O ciclo berlinense da Cinemateca chega à sua raison d’être, o motivo do 20º aniversário da queda do Muro, com este espantoso documentário do cineasta este-alemão Jürgen Bottcher, raríssimo exemplo de História em directo, que apresenta precisamente a queda do Muro. Se me é permitida a observação, deveria ter sido por aqui (e embora falte ainda também exibir outro muito importante filme “em directo”, Novembertage de Marcel Ophuls, que passa a 29) que o ciclo se devia ter iniciado, indo depois ao flashback desde os anos 20.
No começo do filme, vemos vários blocos já arrancados do Muro, como num cemitério. Die Mauer/O Muro é o filme desse colapso e morte. Bottcher. filmou os primeiros momentos da derrocada, a 9 de Novembro de 1989, e depois a desordenada destruição do Muro, nesses dias em que cada um de nós por lá passávamos queríamos ficar com um bocado de Muro para recordar. Há turistas japoneses que passam, há crianças turcas que vendem esses bocados de Muro.
Prescindindo de qualquer comentário, voz off ou depoimentos falados, Bottcher, nascido em 1931 e que também é pintor assinando “Strawalde”, deixa a matéria das imagens ser suficientemente eloquente. A maior parte do filme situa-se na zona central da Porta de Brandenburgo e de Potsdamer Platz, nesta a câmara descendo aos subterrâneos, à desactivada estação de metro, qual visão da ante-câmara do inferno.
Mas Bottcher utiliza também um estratagema para relatar a História: por três vezes projecta no próprio Muro imagens de arquivo, 1) do centro de Berlim, desde a época de Guillherme II, passando pelo nazismo, até à tomada da cidade pelo Exército Vermelho, 2) da construção do Muro e das tentativas de fuga (um dos momentos mais intensos do filme) e, 3) da RDA na época do Muro.
Literalmente “filme da queda”, Die Mauer registou e traz-nos de volta a cada visão as memórias dos dias de Liberdade reencontrada ou descoberta. Foi também outro epitáfio, o último filme importante produzido na RDA. Por esse modo como captou a História em directo e pela inteligência das suas estratégias narrativas, Die Mauer é seguramente uma das grandes obras do documentarismo cinematográfico.
No ciclo “Os Mil Rostos de Berlim” a decorrer na Cinemateca desde o mês passado, a propósito do 20º aniversário da queda do Muro, entra-se hoje propriamente nos “anos do muro” com a adaptação cinematográfica do romance que celebrizou Christa Wolf, Der geteilte Himmel/O Céu Divivido. Se não se trata propriamente do Muro, a metáfora do “céu dividido” é suficientemente esclarecedora da confrontação das duas Alemanhas, RFA e RDA.
Konrad Wolf (1925-1982) era filho de um célebre anti-fascista, Friedrich Wolf, e irmão do famoso super-espião Markus Wolf. A família partiu para a União Soviética logo após a tomada de poder pelos nazis em 1933, e Konrad viria a alistar-se no Exército Vermelho durante a guerra, vindo a fazer parte das forças que tomaram Berlim em 1945. Também desde cedo tomou contacto com o cinema soviético, e aliás depois da guerra completaria os estudos na célebre escola de cinema, VGIK. Esta “impecável folha de serviços” valeu-lhe desde cedo uma posição de destaque na DEFA, os estúdios da Alemanha Oriental. De facto, mais do que isso, Konrad Wolf não foi apenas o “cineasta oficial” da RDA, foi mesmo a figura do “artista oficial”, presidente da Academia das Artes da República Democrática Alemã desde 1965 até à sua morte.
Com este curriculum não deixa de ser algo surpreendente que se tenha metido à tarefa de adaptar Der geteilte Himmel, livro de “justificação” da RDA é certo, mas obra de dilaceração também (Christa Wolf participou na adaptação).
O filme é habilíssimo, fundando-se nessa clássica figura do esquema marxista que é a tomada de consciência, todavia atrás de uma releitura moderna do melodrama: Rita e Manfred amam-se, mas enquanto ela se vai progressivamente mais integrando nos mecanismos do “socialismo”, ele decide partir para Oeste. O uso frequente de contra-picados com o céu em fundo, sobretudo no início do filme, e também de grandes planos num formato largo, de Rita em particular, elucidam a divisão e o confinamento.
