precisos 10 anos para finalmente a gravação ser publicada.
Desde a Ária inicial pressentimos que este é um caso à parte. Evidentemente que na rica discografia da obra há um caso entre todos de excepção, as duas gravações de estúdio de Glenn Gould, aliás entre si tão diferentes de modo extremo. Mas se há Hantaï (outro caso de duas diferentes gravações), Lars Ulrik Mortensen, Koriolov, Perrahia, Scott Ross, Céline Frisch, etc., há que dizer que esta gravação é, de outro modo, também um caso à parte. Como é óbvio todas as grandes gravações são singulares, mas esta é radical nas suas opções.
Dir-se-á que há uma desconstrução da obra, e que embora a interpretação seja historicamente muito fundada (é ver e ouvir as explicações de Staier no dvd que acompanha o cd), é também resolutamente moderna. Não por acaso, a editora solicitou textos para o livrete, em concreto sobre a interpretação, a dois compositores contemporâneos, Isabel Mundry e Brice Pauset, e embora Staier respeite a letra e a forma da partitura ocorre-nos, como gesto, a orquestração por Anton Webern do Ricercare da Oferenda Musical.
Desde logo, esta interpretação soa diferente, e de que maneira! A razão está no instrumento, o exuberante, colossal e monstruoso cravo, com dezasseis pés, construído por Anthony Sidey segundo um modelo Hass de Hamburgo, de 1734 - Hamburgo 1734, assim se intitulava precisamente o espantoso recital com que Staier nos deu a conhecer o instrumento. Uma dúvida nos ocorre todavia: se o intérprete utilizou de novo o instrumento noutro magnífico recital, dedicado aos Early Works de Bach, é esse instrumento o mais adequado para uma obra, como as Variações Goldberg, que no entanto até lhe é mais próxima em termos cronológicos que os tais Early Works?
Captado de um modo a pôr em relevo a sua imensa sonoridade, de resto com uma ressonância dos baixos mesmo algo incomodativa, o instrumento tem uma variedade de registos que o aproximam do órgão, mas não sem que por vezes a clareza das vozes deixe de ser “esmagada”.
Com ataques clamorosos (Variação X, XVI), com uma variedade imensa de registos e de agógica, esta é uma interpretação monumental que atinge o paroxismo na célebre Variação XXV, que aqui nada tem do “espressivo” mais habitual, antes pelo contrário, num tempo lento sublinha esse carácter monumental, naquele que é o mais crítico ponto da interpretação.
Concerto para Cravo BWV 1056, Concerto para Dois Violinos BWV 1043,
Café Zimmermann
Gulbenkian, 7 e 11 de Março, às 19h
Os Concertos Brandeburgueses são uma das mais célebres obras de Bach e mesmo de toda a música da tradição erudita ocidental, e no entanto, na sua integralidade de colectânea, muito pouco ouvidos em concerto.
Tempos houve em que as grandes orquestras filarmónicas os executavam, mas a emergência da interpretação historicamente informada fez com que essa prática fosse abandonada. Mas, por outro lado, os agrupamentos com instrumentos de época raramente os têm preparados em reportório, por razões logísticas e, eventualmente, também de gestão: a variedade do instrumentarium exige um número considerável de executantes, vários para participaram apenas num concerto. Acresce que as características e duração da colectânea não são conformes aos padrões, ou melhor à rotina, da prática dos concertos públicos: são demasiado longos para um concerto, e de menos para dois. A solução mais genérica é de os interpretar em dois concertos, com mais duas obras. Foi isso que agora sucedeu na Gulbenkian com o agrupamento Café Zimmermann, dirigido pela excelente cravista Céline Frisch (entre outros discos, deve-se-lhe uma das melhores interpretações recentes das Variações Goldberg) e pelo violinista Pablo Valetti, grupo que foi buscar o nome ao local de Leipzig onde se reuniu o Collegium Musicum fundado por Telemann e que Bach também dirigiu durante alguns anos.
O século XVIII foi precisamente aquele de implantação dos cafés, como parte da civilidade do novo espaço público burguês. Outro sinal dessa consolidação do espaço público foi a maior mobilidade de informações e obras, fazendo emergir culturalmente a noção de “Europa”. Assim o modelo dos concertos grosso e solista espalhou-se pela Europa, com intermediação decisiva da edição das partituras em Amesterdão. Do conjunto de obras concertantes de Bach os Brandeburgueses, verdadeira apoteose do concerto grosso, foram os únicos explicitamente apresentados como uma colectânea, dedicado ao Margrave de Brandenburgo, e se bem que anteriores ao período de Leipzig há grande probabilidade de terem sido executados isoladamente (cada um dos seis concertos, entenda-se) no Café Zimmermann.
