Cada realização concreta em concerto de uma obra musical é única, fruto das circunstâncias do momento e do carácter e intensidade da escuta directa. Podemos todavia reconhecer uma interpretação, tanto mais quando se trata de uma tournée promocional de um disco, como sucedeu com este recital em que Andreas Staier interpretou as Variações Goldberg. Acontece que houve uma diferença de vulto: o instrumento – o Dowd da Gulbenkian é completamente diferente do Sidey segundo Hass do registo discográfico, e este, como referido, é em particular fundamental à gravação de Staier.
Diga-se desde já que as diferenças foram bem audíveis e que o intérprete não se “entendeu” do modo mais coerente com o instrumento. Foi mesmo surpreendente a quantidade de notas erradas, o que diria inconcebível num intérprete da craveira de Staier.
Mas a concepção global foi evidentemente a mesma entre o disco e o recital. Staier insistiu nos contrastes e na variedade, fazendo uso muito prolífero e frutuoso do registo de alaúde, com ataques menos fulgurantes e tempos menos vertiginosos nalgumas variações, mas com um jogo digital e variabilidade agógica verdadeiramente impressionantes, alçando-se a um nível ímpar de magnificência na parte final, depois da tal célebre Variação XXV.
Se o seu disco é uma experiência pelas opções radicais, esta realização em recital, ainda que com as tais incompreensíveis notas falhadas, foi uma demonstração eloquente.
PS – Já que vieram à baila os concretos instrumentos, e sendo Staier exímio executante de cravo e também pianoforte, tendo sido ele que veio fazer a estreia do restaurado pianoforte Clementi de Queluz, noutra iniciativa do Em Órbita, e tendo sido ele também a fazer o primeiro recital de pianoforte na Casa da Música, ocorreu-me o recital inaugural do Dowd da Gulbenkian, com Kenneth Gilbert há quase 30 anos, e de novo se me pôs uma questão: quando é que a Fundação adquire um pianoforte?
Andreas Staier é um dos mais notáveis músicos actuais, intérprete inteligentíssimo e executante de excepção, virtuose exímio do cravo e do pianoforte. Para um cravista da sua craveira, fez-se longamente esperar a gravação do maior monumento escrito para o instrumento, as Variações Goldberg, o Clavierbüng IV. Quando as interpretou em 2000 em Queluz, no âmbito dos sempre saudosos Em Órbita / Portugal Telecom, e por interessante que a sua interpretação tenha sido, e foi, não deixou de se pressentir que faltava maturar uma concepção. Mas creio que nenhum de nós suporia que fossem precisos 10 anos para finalmente a gravação ser publicada.
Desde a Ária inicial pressentimos que este é um caso à parte. Evidentemente que na rica discografia da obra há um caso entre todos de excepção, as duas gravações de estúdio de Glenn Gould, aliás entre si tão diferentes de modo extremo. Mas se há Hantaï (outro caso de duas diferentes gravações), Lars Ulrik Mortensen, Koriolov, Perrahia, Scott Ross, Céline Frisch, etc., há que dizer que esta gravação é, de outro modo, também um caso à parte. Como é óbvio todas as grandes gravações são singulares, mas esta é radical nas suas opções.
Dir-se-á que há uma desconstrução da obra, e que embora a interpretação seja historicamente muito fundada (é ver e ouvir as explicações de Staier no dvd que acompanha o cd), é também resolutamente moderna. Não por acaso, a editora solicitou textos para o livrete, em concreto sobre a interpretação, a dois compositores contemporâneos, Isabel Mundry e Brice Pauset, e embora Staier respeite a letra e a forma da partitura ocorre-nos, como gesto, a orquestração por Anton Webern do Ricercare da Oferenda Musical.
Desde logo, esta interpretação soa diferente, e de que maneira! A razão está no instrumento, o exuberante, colossal e monstruoso cravo, com dezasseis pés, construído por Anthony Sidey segundo um modelo Hass de Hamburgo, de 1734 - Hamburgo 1734, assim se intitulava precisamente o espantoso recital com que Staier nos deu a conhecer o instrumento. Uma dúvida nos ocorre todavia: se o intérprete utilizou de novo o instrumento noutro magnífico recital, dedicado aos Early Works de Bach, é esse instrumento o mais adequado para uma obra, como as Variações Goldberg, que no entanto até lhe é mais próxima em termos cronológicos que os tais Early Works?