Tem sido apontada uma possível influência de Hiroshima Meu Amor no filme de Konrad Wolf. Tenha ou não havido influência directa há sem dúvida um paralelismo na abordagem de uma personagem feminina face à História, daí decorrendo um amor impossível de prossecução. Todavia, o que mais surpreende retrospectivamente é que este filme de um “cineasta oficial” tinha ainda assim uma liberdade de tom que estava cinematograficamente dans l’air du temps. Deste modo, e surpreendentemente, este filme de 1964, obra de “justificação” e de um “cineasta oficial”, surge num olhar retrospectivo como um imediato percursor da fugaz “nova vaga” da DEFA (chamemos-lhe isto por comodidade de expressão), um conjunto de filme de 1965/6 que logo foram proibidos e que apenas viríamos a conhecer em 1990, depois da queda do Muro, o mais célebre dos quais é Spur der Steine de Frank Beyer, outro sendo um filme que falta neste ciclo da Cinemateca, Berlin um die Ecke de Gerhard Klein (foi antes incluído outro filme seu, anterior, Eine Berliner Romanze).
A RDA, estado efémero, defrontou-se sempre com um problema de “identidade” e “fundamentação”: seria a parte “progressista” da Alemanha e a “barreira contra o capitalismo” (o que eram os termos de justificação do Muro), de facto um socialismo real, horrorosa mescla de totalitarismo soviético e autoritarismo prussiano. Com a queda do Muro o seu colapso era inevitável, e foram infrutíferas as tentativas de alguns, entre as quais precisamente Christa Wolf, de lhe dar continuidade então como “socialismo democrático” – “Wir sind Eine Volk”, “Somos Um Povo”, clamou-se antes nas manifestações de rua, Um povo a leste e oeste.
Enquanto habilíssima obra de “justificação” do “socialismo” a construir, Der geteilteHimmel é um objecto singular e de encruzilhada, a descobrir.
Vai fazer agora dez anos [fez agora vinte anos] que, com júbilo, soubemos a notícia da queda do Muro de Berlim. Os cidadãos de Berlim Leste e da Republica Democrática Alemã iam finalmente poder respirar a liberdade e escapar-se das malhas opressivas do socialismo real. O que no júbilo do momento não intuímos é que acabava também uma parte da História e das nossas vidas, dos que moravam lá ou que, como eu, muitas vezes lá iam, desses que tínhamos a vivência de Berlim Oeste, cidade cercada por muro e arame farpado, ilha rodeada de comunismo por todos os lados.
Como era essa vivência? Frenética, respirando sofregamente cada dia e ainda mais cada noite, como se pudessem ser os últimos das nossas vidas, já que se existia à face do planeta um ponto em que a realidade dos blocos antagónicos e da possibilidade de guerra nuclear era bem perceptível, esse ponto era Berlim.
Íamos até à esquina de Friedrichstrasse e Ecktrassse, ao “Checkpoint Charlie”, posto fronteiriço entre os sectores americano e soviético, onde, com um carimbo no passaporte, podíamos passar de um lado para outro da cidade dividida. Íamos até ao bairro pobre de Kreuzberg, junto a esse edifício de Siza Vieira, bem junto ao muro, onde alguém escrevera “Bonjour Tristesse”.
Procurávamos os rastos de Berlim de antes da guerra. De dia, os rastos da metrópole cuja vivência Walter Benjamin relatara em Infância Berlinense“Não encontrar o caminho numa cidade não é muito importante, mas perder-se numa cidade, como as pessoas se perdem numa floresta, exige prática... Aprendi essa arte muito tarde”. À noite, os rastos dos “cabarets”, das Marlenes Dietrich e Sallies Bowles que Christopher Isherwood narrara em Goodbye Berlin (base de Cabaret, o espectáculo teatral e depois o filme).:
Como eram intensas as noites de Berlim Oeste! Íamos ao Hebbel e à Schaubünhne, dois dos mais importantes locais de actividade teatral do mundo, ao “Terzo Mondo”, uma taberna grega que era ponto de encontro de cinéfilos e de convívio de imigrantes do Sul da Europa (até gregos e turcos confraternizavam), ao Metropol, uma antiga igreja de que se mantinha a fachada mas que no interior se transformara em templo de rock, ou a discotecas, clubes ou cervejarias de Kreuzberg. Eram longas noites, e quando a madrugada chegava, sabíamos que tínhamos conseguido viver mais um dia.