Fazendo jus ao seu nome, o grupo de Frisch e Valetti teve a particularidade de os gravar não como colectânea, mas num conjunto de discos com outros concertos, quatro pelo menos até ao momento, de “Concerts avec plusieurs instruments” de Bach. A excelência das gravações recomendavam o agrupamento mas o que em concreto se ouviu na Gulbenkian foi no mínimo muito decepcionante, só pontualmente convincente mas também por vezes francamente desastroso, de tal modo que coloca questões que sendo em concreto sobre o grupo, são mais genéricas.
Nada substitui a emoção da escuta em directo, mas o disco constitui um meio privilegiado de conhecimento, não só pela sua difusão, como por ser feito com a proximidade sonora adequada, e com diversas tomadas de som até se obter a satisfatória e depois a sua montagem. Acresce que os instrumentos de época têm um som menos volumoso para as actuais salas de concerto, e são mais passíveis de problemas de (des)afinação, e também que se alguns deles têm uma actividade permanente e uma formação regular, muitos constituem-se e reconstituem-se ad hoc – por isso aliás se verifica que haja um número significativo de músicos pertencentes a mais que uma formação.
O inusitado facto de as apresentações terem decorrido com quatro dias de intervalo (com outro momento bachiano, as Goldberg por Andreas Staier, de permeio), é sintomático de que o Café Zimmermann não estava em digressão, e que o programa tinha sido menos rodado, feito expressamente para as apresentações na Gulbenkian. Mesmo assim é inadmissível a falta de vigor patenteada, o som empastelado (o pior foi o Sexto Concerto) e as desafinações, como as notas erradas e a falta de notas da trompete no Segundo Concerto, e sobretudo, escandalosa mesmo, a constante desafinação do solista, concertino e co-director Pablo Valetti.
Houve alguns momentos melhores, devidos sobretudo ao jogo e direcção de Frisch, no Concerto para Cravo, em fá menor, BWV 1056 (destreza digital, belos arpejos) e Quinto Concerto Brandeburgês que tem uma parte solista para o instrumento muito desenvolvida. Mas no global, como disse, esta ocasião, aguardada com tanta expectativa, foi no mínimo muito decepcionante, por vezes mesmo francamente desastrosa.
Katharine Fuge, Robin Tyson, Steve Davislim, Stephen Loges (cd1)
Joanne Lunn, Daniel Taylor, Paul Agnew, Panajotis Iconomou (cd2)
Monteverdi Choir, English Baroque Soloists, John Eliot Gardiner
Cds Soli Deo Gloria, dist. CNM
Como se sabe, a integral das cantatas litúrgicas de Bach por Gardiner, em curso de edição, é o registo de um projecto único na sua desmesura: em 2000, nos 250 anos da morte do compositor do compositor, mais exactamente desde o dia de Natal de 1999, Gardiner e os seus músicos efectuaram uma peregrinação que não se limitou aos locais que tinham sido os do compositor, na Turíngia e na Saxónia, mas foi mais vasta, tendo inclusive passado pelo Porto, e concluindo-se em Nova Iorque.
As cantatas foram interpretadas no dia do calendário litúrgico a que se destinavam, e esse acto foi, diz Gardiner, a “raison d’être” do projecto. Mesmo que novos dados de edição tenham sido utilizados, não se tratou de maneira nenhuma de um projecto eminentemente musicológico – aliás, desde logo, e ao contrário dos princípios filológicos admitidos, Gardiner sempre usou coro misto, o seu Monterverdi Choir, nas interpretações bachianas.
Gardiner pretendia também captar a emoção de um concerto, mesmo que por razões de segurança as gravações fossem de facto efectuadas imediatamente antes – supondo-se contudo que o fulgor de uma noção de urgência ficasse registado. Mas um tal desmesurado projecto foi – e é no seu eco discográfico – forçosamente irregular, desde logo pela constante mudança de solistas. Acresce que, como podemos verificar, a qualidade das gravações em si mesmas não é brilhante.
Quem não esteve pelos ajustes foi a editora na qual Gardiner era no entanto uma das cabeças de cartaz, a DG/Archiv: alguns volumes ainda saíram com esse selo, mas depois veio a ruptura e Gardiner criou a sua própria editora, Soli Deo Gloria. Mas, já agora, também não se percebe muito bem a ordem de publicação dos volumes, como se pode verificar pelos presentes.