Captado de um modo a pôr em relevo a sua imensa sonoridade, de resto com uma ressonância dos baixos mesmo algo incomodativa, o instrumento tem uma variedade de registos que o aproximam do órgão, mas não sem que por vezes a clareza das vozes deixe de ser “esmagada”.
Com ataques clamorosos (Variação X, XVI), com uma variedade imensa de registos e de agógica, esta é uma interpretação monumental que atinge o paroxismo na célebre Variação XXV, que aqui nada tem do “espressivo” mais habitual, antes pelo contrário, num tempo lento sublinha esse carácter monumental, naquele que é o mais crítico ponto da interpretação.
Concerto para Cravo BWV 1056, Concerto para Dois Violinos BWV 1043,
Café Zimmermann
Gulbenkian, 7 e 11 de Março, às 19h
Os Concertos Brandeburgueses são uma das mais célebres obras de Bach e mesmo de toda a música da tradição erudita ocidental, e no entanto, na sua integralidade de colectânea, muito pouco ouvidos em concerto.
Tempos houve em que as grandes orquestras filarmónicas os executavam, mas a emergência da interpretação historicamente informada fez com que essa prática fosse abandonada. Mas, por outro lado, os agrupamentos com instrumentos de época raramente os têm preparados em reportório, por razões logísticas e, eventualmente, também de gestão: a variedade do instrumentarium exige um número considerável de executantes, vários para participaram apenas num concerto. Acresce que as características e duração da colectânea não são conformes aos padrões, ou melhor à rotina, da prática dos concertos públicos: são demasiado longos para um concerto, e de menos para dois. A solução mais genérica é de os interpretar em dois concertos, com mais duas obras. Foi isso que agora sucedeu na Gulbenkian com o agrupamento Café Zimmermann, dirigido pela excelente cravista Céline Frisch (entre outros discos, deve-se-lhe uma das melhores interpretações recentes das Variações Goldberg) e pelo violinista Pablo Valetti, grupo que foi buscar o nome ao local de Leipzig onde se reuniu o Collegium Musicum fundado por Telemann e que Bach também dirigiu durante alguns anos.
O século XVIII foi precisamente aquele de implantação dos cafés, como parte da civilidade do novo espaço público burguês. Outro sinal dessa consolidação do espaço público foi a maior mobilidade de informações e obras, fazendo emergir culturalmente a noção de “Europa”. Assim o modelo dos concertos grosso e solista espalhou-se pela Europa, com intermediação decisiva da edição das partituras em Amesterdão. Do conjunto de obras concertantes de Bach os Brandeburgueses, verdadeira apoteose do concerto grosso, foram os únicos explicitamente apresentados como uma colectânea, dedicado ao Margrave de Brandenburgo, e se bem que anteriores ao período de Leipzig há grande probabilidade de terem sido executados isoladamente (cada um dos seis concertos, entenda-se) no Café Zimmermann.
Fazendo jus ao seu nome, o grupo de Frisch e Valetti teve a particularidade de os gravar não como colectânea, mas num conjunto de discos com outros concertos, quatro pelo menos até ao momento, de “Concerts avec plusieurs instruments” de Bach. A excelência das gravações recomendavam o agrupamento mas o que em concreto se ouviu na Gulbenkian foi no mínimo muito decepcionante, só pontualmente convincente mas também por vezes francamente desastroso, de tal modo que coloca questões que sendo em concreto sobre o grupo, são mais genéricas.
Nada substitui a emoção da escuta em directo, mas o disco constitui um meio privilegiado de conhecimento, não só pela sua difusão, como por ser feito com a proximidade sonora adequada, e com diversas tomadas de som até se obter a satisfatória e depois a sua montagem. Acresce que os instrumentos de época têm um som menos volumoso para as actuais salas de concerto, e são mais passíveis de problemas de (des)afinação, e também que se alguns deles têm uma actividade permanente e uma formação regular, muitos constituem-se e reconstituem-se ad hoc – por isso aliás se verifica que haja um número significativo de músicos pertencentes a mais que uma formação.
O inusitado facto de as apresentações terem decorrido com quatro dias de intervalo (com outro momento bachiano, as Goldberg por Andreas Staier, de permeio), é sintomático de que o Café Zimmermann não estava em digressão, e que o programa tinha sido menos rodado, feito expressamente para as apresentações na Gulbenkian. Mesmo assim é inadmissível a falta de vigor patenteada, o som empastelado (o pior foi o Sexto Concerto) e as desafinações, como as notas erradas e a falta de notas da trompete no Segundo Concerto, e sobretudo, escandalosa mesmo, a constante desafinação do solista, concertino e co-director Pablo Valetti.