Por vezes passávamos para o lado de lá, à superfície, em “Checkpoint Charlie”, ou subterraneamente, na estação de metro de Friedrichstrasse. Então, íamos até ao mais jovem e intelectual bairro de Berlim Leste; Pranzlauerberg.. Eventualmente subíamos ao alto da torre das telecomunicações em Alexanderplatz, o único ponto em que se avistava todo a grande cidade, como se não houvesse Oeste e Leste, como se não houvesse um céu também dividido — Der Geteite Himmel, título de um romance de Christa Wolf, esse onde Wenders pôs anjos em Der Himmel über Berlin/O Céu Sobre Berlim que por cá se chamou As Asas do Desejo. Por mim, ia frequentemente à Komische Oper, ali tão perto do muro e da Porta de Brandenburgo, ver espectáculos com encenações de Walter Felsenstein, Joachim Herz ou Harry Kupfer.
Depois veio o júbilo e toda essa imensa alegria, dos que a Leste se tinham manifestado proclamando “wir sind der volk/ nós somos o povo”, e dos que a Oeste os acolhiam, até saudando esses muitos poluídores Trabants, os quase arqueológicos carros da RDA, cheios de gente que vinha respirar a liberdade e começar a descobrir o consumismo ocidental nos grandes armazéns do KaDeWe. E, inversamente, passámos a ir de Oeste a Leste sem guardas-fronteiriços a espreitarem-nos de alto a baixo, já sendo solicitados para um pequeno tráfico de cigarros americanos, dólares ou marcos ocidentais, junto à estação de metro de Alexanderplatz, ou dentro dela.
E depois a RDA desapareceu e Berlim passou a ser uma única cidade, com esse imenso deserto onde antes o muro se erguera, em Postdamerplatz, bem no centro da cidade, em “Berlim-Mitte”; e depois, nesse mesmo local começou o estaleiro das grandes construções, como a torre da Daimler-Benz, projectada por Renzo Piano, um dos pólos de um triângulo que hoje inclui também a cúpula transparente, desenhada por Norman Foster, do velho Reichstag de tão sinistras memórias (hoje resgatado e sede do Parlamento da nova Alemanha una e democrática) ou a espectacular Passage interior de Friedrichstrasse, devida a Jean Nouvel, que com o Museu Judaico de Daniel Liebeskind são referências obrigatórias nesse grande museu de arquitectura que é a nova Berlim.
Mas o muro desapareceu mesmo? Ao longo de dez anos não temos deixado de nos interrogar sobre o Mauer am Kopf, o “muro na cabeça”, essa divisão mental e cultural que ainda permanece entre os wessies, os do Oeste, e os ossies os de Leste, estes inclusivamente exibindo marcas do exército soviético e daquela estética oficial da RDA que, na sua mistura de prussianismo e estalinismo, era ainda mais tenebrosa que a da União Soviética — e esses são sinais visíveis da ossienostalgie, da nostalgia pela velha RDA, campo onde manobram e se alimentam os comunistas mas também a extrema-direita.
Sucede que agora às noites podemos ir ao cosmopolita “Newton Bar”, ao pé de Friedrichstrasse, mas não longe dali fica o “Tresor”, discoteca instalada um antigo “bunker”, onde alternam noites jovens e “techno”, festas durante o Festival de Cinema e celebrações da velha RDA.
E é percorrendo hoje as ruas e sobretudos os locais nocturnos de Berlim que nos sucede ter não nostalgia mas melancolia (“exactamente porque o carácter melancólico é perseguido pela morte, são os melancólicos que melhor sabem decifrar o mundo”, escreveu Susan Sontag no seu ensaio sobre Walter Benjamin, Sob o Signo de Saturno), melancolia por essa Berlim Oeste que, afinal, também ela acabou com a queda do muro e a reunificação.
Berlin bleit doch Berlin, Berlim continua a ser Berlim; mas será a mesma? Não, já não é, porque felizmente o muro abateu-se e com ele o socialismo real, mas não deixemos de estar atentos ao muro que permanece nas cabeças e não queiramos recalcar a melancolia que também envolve a nova condição de uma cidade una e democraticamente regida.
As noites de Berlim já não acabam freneticamente numa giga, essa dança rápida com que habitualmente se concluem as suites, mas com pavanas por uma vivência defunta — e sendo a pavana uma dança cerimoniosa é também a nossa cerimónia dos adeuses.