O vol. 23 reúne cantatas para o Primeiro Domingo depois da Páscoa, Nach dir, Herr, verlanget mich, BWV 150, Halt im Gedächtnis Jesum Christ, BWV 67, Am Abend abr desselbigen Sabbats, BWV 42 e Der Firied sei mit dir, BWV 158, e para o Segundo Domingo Depois da Páscoa, Du Hirt Israel, höre BWV 104, Ich bin ein guter Hirt BWV 85 e Der Herr ist mein getreuer Hurt, BWV 112; o vol. 3 cantatas para o Quarto Domingo depois da Trindade, Ein ungerfärbtGemüte BWV 24, Barmherzigges Herze der ewigen iebe BWV 185 e Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ BWV 177 e para o Quinto Domingo Depois da Trindade; Gott ist mein König BWV 71, Aus der Tiefen rufe ich, Herr, zu dir, BWV 131, Wer nur lieben Gott lässt walten, BWV 93 e Siehe, ich will viel Fischer aussenden BWV 88; o vol. 25 cantatas para o Quinto Domingo Depois da Páscoa, Wahrlich, wahrlich, ich sage euch BWV 86, Bisher habt ir nichts gebeten in meinen Namen BWV 87, In allen meinen Taten, BWV 97, e para o Domingo depois da Ascensão, Sie werden euch in den Bann tun I, BWV 44, Nach dir, Herr, verlanget mich, BWV 150 e Sie werden euch in den Bann tun II e ainda um moteto de Johan Christoph Bach (primo) Fürchte dich nicht.
Por esta altura da peregrinação, em termos discográficos, as características estão já suficientemente definidas, e dir-se-ia que o termo que o termo que ocorre é o de "graciosidade", mesmo de certo modo “brilhantismo”, mas em modos mais profanos que em rigor litúrgicos: Gardiner está no seu melhor em cantatas festivas como a BWV 71, no vol. 3, sempre que o ritmo é de dança, ou nos coros fugados. Paradoxo maior para um projecto de cantatas, são as cores dos English Baroque Soloists que sobressaem, às vezes os oboés, outras as flautas, outras ainda, mais raras, as trompetes, mesmo nalgumas ocasiões as cordas, e imagine-se que no Monterverdi Choir as vozes femininas, filologicamente desajustadas, se sobrepõem às masculinas.
O vol. 3 é um dos melhores já publicados e não necessariamente pelos nomes mais sonantes de solistas – de facto Kozená até se apresenta com falta de fôlego e Stutzman com algumas inflexões amaneiradas, embora sempre impressionante de timbre. Mas há um notório dramatismo e esplendor, sobretudo na BWV 24, os tenores Agnew e Von Rensburg são pertinentes e o baixo Harvey mesmo eloquente.
Em contrapartida, o vol. 23, pesem ainda os belos momentos do cd 1, como os coros finais da cantata BWV 150, ou as interpretações do baixo Stephen Vercoe ao longo do volume, é arruinado pela flagrante mediocridade do contratenor Norbert Towers e do tenor Norbert Meyn no cd 2.
São ainda os desequilíbrios dos solistas que marcam o vol. 25, no cd1, com uma sofrível soprano, Katharine Fuge, e um surpreendente tenor (e surpreendente neste reportório), Davislim, no cd 1, enquanto no 2 Daniel Taylor e Agnew são excelentes.
Tudo ponderado, o vol. 3 é das melhores introduções às características desta integral de Gardiner.
Carolyn Sampson, Robin Blaze, Gerd Türk, Peter Kooij
Bach Collegium Japan, Concerto Palatino, Masaaki Susuki
Sacd Bis
Cantatas vol. 38
Ich habe genung
Cantatas 52, 55, 58, 82
Carolyn Sampson, Peter Kooij, Gerd Türk
Bach Collegium Japan, Masaaki Susuki
Sacd Bis
A seu tempo, a integral das cantatas litúrgicas de Bach dirigidas por Nikolaus Harnoncourt e Gustav Leonhardt na Telefunken (e recentemente reeeditada numa única caizxa) foi uma ousadia inaudita, o maior projecto da história da produção discográfica. Agora, proliferam os ciclos de integrais.
