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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Purcell e Haendel celebrados - I

 

 A colocação em linha agora destes textos sobre Purcell e Haendel prende-se com os derradeiros concertos celebrativos das efemérides.

 
Hoje às 21h, na Casa da Música, em concerto integrado no Festival À Volta do Barroco e amanhã às 19h na Gulbenkian, apresentam-se intérpretes credenciados (como aliás se pode constatar nas discografias abaixo), a Academy of Ancient Music e Richard Egarr, mais a soprano Carolyn Sampson, num programa com peças instrumentais e vocais de Haendel e Purcell, incluindo deste último três trechos dos mais maravilhosos, “Music for a While”, “The Plaint” de The Fairy Queen e o Lamento de Dido.
 
Ainda na Casa da Música, no domingo, às 18h, apresenta-se outro reputado agrupamento, a Akademie für Alte Musik Berlin, com obras de Matthew Locke, mentor de Purcell, deste mesmo e de Haendel.

 

 

São concertos que justificam uma chamada de atenção

Dias de Música

 

 

É importante assinalar que se avizinham dias de música excepcionais – e não, não me refiro aos Dias da Música no CCB, em relação aos quais, além de o programa não me suscitar particularmente, permanece a minha reserva ética de princípio sobre uma iniciativa que, por vontade majestática de António Mega Ferreira, veio substituir a Festa da Música, a extensão em Lisboa da “Folle Journée” de Nantes, dela retirando todavia o figurino da sucessão de concertos de 45 minutos. Refiro-me sim a eventos da temporada da Gulbenkian, concretamente do ciclo Grandes Orquestras, e do programa “Música e Revolução” da Casa da Música.
 
Excepcional é a possibilidade de ouvir, no Coliseu dos Recreios, apenas com três dias de intervalo, as duas mais reputadas orquestras juvenis, mas atenção, juvenis e contudo de grande nível, a Orquestra Juvenil Gustav Mahler, que foi o modelo, e, pela primeira vez em Portugal, àquela outra que foi formada tendo a Mahler como modelo, a venezuelana Orquestra Juvenil Simón Bolívar, com o seu electrizante director, Gustavo Dudamel.
 
Para mais, hoje, terça-feira, às 21h, os Mahler tocam Mahler, a Sinfonia nº3, o que é caso simbólico, sob a direcção de Ingo Metzmacher, enquanto no sábado, 25 de Abril, à mesma hora, os Bolívar interpretam nem mais nem menos que a obra entre todas “revolucionária”, A Sagração da Primavera de Stravinsky, esse “sacre” latino-americano que é Sensemayá de Silvestre Revueltas, e fieis às suas origens, mas pode-se que também mais de cor local “folclórica”, Santa Cruz de Pacairigua de Evencio Castellano.
 
A Casa da Música vem organizando à volta do 25 de Abril, o ciclo de “Música e Revolução”, o seu único exemplo de programação verdadeiramente transversal. Este ano, o terceiro do ciclo, e se bem que o acontecimento de maior importância vá ser, a 2 de Maio, uma obra que surge lateralmente à temática, Gruppen (enfim!) de Karlheinz Stockhausen, de 1956/57, o leitmotiv é o Maio de 68. Ora, facto também ele absolutamente de excepção, as duas grandes obras do ano de 1968, e de algum modo sintomáticas dessa conjuntura cultural, Sinfonia de Luciano Berio (que, de resto, entre muitas outras citações, do Maio parisiense ou de O Cru e o Cozido de Lévi-Strauss, é um testemunho da reapreciação de Mahler, e uma homenagem, com a longa citação do Scherzo da Sinfonia nº2) e Stimmung de Stockhausen, serão ouvidas em dias sucessivos, respectivamente sexta às 21h e sábado às 18h.
 