Houve alguns momentos melhores, devidos sobretudo ao jogo e direcção de Frisch, no Concerto para Cravo, em fá menor, BWV 1056 (destreza digital, belos arpejos) e Quinto Concerto Brandeburgês que tem uma parte solista para o instrumento muito desenvolvida. Mas no global, como disse, esta ocasião, aguardada com tanta expectativa, foi no mínimo muito decepcionante, por vezes mesmo francamente desastrosa.
Um dos aspectos mais estimulantes do recente panorama musical português é o florescimento de grupos dedicados à interpretação historicamente informada de música antiga e barroca. Destes apenas um, a Orquestra Barroca da Casa da Música, teve uma origem institucional, os outros sendo consequência da iniciativa e interesse autónomos de músicos.
O movimento é, como se sabe, genérico, e talvez mesmo o mais marcante do panorama musical internacional nos últimos 20 ou 30 anos. Num livro que já se tornou uma referência não apenas para a sociologia da música, mas também para a agora justamente designada “sociologia das mediações” e mesmo para as ciências humanas em geral, Antoine Hennion dedicou-lhe largo espaço de análise em La Passion Musicale – Une sociologie de la médiation (Métailié, 1993). Mas o movimento começou a manifestar-se com um considerável atraso em Portugal, tendo vindo a vingar fruto do lastro deixado pelos saudosos Cursos de Mateus, pelo início de cursos específicos em escola de música e academias, por especializações no estrangeiro, ou pelo interesse de músicos que já alguns deles paralelamente aos seus instrumentos tradicionais se começaram também a dedicar aos antecedentes barrocos daqueles.
Um desses grupos foi o Ensemble Barroco do Chiado, com base no qual os cravistas Marcos Magalhães e Marta Araújo constituíram um outro, Os Músicos do Tejo, vocacionado para o reportório de autores portugueses mas também visando contextualizá-los, abordando pois autores e reportório que tenham influenciado esses compositores portugueses. È assim que deram um passo que faltava, pesem ainda algumas esporádicas realizações anteriores: a ópera. E é assim que depois do sucesso da apresentação de La Spinalba de Francisco António de Almeida no Centro Cultural de Belém em Fevereiro de 2008, sucesso que levou mesmo à sua reposição em Janeiro de 2009, abordam agora uma obra arquetípica da commedia musicale, Lo frate ‘nnamorato de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736).
Pergolesi deve a sua reputação antes do mais à tempestade provocada pela apresentação em Paris, em 1752, da sua ópera bufa La serva padrona, originalmente um intermezzo (apresentado entre os actos de uma ópera séria), desencadeando a famosa Querelle des Bouffons, dos partidários da ópera bufa contra os defensores da tradição francesa da tragédie lyrique, de Rousseau contra Rameau. Outra obra sua é célebre, é mesmo hoje a mais célebre das suas obras e uma das mais reputadas de todo o reportório barroco, o Stabat Mater. Acrescente-se a isso a sua muito curta vida e ficam estabelecidas as razões fundamentais da sua nomeada.
Mas como compositor na altura em que florescia a escola napolitana, Pergolesi também compôs óperas sérias, como uma versão do célebre texto de Metastasio L’olimpiade, ou commedie per musica, que tinham estatuto autónomo, diferente do intermezzo, constituindo um espectáculo. A mais célebre é justamente Lo frate ‘nnamorato, pela sua importância histórica e por ser a de maiores ecos modernos, por via da produção dirigida por Riccardo Muti, em 1989 no Scala, de que há registo em disco e em dvd. Abordar esta obra é pois um salto, e um salto ousado, para Os Músicos do Tejo.
Esclareça-se desde já que embora o programa indique apenas “espaço cénico”, não se trata de uma apresentação semi-staged, como hoje tanto se pratica, mas mesmo de uma encenação, só que com um espaço muito simples mas também muito funcional. Luca Aprea, que trabalhou nomeadamente com o mestre maior do teatro da tradição napolitana, Roberto de Simone, logrou uma encenação de grande vivacidade e por vezes de franca comicidade, o que é importante ao gesto de nos apresentar uma obra como Lo frate ‘nnamorato.