Ouçam-se Gardiner e Koopman, preste-se sobretudo atenção ao mais recente Sigiswald Kuijken, mas é sabido que o ciclo que se tem mostrado consistentemente a mais alto níveis é o Bach que vem do Japão!
Estes são os dois mais recentes volumes, ou quase – pois para ser exacto já foi também editado o 40, todavia ainda não disponibilizado no mercado português. E tome-se bem nota na sua identificação ao número, já que, incrivelmente, ou por falta de imaginação no princípio único de apresentar como capa uma foto de Susuki, pois no caso elas são idênticas.
O vol. 38 compõe-se de cantatas a solo, Falsche Welte, dir trau ich nicht, BWV 52, para soprano, a célebre Ich habe genung, BWV 82 para baixo, Ich armer Mensch, ich Sündenknecht, BWV 55, para tenor e Ach Gott, wie manches Herzeleid, BWV 58, para soprano e baixo. Um tal programa tem desde logo uma dificuldade, Ich habe genung precisamente, obra indelevelmente marcada pela maravilhosa gravação de Max von Egmond, dirigida por Franz Brüggen, com Brune Haynes no oboé. Peter Kooij é, como é usual, notável, mas está longe, muito longe, de se equiparar. Também o outro cantor que tem vindo a ser peça fundamental do ciclo, o tenor Gerd Türk mostra-se mais ágil que propriamente inspirado na BWV 55. Resta Carolyn Sampson. Ela é absolutamente radiosa na BWV 52, que de resto, logo desde a sinfonia inicial, é a única cantata deste registo em que por inteiro se reconhecem os mais altos valores que têm norteados a integral Suzuki, com o seu sentido da declamação e da articulação, a agilidade rítmica e a fluência. Mas Sampson decepciona também pela falta do fervor pietista na ária “Ich bin vergnügt in meinem Leiden” da BWV 58.
De outro nível é o vol. 39 – isto, apesar de neste termos de novo de aturar (pouco, felizmente), esse caso incompreensível que é o do contra-tenor Robin Blaze, exemplo do que a escola britânica pode ter de mais insuportavelmente amaneirado.
Estes volume reúne cantatas escritas em 1725, Also hat Gott die Welt geliebt, BWV 68, Er rufet seinen Schafen mit Namen und führet sie hinaus, BWV 175, Gottlob! num geht das Jahr zu Ende, BWV 28 e Sie werden euch in den Bann tun, BWV 183.
Exceptue-se pois Blaze, e diga-se que neste disco Suzuki renova a sua capacidade de beleza sonora, o sentido rítmico e a invenção do contínuo, o fervor do coro. Em particular admirável é a cantata inicial, a BWV 68, com um magnífico coral de abertura e a virtuosidade da ária para soprano “Mein gläubiges Herze”.
A ter de fazer escolhas nesta integral – que, repito, é daquelas em curso, a que mais persuasivamente se impõe no seu projecto de “integral”- este vol. 39 é por certo um dos que cabe reter.
Além dos discos, houve outro registo que foi muito importante para o dar a conhecer, A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach,filme de Jean-Marie Straub. Interpretar Bach nesse filme foi uma experiência importante na sua vida?
Bem, isso seria exagerado. Estava curioso de saber como se fazem filmes e esse caso foi excepcional, porque a música foi gravada na própria filmagem. Straub viu isso muito bem, é um elemento essencial. Mas nunca me senti como Bach; fui escolhido porque em parte fazia a mesma coisa que Bach, tocava cravo e órgão e dirigia.
Quando decidiu que a música era a sua vocação?
Bah!, isso é uma ideia romântica, mas acho que foi por volta dos 15, 16 anos.oo
Mas há um processo muito concreto de escolher um instrumento.
Acho que foi sobretudo Bach que me atraiu para a música e com Bach veio o cravo e o órgão. Depois vieram todos os outros compositores do tempo de Bach e de antes, e alguns, poucos, de depois. O meu pai era vice-presidente da Sociedade Bach na Holanda e levava-me aos ensaios, quando eu teria uns 9 ou 10 anos, ou a ouvir as Paixões.
Houve um momento em que você, e outros implicados no mesmo processo, tiveram a noção de que precisavam de procurar os instrumentos certos, "de época". Quando é que isso se tornou óbvio?