Merece ainda referência, de tal modo é intrigante e original, o projecto musical e poético Caldo Dísio/ Desejo Ardente, proposta do violetista Christophe Desjardins e do filólogo Frederico Sanguinetti, na Culturgest, sexta e sábado 21h30. Conhecemos Desjardins como um grande intérprete de música contemporânea (tem um maravilhoso dedicado a obras de Berio e Feldman). Neste caso a sua viola dialogará com poemas medievais e renascentistas, de Dante, Boccaccio e outros, recitados por Sanguinetti.

Anunciam-se dias de excepção, efectivamente.

 

Ligeti, duas obras

 

Já que a Casa da Música fez a opção – algo contraditória para as normas de uma instituição deste género, mas não vou de novo insistir nesse ponto – de organizar a sua programação musical de acordo com calendário e não com a organização em temporada, iniciam-se pois agora as diversas séries e ciclos.
 
Uma prova de que esses podem ser cruzados e pensados em conjunto ocorre logo este fim-de-semana, com a apresentação sucessiva de duas obras de um dos máximos compositores contemporâneos, Gyorgy Ligeti (1923-2006) em dois concertos que se apresentam entre si desconexos.
 
Assim, hoje, às 21h, San Francisco Poliphony será executada num programa de título genérico “Novo Mundo” – este toque, ou tique não sei bem, de os concertos terem título é algo que me escapa, mas no caso este justifica-se plenamente, com um programa composto por uma raridade de Edgar Varèse, Tuning Up, Um Americano em Paris de Gershwin, a citada peça de Ligeti, New York Skyline de Villa-Lobos (pois que o Brasil é o “país tema” do ano) e a Sinfonia nº 9, “Do Novo Mundo” de Dvorak, com o maestro titular, Christopher König, dirigindo a Orquestra Nacional do Porto.
 
Amanhã, também às 21h, é a vez de começar a série do Remix, introduzindo o compositor residente deste ano, o britânico Jonathan Harvey. Mas com várias obras desse autor, e em concerto dirigido pelo maestro titular do agrupamento, Peter Rundel, será também executada uma das derradeiras obras de Ligeti, o Concerto de Hamburgo, obra destinada a uma formação bastante inusitada, trompa solista, quatro trompas naturais e conjunto.
 
 
San Francisco Poliphony (1973-74) estende a concepção polifónica de Ligeti da escala “micro”, que caracterizava as suas obras dos anos 60, a uma escala “macro”, com uma fascinante heterogenia das linhas melódicas combinando-se no entanto na grande forma. Se é ainda assim pertinente falar a propósito dessa obra de “campo harmónico”, no Concerto de Hamburgo (1998-99, 2003) há sim, de modo bastante mais lato, um espectro sonoro, com inusitadas sonoridades, consequência não só do peculiar conjunto como também da gama particular de cada instrumento ou conjunto de instrumentos. Mas uma e outra obras têm uma inconfundível sonoridade “ligetiana”.
 
A sucessão das duas obras é pois um “evento” de facto, embora não referenciado como tal na programação.
 
Já agora, um pequeno pormenor de ordem prática: sem necessidade de repetição exaustiva, ganhava-se ainda assim inteligibilidade se na parte final da brochura da programação da Casa da Música  o calendário de todos os eventos não fosse tão sumário – é que, por exemplo num caso como este, é necessária alguma atenta observação para não escapar ao potencial interessado que entre um concerto da ONP e um outro do Remix, em dias sucessivos, sucede haver não certamente por acaso duas obras de um dos maiores compositores contemporâneos.

 

Casa da Música - V

 

 

 
Já que no texto anterior evoquei as deslumbrantes Vésperas de Monteverdi que Sigiswald Kuijken dirigiu na Casa da Música em Novembro do ano passado, em que obteve surpreendentes efeitos de espacialização sonora tão só com pequenos movimentos em palco dos cantores e instrumentistas, e também porque tinha dito que ainda faria referência a Quem Chama?, obra de Karin Rehnqvist, “compositora associada” da Casa neste ano de “Focus Nórdico” (obra estreada no meio dos concertos comemorativos dos 100 anos do nascimento de Olivier Messiaen e Elliot Carter, no passado dia 13), vou retomar uma questão concreta das valias da Casa, no ponto das suas ainda não-concretizações.
 
