Badiou: que totalitarismo?
A propósito do meu questionamento das posições de Alain Badiou e de Slavoj Zizek, recebi a seguinte contraposição de Carlos Vidal, crítico e artista plástico, e autor de Sombras Irredutíveis – Arte, Amor, Ciência e Política em Alain Badiou (Vendaval – singular e preciosa editora).
Caro Augusto
Vejo alguma incerteza ou mesmo inquietação neste teus últimos posts, em torno de Badiou e de Zizek,
e penso que essa inquietação se deve à forte crítica de ambos (apesar de Badiou ser, acho eu, um acaso mais sério) à democracia representativa que tu, de forma coerente, julgarás insuperável (?) (como Sartre achava o marxismo). No fundo o que eu temo em quem pensa a democracia como um modo de organização da vida colectiva que nos abre para várias hipóteses, positivas e negativas, em que a alternância existente nos exige lutas (pluripartidárias) por correcções não destrutivas do edifício global, o que mais me preocupa nesta aceitação passiva da democracia é a falsa escolha ou falsa alternativa que poderia assim ser sistematizada: ou democracia ou totalitarismo (versão simpática de quem não é por nós é contra nós).
Hegel ensinou-nos que há sempre um terceiro elemento. Badiou, sabedor dessa hipótese comporta-se como um sábio hegeliano. Não aceita alternativas binárias. No seu Logiques des Mondes propôs o seu terceiro elemento deste modo: diz-se na democracia que não há senão corpos e linguagens, ao que o filósofo acrescentou – “excepto que há verdades”. Quer dizer, dizer que não há senão corpos e linguagens (que Badiou chama a falsa alternativa do “materialismo democrático”), significa desmobilizarmo-nos perante a “evidência” de que vivemos numa biopolítica ou numa bio-sociedade, em que o corpo e a perecibilidade (ou o corpo optimizado para a produção de que falava Foucault) deve ser protegido como coisa frágil ao que se associa a linguagem e a protecção da livre expressão. Mas Badiou acrescenta que existem verdades ou, se quiseres “acontecimentos”. E chegamos à ultrapassagem de outra falsa alternativa: não há senão democracia e totalitarismo, excepto que há acontecimentos (verdades).
Vamos a uma parte polémica destas considerações, que eu acrescento, que é a de que a história, desde sempre confirma esta realidade do acontecimento. Ora o que é o acontecimento ? Em primeiro lugar ele diz-nos ( e todos concordamos com isso) que nada chegou ao fim nem chega (por isso Badiou cultiva o infinito que retira da matemática de Cantor, como coisa não teológica, mas autoconsistente e construtível). Se nada chegou ao fim tudo pode ainda ser inventado, quer dizer, não se trata de dizer como irá ser a alternativa de vida futura à democracia actual, mas sim que o acontecimento é inevitável (desde Spartacus que a política de emancipação se repete incessantemente). E a pergunta passa a ser: “o que é que construíste de novo ?”
O acontecimento tem três ou quatro premissas: em primeilo lugar, ele irrompe numa situação (que se supunha estável) de forma inédita, sem pré-aviso, sem data e imprevisivelmente. O seu carácter inédito afasta-o de ser entendido pelo conhecimento, que nunca o pode explicar nem pode explicar a razão de ser dessa súbita, inesperada e efémera irrupção de algo que não se sabe o que é, numa situação determinada (um país, uma cidade, uma relação entre duas pessoas, etc). As razões pelas quais ele não pode ser explicado estão no facto do seu ineditismo e num outro pormenor: o acontecimento é constituído por “pedaços” da situação (anterior), logo começa por ser indiscernível. Sendo indiscernível, o acontecimento não se pode confundir com o conceito vanguardista das “rupturas»” (que, aliás, Hal Foster muito desconsidera). Mas perante algo que se move, diremos: algo sucede, não sei o que é, mas a isso sou fiel. Portanto, é o sujeito quem decide da sua fidelidade ou não ao acontecimento que ele não entende, nem tem razão sólida para a ele aderir - trata-se aqui de um processo de liberdade de decisão que em muito ultrapassa a democracia formal, sem dúvida, na minha opinião. Aderindo ao acontecimento, o sujeito adere àquilo que não sabe como vai acabar, tem de se disponibilizar para o imprevisível. É como dizer “avançamos e depois logo se vê”, de novo uma liberdade que nos compensa mais que qualquer representatividade.
De resto, sobre a hipótese comunista diz Badiou no último polémico livro sobre Sarkozy: não conheço outra hipótese de emancipação que não a hipótese comunista. Quer dizer, eu também, ou melhor, nós também não - a não ser que queiramos discutir o conceito de emancipação.
Os acontecimentos de Badiou são conhecidos: Ésquilo, Schoenberg, Galileu, Mao, Lenine, S. Paulo, Maio 68, etc. E eu poderia acrescentar: o 25 de Abril e o PREC. O 25 de Abril é interessantíssimo. A decisão do sujeito do acontecimento - a população de Lisboa - foi a de que o golpe era não dos duros do regime, mas de derrube do mesmo. Isto sem garantias nenhumas até uma certa hora desse dia. Quem está por detrás desse golpe quer libertar ou radicalizar o regime? Na base de nada, a população escolheu e decidiu. O sujeito fiel do acontecimento não espera por explicações nem pelo conhecimento adquirido para decidir - a decisão livre é sempre feita na base de nada. E nenhum destes mecanismos que aqui descrevi são integráveis na democracia, atenção - a escolha verdadeira não deve ser feita entre a grupo-partido A ou B, a verdadeira escolha é a do sujeito do acontecimento, a liberdade só pode ser edificada sem interesses particulares e na base de nada.
Claro que Le Siècle é uma portentosa interpretação do século passado, mas não é o volume que expõe o pensamento, ou melhor, a raíz do pensamento antidemocrático de Badiou. Como sabes, temos de ir ao Être et Événement, I e II (com cerca de vinte anos (!) de permeio um do outro). Aliás, modestamente, acho-os dois dos livros do século XX. Hegeliano, sim, Badiou é-o no volume II citado (mas também maoísta e kierkegardiano). Muito sinteticamente, julgo que em Badiou o “sujeito” tem um papel tão fulcral que é ele mesmo que supera a dicotomia democracia-totalitarismo (ele tem a liberdade de ser injustificadamente “sujeito do acontecimento”).
Um abraço
Carlos Vidal