De facto, mais tarde do que deveria. Envergonha-me dizer que as primeiras gravações que fiz, em meados dos anos 50, da Arte da Fuga e das Variações Goldberg foram feitas com maus instrumentos, historicamente de todo inadequados. Foi só no final dos anos 50 que tive a revelação de cravos antigos - "Deus do Céu, isto é que é um cravo!", a maneira como soavam. Em Basileia, estudávamos tudo sobre os ornamentos e temperamentos, tudo muito científico, mas esquecíamo-nos de como soar - muito estranho.
O grande projecto que deu impacto ao movimento foi a gravação integral das Cantatas de Igreja de Bach dirigidas por si e Harnoncourt. Como as cantatas foram escritas para específicas ocasiões litúrgicas, alguma vez pensou que poderiam estar a fazer uma "profanação" dos propósitos?
Não. Claro que, se em Novembro se gravava uma cantata para a Páscoa, se tinha que pensar em termos da Páscoa. Mas, por outro lado, ficámos muito menos constrangidos por não ter que estar ao longo de um ano a gravar todas as cantatas de acordo com as ocasiões do calendário para as quais foram escritas. Agora não: se me pedem para dirigir a Paixão Segundo S. Mateus em Agosto, não - só aceito fazê-la na semana antes da Páscoa. Os discos são diferentes, mas aos concertos as pessoas devem acorrer para compreender o que Bach queria dizer, a sua fé.
E os que não têm essa fé?
Não quero julgar, não posso.
Mas sabe certamente que há muitos auditores que não têm essa fé e, no entanto, são tocados pela música de Bach.
Isso é maravilhoso, mas talvez estejam influenciados pelo que considero a minha fé, e a de Bach, sem se darem conta disso. Há algo, o espírito paira.
Mas então, sendo a sua fé calvinista, não segue estritamente os propósitos de Bach, que era luterano.
Bem, esse ponto é importante. Acredito que há música religiosa que não tem que ser só para os serviços litúrgicos. Nesses também há música, mas não é o único elemento. A música apela aos sentidos, mas num serviço litúrgico, mesmo quando há música, os sentidos devem ser excluídos. Mas, lá está, o espírito religioso pode influir num compositor quando escreve música.
Com as suas convicções calvinistas, como se sente quando de si se diz que é "o Papa" da música antiga. Como se sente?
(Risos) É errado em todos os sentidos. Para os católicos, o Papa encarna o poder do espírito, a verdade da fé, o que é uma coisa que eu não posso compreender. Em música, eu não quero ditar nenhuma ideia, não penso que tenha a verdade. Não penso que os outros devam fazer o mesmo que eu, têm que descobrir o caminho por eles.
Mas claro que tem a noção de que foi um dos pais fundadores.
Não, não tenho nada. Não sou o único.
Eu dizia, um dos...
Bom, está bem.
Tem a noção que o que realizou foi mesmo uma revolução?
Bem, uma revolução é uma coisa muito agressiva, e eu não o sou nada. Nunca foi o
meu objectivo mostrar que os outros estavam errados. Apenas me fascinou olhar para obras antigas, descobrir a teoria em volta, fazendo-o de uma maneira talvez diferente, aquela em que eu acredito, mas nunca me dei conta de nenhuma ideia revolucionária, de todo. Se outras pessoas gostavam do que eu fazia, tanto melhor, mas só isso.
Mas será então um conservador?
Não sei o que isso é. Gosto de conservar as boas coisas e mudar as más.
Não vê o risco de as revoluções devorarem os seus próprios filhos?
Boa questão! Não digo devorar, mas já começa a atingir alguns. Esta música já se tornou tão popular e muitos músicos são atraídos por ela por saberem que está em grande procura. E tocam com instrumentos que não são de época, ou sem o espírito. É que já se pode ganhar a vida tocando barroco. Também há passos em frente - Harnoncourt, dirigindo orquestras modernas, deu pequenos passos, consciente do facto de que o seu próprio conjunto é melhor, porque os instrumentos são apropriados. É um passo de transição. Mas há tantos músicos agora que não têm a experiência e são superficiais. E assim são um pouco devorados os filhos da revolução…
Incomoda-o saber que hoje o barroco está tão na moda?
Bem, também é maravilhoso. Não estou incomodado.
As obras nos seus discos vêm até Scarlatti, os filhos de Bach e num caso o jovem Mozart. É o que está para trás que é o seu mundo?
Em música e em arte, absolutamente sim. Quando se faz da arte o modo de vida, tem que se escolher um campo. E como eu escolhi os instrumentos de tecla (embora também tenha tocado violoncelo), naturalmente que me limitei ao órgão e ao cravo. E quando se faz a escolha, com os instrumentos vem a concentração num dado período, que é suficientemente longo. Para mim, são 200 anos, mas com que variedade, quase impossível de albergar, de Sweelinck a Wilhelm Friedmann Bach! É tanto em arte!