Quem Chama? requer duas vozes femininas, dois trompetes e dois trombones, e um pequeno conjunto instrumental, fagote, contrafagote, violoncelo, contrabaixo, piano, harpa e percussão. O que é muito interessante, e mesmo insólito no campo da composição contemporânea, é que Rehnqvist se baseou 1) nos chamamentos populares do gado, o outro elemento sendo, 2) a própria acústica do auditório. Assim, enquanto o grupo instrumental está no palco, uma das vozes, com uma trompete de cada lado nos extremos, está sobre o palco, e a outra voz, ladeada do mesmo modo, mas pelos trombones, está no cimo do auditório, por trás dos espectadores. Confesso que não percebi muito bem a relação entre o grupo que chama e o que está em palco, mas esta obra merece ficar assinalada como a primeira concebida especificamente para a acústica da Sala Guilhermina Suggia da Casa da Música.
 
Dir-se-ia que as formas do “meteorito” de Rem Koolhaas sugerem em si mesmo, de modo particularmente agudo, uma construção no espaço. Sucede que há um facto bizarro no equipamento, tanto mais atendendo ao vultuoso investimento: há alguns problemas de acústica. Com uma orquestra ou um conjunto instrumental mais numeroso os médios tendem a ficar ofuscados e o equilíbrio a ser mitigado – questão de frequências portanto, além de outros pormenores que exigem atenção mas se resolvem (por exemplo a projecção é condicionada pelas cortinas do fundo da sala estarem ou não corridas). Mas acontece também que a Sala tem uma surpreendente acústica para música antiga e barroca e, pese ainda ter a disposição habitual de um auditório, também para a espacialização sonora – ao ouvir Quem Chama?, o que me ocorreu imediatamente é que afinal é acusticamente possível realizar na Sala Guilhermina Suggia obras da policoralidade veneziana, como as de Giovanni Gabrieli.
 
Antecipando os destaques da programação da Casa da Música para 2009 que em breve farei, digo desde já (e é de tomar nota, que a ocasião vai mesmo ser única e a deslocação justifica-se amplamente) que entre todos se salienta um facto: a estreia em Portugal, finalmente, de Gruppen (1956) de Stockhausen, para três orquestras, uma das mais extraordinárias obras da música da segunda metade do século XX:
 
Com isto quero também reforçar em concreto aquilo que escrevi em função do que tinha sido anunciado para o projecto da Casa da Música e o seu modelo proclamado, a Cité de la Musique em Paris: para além de todas as valias já consolidadas, é possível e mesmo desejável atendendo às próprias promessas, programar de modo mais integrado e interdisciplinar, nomeadamente em torno de concretas questões musicais, de que a espacialização é um dos exemplos mais salientes.

 

Tempo e tempos (Elliot Carter - III)

 

 

 

 
Mobilidade, sobreposições, as chamadas “modulações métricas”, tempo e tempos, jogo de grupos instrumentais e/ou de solista/s e grupos instrumentais – eis características da obra de Elliot Carter, da sua personalidade musical.
 
É importante notar, de resto, que o próprio Carter refere numerosos exemplos precedentes da sua metodologia e princípios composicionais na história da música, os madrigalistas e virginalistas inglesas, os cravistas franceses, as cenas de óperas de Mozart, Verdi ou Mussorgsky em que ocorrem acções paralelas com diferentes tempos e métricas, etc. Compreende-se assim que tenha retomado à sua própria maneira a noção de concerto, “concerto grosso” ou concerto solista, de obras para diferentes grupos instrumentais ou mesmo de episódios musicais separados. Como se compreende que o tempo e as temporalidades, uma concepção não-teleológica do tempo e da obra musical lhe sejam axiais – não há em Carter um princípio para chegar a um fim, o que o distingue não apenas dos princípios da tonalidade funcional como das concepções ontogenéticas do material nas correntes seriais e post-seriais.
 