Mantendo sempre o interesse, a realização musical é no entanto desigual. Marcos Magalhães mostrou à saciedade as suas aptidões no baixo dos recitativos, mas como maestro falta-lhe um gesto mais preciso e falta à sua direcção uma maior vivacidade; mantém todavia a coesão do conjunto, com destaque para o esplêndido quinteto que conclui o Acto II. As cordas ressentem-se com uma articulação e um fraseado que nitidamente precisariam de ser muito mais trabalhados, enquanto os sopros são aptos, com inevitável destaque para esse músico de excelência que é António Carrilho em flauta de bisel.
A desigualdade é ainda mais notória nos intérpretes dramático-vocais, desde logo porque os homens são muito superiores às mulheres. João Fernandes é português mas é um cantor internacional, por via do seu trabalho sobretudo com Les Arts Florissants e William Christie. No papel de Dom Pietro, o mais cómico, papel de um pedante ridículo, Fernandes é impagável, e é em especial brilhante em “Si stordisce il Villanello”, ária de voz mista, de peito e de cabeça (falsete). Luís Rodrigues (Marcaniello) e Carlos Guilherme (Carlo) são dois intérpretes em plena maturidade, cada vez melhores, sendo que o primeiro tem também um apurado sentido cénico.
Do lado feminino, como disse, o panorama é mais problemático. Falta caracterização aos amantes, Eduarda Melo (Ascanio, um papel travestido) e Inês Madeira (Luggrezia) e o desequilíbrio acentua-se ainda mais nas duas duplas, Nina e Nena e Vanella e Cardella (os nomes dizem da proximidade), com Sara Amorim (Nina) e Sandra Medeiros (Vanella) mais desenvoltas enquanto Joana Seara (Cardella) é baça e Carla Caramujo (Cardella) estridente.
Há um grande lapso, em relação aos padrões já internacionalmente correntes, na apresentação de óperas barrocas em Portugal, e a mais recente, a Agrippina de Haendel no São Carlos foi mesmo um desastre incomensurável. Tanto mais se salienta o gesto de realização agora de Lo frate ‘nnamorato, que apesar dos desequilíbrios apontados, justifica uma viva recomendação.
P.S. - Uma nota para as modelarmente pedagógicos notas ao programa, contextualizando de modo muito pertinente a obra e o projecto da sua concretização.
Desde a sua fundação por Christopher Hogwood em 1973, que a Academy of Ancient Music se tem dedicado à música de Purcell e à de Haendel, autores a que se tem também votado Richard Egarr, que sucedeu a Hogwood como director musical – dedicações particulares e a níveis de excelência que se podem aliás constatar nestasdiscografias.
Essas dedicações e excelência eram motivos amplamente justificativos do interesse pelo programa que a Academy e Egarr, com a soprano Carolyn Samposon, vieram apresentar à Casa da Música e à Gulbenkian: de Purcell três ayres incluindo Music for a While, extractos de The Fairy Queen e de Dido & Aeneas, e de Haendel o Concerto Grossso op. 3 nº 2 e quatro árias, três de ópera, “Desterò dall’empia” de Amadigi di Gaula, “Lassa! Ch’io t’ho perduta” de Atalanta e “Ma quando tornerai” de Alcina, mais outra de oratória, “Let the bright Seraphim” de Samson. Foi pois um programa que, de modo condensado, se apresentava contudo como suficientemente representativo das características de um e outro compositor.
A familiaridade da Academy com este reportório foi da ordem das evidências, tal como a vivacidade da direcção de Egarr, com uma grande energia ritmíca e um sentido notável das cores – é pena que não constasse do programa a composição do agrupamento para ficar devidamente registado o destaque do oboeísta e do trompetista.
O problema foi Carolyn Sampson, intérprete de pouca personalidade vocal e ademais pouco idiomática em italiano, de agudos delicados – o que nalguns momentos até foi um atributo - , médios embaciados e graves pouco encorpados. Eis o caso de uma cantora de todo despossuída do que Roland Barthes designou por grão da voz, esse “qual coisa que é directamente do corpo do cantor”, irredutivelmente singular. Para mais o programa era para ela temerário, com o Lamento de Dido, mais duas árias de furor de feiticeiras, as de Melissa no Amadigi e de Alcina, e um outro lamento, de Atalanta.