Extractos de uma entrevista no “Público” de 29-03-03
Obras de Louis Couperin, Froberger, D’ Anglebert, Rameau
Igreja de São Pedro de Rates, Festival da Póvoa do Varzim, 27 de Julho
Lembro-me de há anos ter lido numa revista uma caracterização sumária, ou tendencial, entre os dois grandes mestres das novas concepções interpretativas da música barroca: Nikolaus Harnoncourt seria sobretudo um intérprete da acentuação, Gustav Leonhardt da articulação. Nunca deixei de recordar essa caracterização, tanto mais que ao longo dos anos ela me foi parecendo mais pertinente.
Leonhardt, o “calvinista”, o “homem do “Norte”, o “severo”, é antes de mais um intérprete da absoluta fidelidade ao texto, mas também da convicção que é necessário para fazer do texto Verbo, isto é, música.
A noção de “prazer” é-lhe alheia (e, no entanto…), e o seu jogo digital não tem aquele sentido físico e eminentemente táctil que se encontra nalguns dos cravistas que vieram depois dele, um Ton Koopman ou um Pierre Hantaï, e que às vezes os tornam tão próximos dos pianistas de jazz.
Mas esse jogo digital tem uma capacidade de articulação, de dinâmicas vivas e precisas, de subtis mudanças de tempo, que realizam superlativamente as diversas linhas da polifonia, e sugerem a seu modo uma arte da conversação, mas também de um tempo ora rápido ora, dir-se-ia, em “longue durée” – a especial dimensão, estaria tentado a dizer que a “metafísica” desta arte interpretativa, foi aliás bem patente, neste maravilhoso recital no quadro ímpar da Igreja Românica de São Pedro de Rates, nas sarabandes e chaconnes, na Gaillard (lentement) da Suite em Sol Maior de D’Anglebert, numa extraordinária Toccata 3 de Froberger, e, obviamente, finalizando o concerto em extra, na 25ª das Variações Goldberg de Bach, do entre todos amado Bach, momento prodigioso do jogo dos dois teclados, momento sublime dessa dimensão “metafísica”.
Mas, no entretanto, houve Rameau, e Jean-Philippe Rameau é por excelência o compositor de uma “estética do prazer”. Mas a subtileza da arte de Leonhardt é suficientemente flexível e ampla para que, ainda que fosse notório o corte com o restante reportório, precedente no programa do recital, a articulação e o sentido vivo e preciso da dinâmica e dos tempos nos transmitisse todo o requinte de Les tendres plaisirs (et voilá!) ou Entretien des Muses.
A música será para Leonhardt um modo de “re-ligação” mas, de modo mais profano, não deixa de ser também uma conversação com as musas. É efectivamente uma arte magistral.
Gustav Leonhardt no papel de Johann Sebastian Bach em
“A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach” de Jean-Marie Straub
Quanto Richard Wagner finalmente concretizou o seu projecto dramatúrgico em Bayreuth, uma nova noção de festividade surgiu, e de toda a Europa passaram a aí acorrer os “peregrinos” fazendo Le voyage artistique à Bayreuth, nos termos do título do relato de Albert de Lavignac.
Sem dúvida que os principais festivais têm em princípio possibilidades de excepção – justamente por serem “de excepção”, a regra sendo as temporadas regulares – mas pela sua própria massificação perdem muita desse conceito “cultual” ou ritual de festa e festividade artística; nesse sentido, para ter noção do que são de facto festivais como ambientes “de excepção” à antes que rumar para Avignon ou Edimburgo, festivais predominantemente de teatro, ainda que o segundo, conhecido sobretudo naquela qualidade, seja ainda mais “único” pela sua interdisciplinaridade, teatro, música, dança e cinema.
O “turismo cultural” – porque é disso que agora se trata gera a lógica do “marketing” e a esse respeito nada é mais nesta nossa sociedade hiper-mediatizada do que prenunciar-se um escândalo – e não é que, por exemplo, e exemplo do próprio dia de hoje, já se anuncia que o Don Giovanni encenado por Claus Guth em Salzburgo vai ser um “escândalo”?!
Que nos fiquem registos de festivais é precioso, que eles sejam audiovisuais sobretudo no caso da ópera tem toda a pertinência, mas não se venha travestir de “democratização” certos desses novos meios de difusão, como agora via Internet, que são os da banalização mercantil, longe de qualquer aura.