Esta recusa do “pensamento teleológico”, com constantes acontecimentos e transformações, nada tem a ver com a concepção recorrente,  simbólica e teológica do tempo musical que há em Messiaen - como em T.S. Elliot, ou pelo próximo, há em Messiaen não o "eterno retorno" de Nietzsche mas um retorno incessante, "O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no temo futuro/ E o tempo futuro contido no temppo passaado". Isso é o que radicalmente diferencia os dois compositores e no entanto também os aproxima enquanto singulares conceptualizadores do Tempo.
 
Por outro lado, pesem ainda algumas suas inusitadas combinações e/ou oposições instrumentais, Carter não é um colorista e pensadores dos timbres como Messiaen (é de notar por exemplo que escreveu cinco quartetos de cordas e o outro obviamente nenhum, pois não se imagina Messiaen trabalhando com um conglomerado tímbrico tão próximo), e pesem ainda a mobilidade e sobreposições não é, ao contrário do outro, um polirritmista.
 
Elliot Carter é antes do mais um construtivista, altamente complexo, mas em cuja música todavia se percepciona o movimento, o trajecto, a direcção das linhas musicais – e pois que evoquei tê-los vistos juntos em Varsóvia, em 1985, a ele e a Lutoslawski, ocorreu-me durante estes concertos na Casa da Música pensar que são dois diferentes mestres da direccionalidade, questão que hoje, contra a expansão magmática característica do pensamento ontogenético, é de novo de tanta actualidade.
 
Expostas estas características, foi representativo o conjunto de quatro obras, Tempo e Tempi, Réflexions, Asko Concerto e Three Occasions for Orchestra, apresentadas nesta celebração do duplo centenário na Casa da Música? Seguramente muitíssimo menos que as três obras apresentadas de Messiaen, sendo também certo que em termos estritos de execução Carter é um autor mais difícil.
 
Faltou uma obra indiscutivelmente maior, como por exemplo a Sinfonia de Três Orquestras, faltou um grande concerto solista, como, entre vários outros, o Concerto para Piano. Réflexions e Three Occasions for Orchestra são obras relativamente “ocasionais”, ainda que, pelo seu carácter festivo, houvesse algum sentido na presença da última na celebração deste compositor ora centenário. Particularmente representativas são sim Tempo e Tempi e Asko Concerto.
 
Desde que em 1975 compôs A Mirror on Which to Dwell sobre poemas de Elizabeth Bishop e Three Poems of Robert Frost, que Carter tem escrito algumas obras vocais. De facto, de modo explicito ou mais subterrâneo, a sua obra é marcada por poetas como William Carlos Williams, Hart Crane ou Wallace Stevens – e mais genericamente haveria todo um longo capítulo a escrever sobre influências literárias, de Joyce (o tempo, claro, a “epifania”) a Calvino, este objecto de uma obra, mas um trio instrumental, Com leggereza pensosa – Omaggio a Ítalo Calvino.
 
Tempo e Tempi é uma obra de grande importância, porque no poema de Eugénio Montale em que a obra colhe o título está inscrito uma concepção paralela à do próprio Carter: “Não há um tempo único: há muitas fitas / que paralelas deslizam”.Infelizmente, a soprano Claire Booth não teve o sabor da língua, do italiano dos versos de Montale, Quasímodo e Ungaretti.
 
Só no Asko Concerto, com Franck Ollu dirigindo o experimentado Remix, houve um momento à altura da clareza e da concisão da complexidade de Carter, ao nível mais representativo do compositor, com os 16 instrumentistas em solo ou indo participando de diferentes intra-formações, duos, trios ou um quintetos E reconheça-se, de qualquer modo, que as Three Occasions for Orchestra pela ONP dirigida por Stefan Asbury foram brilhantes.
 
Mesmo que no modo concreto como se realizaram as intencionalidades desta celebração dos 100 anos de Olivier Messiaen e Elliot Carter, o americano estivesse longe do nível de representatividade do outro, a ocasião de ouvir quatro obras suas foi suficientemente importante para ser devido assinalá-la.

