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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Bach - II

 

 

 

 Bach
“Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne” [“Tauerode –‘Lass, Fürstin’”]
Prelúdio e Guga BWV 544, Missa BWV 234
Katharine Fuge, Carlos Mena, Jan Kobow, Stephan MacLeod
Francis Jacob
Ricercar Consort, Philippe Pierlot
Mirare, dist. Harmonia Mundi
 
 
Pesem ainda algumas qualidades, e mesmo o interesse musicológico da proposta, todavia concretizada de modo incipiente, este disco não deixa também de merecer uma particular chamada de atenção por motivos que vão sendo “representativos” mas não dos mais lisongeiros.
 
As práticas musicológicamente fundamentadas da “nova música antiga e barroca” têm também conduzido ao uso e abuso das operações de “reconstituição”, nomeadamente em disco. E assim sucede por vezes assistirmos mesmo a cenas caricatas de distribuidores e vendedores a clamar “premième mundial!, première mundial!”, quando não se trata de mais que outra designação, outra embalagem, ou quanto muito outra hipótese, para obras bem conhecidas.
 
Olhando para a capa deste disco, o seu modo de apelo público, alguém pode perguntar: “Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne”?! Um inédito de Bach, pelo menos um inédito discográfico?!
 
Pensando um momento, para quem minimamente conheça, não será difícil contudo identificar a obra, a célebre Ode Fúnebre, “Lass, Fürstin”. Christiane Eberhardine de Branderburg-Bayreuth permaneceu fiel à Igreja Reformada e retirou-se quando o marido, o Eleitor Frederico Augusto I da Saxónia, se converteu ao catolicismo, condição “sine qua non” para ser proclamado Rei da Polónia – e circunstância na origem de Bach ter escrito para a côrte de Dresden a sua grande obra de rito latino, a Missa em si menor.
 
Quando a princesa morreu, um serviço fúnebre em sua homenagem realizou-se na Igreja de São Paulo da Universidade de Leipzig. Se é certo que “Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne” é a indicação constante no manuscrito de Bach, pois que o francês era a língua culta, não menos se deve considerar elementar que uma obra seja identificada nos termos em que é devidamente conhecida.
 
De resto, o interesse da proposta está propriamente na hipótese de reconstituição. Um dos grandes estudiosos de Bach, Gilles Cantagrel, que também assina as notas do livrete, tinha colocado a possibilidade de um nexo entre o Prelúdio e Fuga BWV 544 e a Ode, de resto ambas na tonalidade de si menor. Os testemunhos referindo que uma peça de orgão foi tocado no início do ofício e outro no fim, a hipótese estabelecida neste disco é que foram os referidos Prelúdio e Fuga, sendo ainda interpolada outra peça de orgão entre a primeira e a segunda partes da Ode, correspondente ao momento em que na cerimónia terá ocorrido propriamente a oração fúnebre. A anteceder figura uma das quatro breve Missas, apenas com “Kyrie” e “Gloria”, de acordo com uma prática conservada na liturgia reformada.
 
“Hèlas, hèlas, hèlas!”. O debate sobre “o coro de Bach”, depois das teses minimalistas de Joshua Rifkin, tem agitado as hostes musicológicas como nenhum outro – ou antes, só como as polémicas em torno de Chostakovich, subsequentes ao discutível Testemunho publicado por Solomon Volkov. Mas nem vale a pena citar os argumentos em confronto perante a manifesta evidência de que este coro de quatro solistas se abeira da indigência, e que o mesmo cabe dizer das intervenções individuais, excepto um momento de Graça particularmente dolorosa: a ária de contralto com violas “Wie starb die Heldin” por Carlos Mena – e o contratenor revelou-se, recorde-se, quando da primeira Festa da Música em Lisboa, em 2000, cantando Bach com este mesmo Ricercar Consort, e recorde-se também que a Mirare é a editora entretanto criada por René Martin, director artístico do evento entretanto “expulso” do CCB.
 
A qualidade da realização instrumental, do orgão solo de Francis Jacob e das flautas de Marc Hantaï e Georghes Barthel em particular, é inegável, mas insuficiente perante a manifesta inépcia da concepção e escolhas vocais.
 
E, para além disso, é incómodo verificar uma vez mais que são pequenas editoras independentes, e sobretudo votadas ao barroco e à música antiga, que optam por estratégias de marketing discográfico alardeando uma novidade que quanto muito é relativa, e em todo o caso sem a probidade suficiente nos seus modos de apresentação pública.
 
Quanto à Tauerode -‘Lass, Fürstin’, por mim continuo fidelíssimo a uma interpretação que se me afigura uma das escolhas mais salientes na discografia de Bach, a de Philippe Herreweghe, na Harmonia Mundi.