Correcção estilística não lhe faltou, designadamente na ornamentação das árias italianas, mas o carácter, os caracteres, foram um débito considerável. Com um excepção, no entanto, e de relevo: a delicadeza inefável, de “The Plaint – Let Me Weep”, momento em que aliás a sequência de extractos de The Fairy Queen foi justamente interrompida por aplausos.
Se a Academy brilhou, as debilidades da cantora tornaram este programa representativo de Purcell e Haendel em algo escolástico, académico.
A colocação em linha agora destes textos sobre Purcell e Haendel prende-se com os derradeiros concertos celebrativos das efemérides.
Hoje às 21h, na Casa da Música, em concerto integrado no Festival À Volta do Barroco e amanhã às 19h na Gulbenkian, apresentam-se intérpretes credenciados (como aliás se pode constatar nas discografias abaixo), a Academy of Ancient Music e Richard Egarr, mais a soprano Carolyn Sampson, num programa com peças instrumentais e vocais de Haendel e Purcell, incluindo deste último três trechos dos mais maravilhosos, “Music for a While”, “The Plaint” de The Fairy Queen e o Lamento de Dido.
Ainda na Casa da Música, no domingo, às 18h, apresenta-se outro reputado agrupamento, a Akademie für Alte Musik Berlin, com obras de Matthew Locke, mentor de Purcell, deste mesmo e de Haendel.
São concertos que justificam uma chamada de atenção
Haendel morreu célebre há 250 anos, e celebrado continuou a ser, historicamente o primeiro compositor de posterioridade ininterrupta, isto é o primeiro de quem as obras nunca deixaram de continuar a ser interpretadas e festejadas. E, no entanto, situação paradoxal, talvez nenhum outro compositor, à excepção de Mahler, “deva” tanto ao registo fonográfico. Contrariando a imagem do autor de uma solitária obra-prima, O Messias, contrariando a ideia de pompa que em Inglaterra se perpetuou em realização massivas com coros que por vezes chegavam às centenas de pessoas, não apenas de O Messias como de Judas Macabeu, Israel no Egipto, Joshua, Saulou Solomon, agora podemos reapreciar Haendel porque num período recente de cerca de 25 anos foram sistematicamente sendo disponibilizadas gravações que fazem com que hoje estejam editadas as suas 38 óperas e 26 oratórias – e, acrescente-se, um dos mais apelativos projectos editoriais em curso, na Glossa, é uma integral das cantatas italianas.
Atente-se aos números, 38 óperas e 26 oratórias. São a demonstração eloquente do género de predilecção do compositor. O alemão Händel desembarcou em Inglaterra em 1710, como compositor de ópera italiana, ópera séria evidentemente, já com a aureola dos sucessos de Rodrigo eAgrippina, e triunfou no ano seguinte com Rinaldo, primeira das seis “óperas mágicas” (Teseo, Amadigi, Orlando, Ariodante e Alcina são as outras), da ópera e da maquinaria e dos encantamentos e prodígios, que constituem a apoteose de toda a estética barroca da ilusão. E prodigioso compositor que num ano, em 1724/25, apresenta de seguida três grandes obras-primas, Giulio Cesare, Tamerlano e Rodelinda.
E compositor que escreveu para algumas das maiores vozes de então, o Senesino, a Cuzzoni, a o Bordoni ou a Durastanti, Mantagnana ou Anna Maria del Prado – donde desde logo se infere que para interpretar Haendel são precisas grandes vozes, grandes intérpretes, é preciso ter a noção clara da vocalidade; e assim também hoje, em tanto graças ao disco,podemos ter a percepção rigorosa de que ele foi um mestre do que é de facto o “bel canto”, o canto ornamentado e virtuosístico na expressão dos “affetti”. Na verdade a oratória, mais concretamente a oratória inglesa (já que no período romano compusera Il trionfo del Tempo e del Disingano e La Resurezione), surgiu a Haendel quase por acaso, com a Esther de 1732, escrita para o domínio privado de um protector, o Duque de Chandos, apenas ganhou relevo depois de apresentações públicas do Saul de 1739, e apenas se consagrou no entendimento do próprio autor com o triunfo do Messias em 1742, sucedendo-se à derradeira das óperas, a Deidama do ano anterior. Há certamente belíssimos “heróis” e “heroínas” em oratórias como Saul, Semele, Hercules, Belshazzar, Theodora ou Jephta, mas, pelos óbvios motivos expostos, é fundamentalmente nas óperas que se encontram os exemplos maiores.