 

Duplo centenário (Messiaen - VIII, Elliot Carter - II)

 

 

 
Olivier Messiaen
Oiseaux Exotiques, Chronochromie, Et expecto ressurrectionem mortuorum
Elliot Carter
Tempo e Tempi, Réflexions, Asko Concerto, Three Occasions for Orchestra
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Stefan Asbury, Franck Ollu
Casa da Música, 12 e 13 de Dezembro
 
 
Olivier Messiaen nasceu a 10 de Dezembro de 1908, Elliot Carter um dia depois. Ao longo do ano, os respectivos centenários têm sido assinalados, compreensivelmente com maior incidência o do compositor francês. Não obsta a que este dia único de intervalo entre o nascimento de um e de outro sugeria também a possibilidade de uma celebração conjunta.
 
É um outro activo a assinalar à Casa da Música ter organizado um programa de concertos comemorativo deste “duplo centenário”, sendo que no caso o facto é assinalável mesmo no panorama internacional. Celebrar conjuntamente os dois compositores implica também as suas diferenças, muitas, e eventuais aproximações. Esse é um primeiro ponto. Um segundo diz concretamente respeito a estes concertos.
 
Uma das valias da Casa da Música, como amiúde tenho assinalado, é contar com a Orquestra Nacional do Porto e o Remix Ensemble como agrupamentos residentes. Já no programa “Música e Revolução” deste ano (o ciclo especial da Casa em torno da data do 25 de Abril, embora abordando latamente o conceito de “revolução), a que infelizmente não pude assistir, foram programados concertos tendo o Remix na 1ª parte e a ONP na 2ª, com “troca” de maestros, nesse caso mesmo os directores titulares de uma e outra formação, respectivamente Peter Rundel e Christopher König (em rigor na altura ainda maestro titular indigitado), ou seja Rundel, maestro do Remix, também dirigiu a ONP, e König, maestro da ONP, também dirigiu o Remix. Um mesmo procedimento, mas com maestros convidados, ainda que presenças regulares, foi seguido agora.
 
No concerto de dia 12, Asbury, que foi o primeiro director do Remix, dirigiu essa formação na 1ª parte com Oiseaux Exotiques de Messiaen e Tempo e Tempi e Réflexions de Carter e na 2ª parte Ollu dirigiu a ONP em Chronochromie, uma das mais importantes obras de Messiaen, finalmente em 1ª audição em Portugal. No concerto de dia 13, Ollu dirigiu o Remix em Asko Concerto de Carter* e na 2ª parte Asbury dirigiu a ONP em Three Occasions for Orchestra de Carter e Et expecto ressurrectionem mortuorum** de Messiaen.
 
Assim, além da eventual aproximação (e divergência) dos dois compositores, primeiro ponto, implicando também saber se o conjunto das obras de cada um apresentadas era representativo das respectivas personalidades musicais, isto é, a intencionalidade geral da proposta, o segundo ponto colocava questões de intencionalidades particulares no modo como, para realizar a proposta geral, se organizaram os quatro pares, dois compositores, dois concertos, dois maestros e duas formações. É preciso ter todos estes dados em conta para atender às particularidades do discurso crítico sobre este evento, sendo que não tem o menor sentido, num projecto tão carregado de intencionalidades, falar apenas de um ou de outro dos concertos, ou falar deles como eventos separados.
 
Parece-me indiscutível em primeiro lugar, que Messiaen teve uma presença muito mais representativa, pois que Oiseaux Exotiques, Chronochromie e Et expecto ressurrectionem mortuorum são três obras seguramente maiores, e pelo menos Chronochromie (senão Et expecto… também) uma das mais extraordinárias, e até de toda a música do século XX. Todavia também foi patente uma diferença de afinidades no tocante aos maestros.
 