Acontece que – obsessão minha – ainda acho que a ideia artística e cultural de “peregrinação” é importante. Rilke e as Elegias foram-me razão de ir conhecer Duíno, como Svevo e Cláudio Magris me introduziram a Trieste, como Kafka me suscitou uma percepção de Praga (como a tanto outros Bernardo Soares lhes deu uma “imagem” de Lisboa, e lhes suscitou um desejo), como posso pacientemente entrar no Louvre para depois ir apressadamente contemplar de novo a Vitória de Samotrácia.
Há em Portugal um evento – feliz ou infelizmente não tão divulgado como se justificaria – que justifica esse conceito de “peregrinação”: o concerto, um e único, no programa anual do Festival de Música da Póvoa de Varzim que se realiza na Igreja Românica de São Pedro de Rates.
Este ano, amanhã às 21h45, há razão redobrada para a “peregrinação” e a expectativa: este ano o concerto é um recital de Gustav Leonhart, com 80 anos feitos a 30 de Maio, um músico de quem somos devedores como de muitos poucos, pelo modo como profundamente renovou os princípios interpretativos e a nossa percepção da música barroca, de Bach sobretudo – e se, como disse Nietzsche, “a vida sem música seria um erro”, sem Bach então seria ainda mais desesperançada.
Não há peça de Bach no programa de amanhã, mas Froberger e os mestres da escola cravística francesa, Louis Couperin, D’Anglebert, Gaspard Leroux e Rameau, são um reportório de eleição de um tal mestre.
Nesta era em que rareia a intensidade, hic et nunc, da aura da obra de arte, ir a São Pedro de Rates ouvir Gustav Leonhard, supremo músico e um dos expoentes do espírito europeu, neste ano em que se lhe prestam todas as homenagens, é ainda a possibilidade artística “cultual” de uma peregrinação.
Natalie Dessay, Karine Deshayes, Philippe Jaroussky, Toby Spence, Laurent Naouri
Le Concert d’Astrée, Emmanuelle Haïm
Virgin/EMI
Coisa de todo diversa do anterior é este disco. Eis outro caso de marketing discográfico, puro caso de marketing discográfico mesmo. Bach+Haendel, duas célebres composições, o Magnificat e o Dixit Dominus, o agrupamento barroco de serviço na Virgin e outro (quase) “all- stars cast” que também vai sendo recorrente na editora.
E para quê? Realizações pesadas e empasteladas, de sofrível articulação e coro, de uma mediocridade geral em que se salvam o virtuosismo de Jaroussky e, com alguma surpresa diga-se, mas pela notável versatilidade e agilidade, a Dessay, em que se dois cantores de reconhecidas qualidades, Spence e Naouri (este uma vez mais vindo parar a um disco com a esposa Dessay), se integram problematicamente, e em que quanto à única solista sem renome, Deshayes, melhor seria terem-nos poupado.
Note-se que o Dixit Dominus é uma obra do período romano de Haendel, em que conheceu e assimilou as obras de Corelli e Alessandro Scarlatti – Andrew Parrott propôs mesmo umas hipotéticas Vésperas Carmelitanas (Virgin) só com obras de Haendel, incluíndo como é óbvio o Dixit Dominus. Mas dessa concreta obra nunca é possível esquecer a extraordinária gravação de Gardiner com o Monteverdi Choir em 1977, gravação ainda com os intrumentos tradicionais da então designada Monteverdi Orchestra, antes da formação dos English Baroque Soloists com instrumentos de época, realização de um virtuosismo e esplendor vocais incomparáveis (inclusive o “remake” do próprio Gardiner não atinge tais níveis), disco Erato que ainda se encontra a preço económico – e um dos grandes registos haendelianos e, a meu ver, uma das extraordinárias gravações de uma obra coral.
E quanto ao Magnificat, há dois grandes paradigmas interpretativos, em tudo contrastantes: a exuberância festiva quase teatral de Gardiner, com a Cantata BWV 51 “Jauchzet Gott in allens Landen”,e o fervor filo-pietista de Herreweghe, numa coplagem em especial coerente com a Cantata BWV 80 “Ein fest Burg ist unser Gott”.
“Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne” [“Tauerode –‘Lass, Fürstin’”]
Prelúdio e Guga BWV 544, Missa BWV 234
Katharine Fuge, Carlos Mena, Jan Kobow, Stephan MacLeod
Francis Jacob
Ricercar Consort, Philippe Pierlot
Mirare, dist. Harmonia Mundi
Pesem ainda algumas qualidades, e mesmo o interesse musicológico da proposta, todavia concretizada de modo incipiente, este disco não deixa também de merecer uma particular chamada de atenção por motivos que vão sendo “representativos” mas não dos mais lisongeiros.
As práticas musicológicamente fundamentadas da “nova música antiga e barroca” têm também conduzido ao uso e abuso das operações de “reconstituição”, nomeadamente em disco. E assim sucede por vezes assistirmos mesmo a cenas caricatas de distribuidores e vendedores a clamar “premième mundial!, première mundial!”, quando não se trata de mais que outra designação, outra embalagem, ou quanto muito outra hipótese, para obras bem conhecidas.
Olhando para a capa deste disco, o seu modo de apelo público, alguém pode perguntar: “Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne”?! Um inédito de Bach, pelo menos um inédito discográfico?!
Pensando um momento, para quem minimamente conheça, não será difícil contudo identificar a obra, a célebre Ode Fúnebre, “Lass, Fürstin”. Christiane Eberhardine de Branderburg-Bayreuth permaneceu fiel à Igreja Reformada e retirou-se quando o marido, o Eleitor Frederico Augusto I da Saxónia, se converteu ao catolicismo, condição “sine qua non” para ser proclamado Rei da Polónia – e circunstância na origem de Bach ter escrito para a côrte de Dresden a sua grande obra de rito latino, a Missa em si menor.
Quando a princesa morreu, um serviço fúnebre em sua homenagem realizou-se na Igreja de São Paulo da Universidade de Leipzig. Se é certo que “Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne” é a indicação constante no manuscrito de Bach, pois que o francês era a língua culta, não menos se deve considerar elementar que uma obra seja identificada nos termos em que é devidamente conhecida.
De resto, o interesse da proposta está propriamente na hipótese de reconstituição. Um dos grandes estudiosos de Bach, Gilles Cantagrel, que também assina as notas do livrete, tinha colocado a possibilidade de um nexo entre o Prelúdio e Fuga BWV 544 e a Ode, de resto ambas na tonalidade de si menor. Os testemunhos referindo que uma peça de orgão foi tocado no início do ofício e outro no fim, a hipótese estabelecida neste disco é que foram os referidos Prelúdio e Fuga, sendo ainda interpolada outra peça de orgão entre a primeira e a segunda partes da Ode, correspondente ao momento em que na cerimónia terá ocorrido propriamente a oração fúnebre. A anteceder figura uma das quatro breve Missas, apenas com “Kyrie” e “Gloria”, de acordo com uma prática conservada na liturgia reformada.
“Hèlas, hèlas, hèlas!”. O debate sobre “o coro de Bach”, depois das teses minimalistas de Joshua Rifkin, tem agitado as hostes musicológicas como nenhum outro – ou antes, só como as polémicas em torno de Chostakovich, subsequentes ao discutível Testemunho publicado por Solomon Volkov. Mas nem vale a pena citar os argumentos em confronto perante a manifesta evidência de que este coro de quatro solistas se abeira da indigência, e que o mesmo cabe dizer das intervenções individuais, excepto um momento de Graça particularmente dolorosa: a ária de contralto com violas “Wie starb die Heldin” por Carlos Mena – e o contratenor revelou-se, recorde-se, quando da primeira Festa da Música em Lisboa, em 2000, cantando Bach com este mesmo Ricercar Consort, e recorde-se também que a Mirare é a editora entretanto criada por René Martin, director artístico do evento entretanto “expulso” do CCB.
A qualidade da realização instrumental, do orgão solo de Francis Jacob e das flautas de Marc Hantaï e Georghes Barthel em particular, é inegável, mas insuficiente perante a manifesta inépcia da concepção e escolhas vocais.
E, para além disso, é incómodo verificar uma vez mais que são pequenas editoras independentes, e sobretudo votadas ao barroco e à música antiga, que optam por estratégias de marketing discográfico alardeando uma novidade que quanto muito é relativa, e em todo o caso sem a probidade suficiente nos seus modos de apresentação pública.
Quanto à Tauerode -‘Lass, Fürstin’, por mim continuo fidelíssimo a uma interpretação que se me afigura uma das escolhas mais salientes na discografia de Bach, a de Philippe Herreweghe, na Harmonia Mundi.