Comecemos pois a discografia por aí, por Dido & Aeneas, obra muitas vezes gravada e em que várias grandes intérpretes se distinguiram. Mas, pesem ainda Tatiana Troyanos, Anne Sophie von Otter, Della Jones, Lorraine Hunt, Susan Graham e outras, houve uma intérprete de excepção na dimensão trágica do papel: Janet Baker, na sua primeira gravação, de 1962, dirigida por Henry Lewis (Decca).. Como concepção global são marcantes duas outras gravações, em tudo opostas, a aproximação à ópera para meninas de Andrew Parrott com Emma Kirkby e a mais terrificante das feiticeiras, Jantina Noorman (Chandos), e o fausto e dramaticidade de Christopher Hogwood com a Academy of Ancient Music e outra protagonista de excepção, Catherine Bott (Oiseau-Lyre).
Mas o teatro musical de Purcell está longe de se resumir à singularidade de Dido & Aeneas.
Henry Purcell (1659-1695) de quem ora celebramos os 350 anos do nascimento, constitui um daqueles casos da história da música a propósito do qual ocorre o intento de Norbert Elias sobre Mozat, “sociologia de um génio”. Génio precoce e de vida breve, 36 anos, e caso único de génio na música britânica entre o maneirismo da “idade de ouro” elisabetiana e jacobita e o século XX. Só esses três factos, a genialidade do designado “Orpheus Britannicus”, a brevidade da vida e o seu estatuto de caso isolado, são suficientes para o reconhecer mesmo entre os mais singulares autores da história da música europeia.
Mas Purcell foi também fruto de um quadro histórico e de circunstâncias várias. Quando nasceu vigorava ainda a “commonwealth” do puritano Cromwell, de um rigor e severidade tais que mantinha fechados os teatros. Mas logo no ano seguinte o pretendente Stuart regressa e é coroado como Carlos II – era a “Restauração”, época de faustos e prazeres. A Chapel Royal é restabelecida e para ela Henry Purcell entra muito jovem como menino do coro. As mortes sucessivas dos mestres de capela Henry Cooke e Pelham Humphrey levaram ao cargo o mentor de Purcell, John Blow. A voz tendo mudado, Purcell permaneceu no entanto ao serviço da capela como copista e organista, em contacto por certo com o compositor mais célebre da altura, Matthew Locke. Quanto este por sua vez morre, em 1677, Purcell torna-se “composer-in-ordinary” dos violinos da capela real, os “Four and Twenty Fiddlers” instituídos por Carlos II à imagem dos “24 Violons du Roy” do seu protector de exílio, Luís XIV. Eis então Henry oficiando em compositor escrevendo “anthems” (hinos religiosos), acolhendo o influxo italiano mas também estabelecendo um laço com a tradição perdida do maneirismo com as “arcaìzantes” e extraordinárias Fantasias for the Viols.
Em breve se dedica também a escrever música para o teatro, a arte mais celebrada da Restauração. A sua reputação estava consagrada quando compõe para a coroação do novo rei, Jaime II, em 1685. O catolicismo deste e a perspectiva de nascimento de um herdeiro estarão na origem da revolução de 1688 que leva ao poder Maria e o seu marido Guilherme de Orange. A Queen Mary virá a ser a grande protectora de Purcell e se o autor se destacará como compositor de Odes estas tanto serão dedicadas à padroeira da música, Santo Cecília, como à Rainha, nos seus aniversários.
Na corte de Luis XIV tinham os Stuarts exilados conhecido o novo género da “tragédie lyrique”, contraponto francês à recusada ópera italiana. Mas por sua vez o género francês não teve acolhimento em terras britânicas. Em vez disso, e na sequência da tradição da “masque”, floresceu um teatro musical, ou antes meio falado e meio musicado, de que Purcell será o mestre esplendoroso. Mas este génio tão peculiar ainda fará uma obra de todo singular, uma ópera mesmo, uma ópera de câmara, Dido & Aeneas, provavelmente para um colégio de meninas, a escola de Josias Priest, que a posteridade consagrará como a sua obra mais celebrada, e se tornará mesmo – paradoxo para com as suas origens num terreno sem ópera – na mais representada de todas as óperas barrocas.