Compara-se muitas vezes a Turangalîla-Symponie com a Sagração da Primavera de Stravinsky; o paralelo é no entanto erróneo. Se há obra de Messiaen que na sua extraordinária densidade se pode aproximar da de Stravinsky, essa é sim Chronochromie – e de resto também não lhe faltou o “escândalo” na estreia, que na tradição da narrativa da modernidade inaugurada justamente pela Sagração é parte integrante da “aura” de tão decisivas obras. Deduzir-se-á pelo exposto que esta obra portentosa não é nada fácil para uma orquestra e portanto também para quem dirige. Ollu optou pela segurança possível, mas ouvindo antes Oiseaux Exotiques como no dia seguinte Et expecto… ficou confirmado que Asbury é um maestro de muito maiores afinidades com Messiaen, deixando portanto a sensação que há a lamentar não ter sido ele a dirigir também Chronochromie – serão, compreensivelmente, dados inerentes a  uma programação exigente, em que havia de repartir as tarefas, mas o certo é também que a audição se ressentiu.
 
Extraordinária, apoteose desta dupla jornada, e um dos grandes momentos*** das celebrações de Messiaen em Portugal foi a interpretação de Et expecto ressurrectionem mortuorum. A obra exige meios de uma orquestra mas não é para orquestra, é sim para um alargado conjunto de quarenta instrumentistas de sopros e percussões metálicas. Asbury fez verdadeiramente a obra soar como vinda das profundezas (“Des profondeurs de l’abîme…”, 1º andamento) até à resplandecente glória – simplesmente inolvidável!
 
 
 
 
 
* Nessa 1º parte do 2º concerto foi também apresentada, em estreia, Quem chama?, obra da sueca Karin Rehnqvist, que neste ano do “Focus Nórdico” foi na Casa da Música “compositora associada” – obra a que ainda farei uma referência.
 
** Et expecto… tinha sido estreado em Portugal no passado dia 19 de Março pela Orquestra Metropolitana de Lisboa dirigida por Michael Zilm. Não tendo escrito na altura, ainda retomarei esse concerto, bem como a Turangalîla-Symphonie pela Orquestra de Baden-Baden dirigida por Sylvain Cambreling, a 29 de Janeiro, no Ciclo das Grandes Orquestras da Gulbenkian, numa rememoração deste “ano Messiaen”
 
*** O programa na Casa da Música incluiu também, além do Quator pour la fin du Temps, antes destes concertos, as Visions de L’Amen para dois pianos e L’Ascension, na versão para órgão, que não ouvi.  

 

As mãos e os afectos (António Pinho Vargas X 3 - IV)

 

 

 
António Pinho Vargas
Casa da Música, 14 de Dezembro
 
Quando do lançamento de Solo, o duplo disco que marcou o regresso de António Pinho Vargas aos territórios improvisacionais jazzísticos após uma longa ausência de 12 anos, reservei a audição directa para mais tarde – ou, se quiserem, por outras palavras, por variadas razões não me apeteceu ir ao concerto de apresentação na sala onde o disco foi gravado, o Pequeno Auditório do CCB.
A oportunidade surgiu agora, cinco meses volvidos. Resultou ela também de uma circunstância infeliz: na programação da Casa da Música estava previsto para o passado dia 14, e integrado no “Focus Nórdico” desde ano de 2008, a apresentação do Esbjörn Svensson Trio, e, como se sabe, Svensson morreu acidentalmente; a data vaga foi assim ocupada por um concerto de Pinho Vargas.
Acontece que não é facto dispiciendo ouvir o pianista na sua cidade de origem, aquela em que começou os seus estudos musicais e a sua vida de músico profissional, justamente de jazz. E não é dispiciendo não propriamente por essa circunstância biográfica em si, mas porque, como era previsível, e se confirmou, António Pinho Vargas colhe no Porto um capital de afectos que é um factor importante no “feed-back” do público a um músico – e o jazz é, por assim dizer, o mais interactivo dos géneros musicais, de interacção entre os membros de um grupo, mas também de interacção entre os músicos, ou um músico a solo, e a resposta do público. E a resposta da sala, a manifestação dos afectos, foi a razão porque fez Pinho Vargas escolher tocar ainda, extra programa , “Cantiga para Amigos”.
No momento em que está prestes a estrear uma sua nova ópera, Outro Fim, já amanhã na Culturgest, e glosando o tópico que ele tem insistido da sua “heteronímia”, da sua dupla existência enquanto pianista-compositor de jazz e compositor erudito contemporâneo, encontra-se ele assim em pleno apogeu dessa heteronímia. E embora “a influência da angústia”, invertendo os termos de Harold Bloom, seja umas das suas características composicionais mais marcantes como já assinalei, não parece que este presente “apogeu da heteronímia” lhe seja particularmente angustiante, a julgar pelo que se lhe ouviu na Casa da Música, seis dias antes da estreia da ópera.
Como também já disse, Pinho Vargas tem uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical, uma noção dos dispositivos pulsionais e do sentir. Essa relação estabelece-se imediatamente no jazz pelo jogo e mãos – e de pés, também, bastante activos. Ouvindo-o agora, não creio que os dois campos sejam afinal tão absolutamente impermeáveis: a sua linha de improvisação em “Quedas d’água (com lágrimas)” derivou para “clusters” no extremo agudo que se diriam provindas da sua aprendizagem junto de Ligeti e da sua admiração por esse compositor – esse facto, mais que uma remota memória da herança do “free jazz” dos seus primórdios musicais (Cecil Taylor, nomeadamente), já que entretanto, e sobretudo, as suas linhas aproximaram-se no “toucher” de um Chick Corea, ou, mais recentemente, na assumpção descomplexada de uma base de melodismo tipo “song”, de um Mehldau.
Curioso foi que tivesse incluído no programa um tema que não consta do disco Solo, “Da Alma”. E justificou-se ele, dizendo ter sido um “lapso”, porque esse tema, como outros já gravados, consta do disco resultante das mesmas sessões mas que só será lançado para o ano. Diria que “lapso” foi essa sua explicação. É óbvio que foi o lançamento do disco que o recolocou “on the road” fazendo concertos a solo, mas esses não têm que ser meros concertos promocionais, estritamente limitados ao repertório constante do disco. Neste momento, afinal, António Pinho Vargas é, mais do que nunca, um músico conscientemente livre, e se essa é uma razão pela qual não deu sinais deste “apogeu da heteronímia” estar a ser um momento de particular “influência da angústia”, também supõe que ele será tanto mais livre quanto compuser os seus concertos de acordo com os temas que o sentir ditar, e não segundo a estrita razão de haver um disco que é de novo a razão imediata, mas não única, para o reencontro das mãos e dos afectos.

 

Schütz sagrado

 

Heinrich Schütz
Excertos dos Salmos de David e Symphoniae Sacrae
Cantus Cölln, Concerto Palatino, Konrad Junghänel
Casa da Música, 14 de Novembro
 
 
Já tive ocasião de explicar que há certas obras, certos concertos, que justificam uma ideia de peregrinação – e este foi também um desses, raros. Se não erro, há mais de 25 anos (!) que não se realizava em Portugal um concerto dedicado a Schütz, o primeiro mestre alemão do barroco, e logo com obras de duas grandes colectâneas, os Salmos de David e as Symphoniae Sacrae, acrescendo a justificada reputação dos intérpretes.
 
Decisivamente marcada pelo novo estilo de monodia italiana e também pela policoralidade venezeniana, Schütz adaptou esses princípios à tradição luterana – com ele começou a linhagem que culminaria em Bach. As suas obras são admiráveis exemplos de retórica musical e de fervor religioso.
 
O Cantus Cölln é conhecido por se compor de uma voz real por parte, isto é, de nas linhas da clivagem na polémica sobre o “Bach choir” lançada por Joshua Rifkin e Andrew Parrot pender para o lado desses, os minimalistas. Casos há em que a opção, pela excelência da realização, se tem revelado pertinente – é o caso da extraordinária gravação da cantata Actus Tragicus de Bach. Mas outros registos há também em que a opção é bastante menos convincente, como os da Missa em si menor de Bach e da Selva morale e spirituale de Monteverdi.
 