Dawn Upshaw, David Daniels, Richard Croft, Lorraine Hunt, Frode Olsen
Orchestra of the Age of Enlightment
Cenografia de George Tsypin
Encenação e realização de Peter Sellars
Orchestra of the Age of Enlightment
Direcção de William Christie
Produção do Festival de Glyndebourne
Dvd Warner/NVC
Hercules
William Shimell, Joyce DiDonato, Toby Spence, Ingela Bohlin, Malena Ernman
Encenação de Luc Bondy
Les Arts Florissants
Direcção de William Christie
Produção do Festival de Aix-en-Provence
Realização de Vincent Battaillon
2 DVD Bel Air , dist. Harmonia Mundi
Pois que falei, a propósito da Semele, da importância de ter em dvd acesso a realizações cénicas de todas as três oratórias não-biblícas de Haendel, cabe recordar as outras duas.
Entre as encenações de ópera que contribuíram para a nomeada de Sellars houve um Giulio Cesare de Haendel absolutamente derisório - à época, que foi a da primeira Guerra do Golfo, era impossível não ver nesse César revisto pela CNN uma paródia de Bush pai, o que, longe de ser uma entorse à obra, era uma peculiar leitura de um carácter paródico que ela já tem.
A encenação de Theodora procede daí: também Valens, o pró-consul romano, começa por fazer uma conferência de imprensa. Mas o quadro é bem mais dramático, com os romanos apresentados como força de ocupação e os cristãos como resistentes. O que podia ser mais outro estapafúrdio exercício “neoconceptual” ou "desconstrutivista" torna-se, no entanto, pungente pela inteligência de encenador e intérpretes na construção das personagens de Theodora (Upshaw), Dydimus (Daniels) e sobretudo a malograda Hunt (Irene), que, depois da sua memorável Medée de Charpentier, mostrava de novo a intérprete trágica de excepção que era.
Este dvd não é apenas o registo de uma produção excepcional - é também a peça capital da discografia de uma das mais extraordinárias obras de Haendel.
Oito anos depois Christie dirigia de novo cenicamente outra oratória não-biblíca, o Hercules, este mesmo designado “a musical drama”., inspirado em Sófocles. Quanta tinta fez correr esta produção do Festival de Aix-en-Provence de 2004, quanta indignação da nova ortodoxia, do novo "reaccionarismo barroco", que "exige" que as obras sejam apresentadas e encenadas estritamente segundo os códigos "da época"!
Luc Bondy não seria o encenador que mais ocorreria para uma proposta deste tipo, quanto se poderia pensar por exemplo num Peter Stein (e vendo-se o registo do espectáculo, torna-se patente que Bondy, que sucedeu a Stein como director da Schaubühne, guardou a memória de espectáculos daquele, como de Klaus-Michael Grüber). O próprio fartou-se aliás de explicar como a princípio a proposta lhe pareceu excêntrica aos seus interesses, acabando por se deixar convencer, fruto de persuasão também do conhecido dramaturgo britânico Martin Crimp. De facto, Bondy viria a fazer um díptico: este Hercules e Cruel and Tender, peça do próprio Crimp, reescrevendo a tragédia de Sófocles.
A obra chama-se Hercules, mas a formidável personagem principal, uma das mais desmesuradas de Haendel, é a sua esposa, Dejanira, aquela que aguarda o herói e que depois, quando o vê regressar com a bela princesa cativa Iole, é desvairadamente devorada pelo ciúme. O imenso potencial dramático da obra não obsta a que existam questões de género e de estilo consubstanciais à matéria musical, como a repetição da capo ou o papel do coro, que constituem, e que certamente constituíram, importantes problemas cénicos.
O que pode desconcertar numa recepção atenta deste duplo DVD é a verificação que as direcções cénica e musical de Bondy e Christie respectivamente seguem em separado. Mas o trabalho aproximado da câmara cria uma relação de todo diferente de uma perspectiva na plateia, e neste caso particularmente esclarecedor, porque se diria interna ao bunker da cenografia de Richard Peduzzi. Deste modo é possível seguir atentamente o drama de Dejanira (formidável Joyce DiDonato), como também o de Iole, e o coro ganhar pela montagem um outro sentido dramático (por exemplo, a entrada em Jealousy! Infernal pest).
O concreto objecto, o DVD, é assim suficientemente interessante, e mesmo que não se afigure uma referência, como a Theodora por Sellars e o mesmo Christie, revela uma perspectiva menos patente de Haendel, e do modo como nele se cruzaram a tradição inglesa, que consolidou, com a reminiscência operática e italiana – perspectiva, a das oratórias não-bíblicas, agora completada com a Semele.