Mesmo sendo certo que nas Symphoniae Sacrae estão estipuladas “vozes obrigadas”e “vozes facultativas”, pelo que é uma opção possível restringir-se estritamente às primeiras, porventura possibilitando uma melhor inteligibilidade do texto, o que é fundamental em Schütz, tenho dúvidas que a opção minimal tenha conseguido traduzir a absorção pelo compositor alemão da prática veneziana da policoralidade. Também uma das sopranos foi algo irritante.
 
Mas expostas as reservas, há que dizer que irradiou a extraordinária beleza desta música, intensamente interpretada numa relação de grande conhecimento e familiaridade, com dois momentos mesmo extraordinários: o “Ewigkeit” (eternamente) do Salmo 137 e sobretudo “Saul, Saul, was ver verfolgst du mich”, de resto porventura a mais celebra das Symphoniae Sacrae.
 
Sim, a peregrinação justificava-se e justificou-se.
 
 
 
PS – Para nossa penúria, por decisão arbitrária do mega-senhor do CCB, já perdemos nomeadamente este ano uma Festa da Música dedicada a Schubert. Para o ano, em termos do da importância da proposta, a perda será ainda maior: a “Folle Journée” de Nantes terá como tema “De Schütz a Bach”. Voltarei ao assunto.

 

Casa da Música - IV

 

 

 

Sempre fui defensor do modelo de fundação e de parceria público-privado, como em Serralves, para a Casa da Música – quem porventura tiver presente uma brochura editada pelo “Público” quando da inauguração da Casa em Abril de 2004, poderá constatar ser essa a posição que eu defendia. Entendo isso, por várias razões, nomeadamente por achar fundamental a atração mecenática de capitais para a cultura, uma gestão mais profissionalizada sem os vícios das burocracias estatais e também uma maior autonomia face à tutela política, em que, como tivemos recente exemplo no consulado Pires de Lima / Vieira de Carvalho, afinal ainda ocorrem recorrentemente tentações dirigistas.*
 
Mas a entrega das responsabilidades de gestão directa a alguém vindo do sector privado não deixa de trazer também alguns riscos. Como me dizia recentemente um produtor de indústrias cultural “o problema dos gestores é que pensam nos fins e não nos meios”, ou seja, no caso, que podem não ter devidamente em conta as valias culturais para além da sua tradução imediata em afluências de públicos, ou “box-office”.
 
Instituída a Fundação, foi escolhido como administrador-delegado Nuno Azevedo, o filho mais velho de Belmiro de Azevedo. Que ele tenha optado por um projecto cultural em vez do “universo Sonae” é algo que já diz muito da sua motivação para o cargo. Ao longo destes três anos, tenho sido testemunha do modo como Nuno Azevedo “abraçou a causa”, não sem alguns excessos: se compreendo que tenho dito que “Agora a Casa da Música é um diamante delapidado. Antes, era um diamante em estado bruto”, já me parece demasiado auto-congratulatório e mesmo injusto que, no balanço dos três anos, fundamentalmente tenha assinalado “o facto de termos conseguido inverter a ideia praticamente generalizada de que o projecto da Casa da Música era frágil” (“DN” de 14-04-07).
 
Mas, exemplo do seu empenho, ainda muito recentemente, na “Sábado” da passada semana, Nuno Azevedo usou o Direito de Resposta para detalhadamente e com números concretos contestar uma nota anterior de Pacheco Pereira que tinha dito estranhar “o desperdício” da brochura da programação de 2009 ter sido distribuída com o “Público” – comentário aliás sumamente hipócrita porque Pacheco começava por dizer “Tenho a maior das estimas pela Casa da Música e não me pronuncio sobre o mérito da sua programação, nem sobre o modo como anuncia os seus programas, a não ser quando estranho o desperdício”, sendo que a sua “maior das estimas” é incongruente pois que é inimigo jurado dos investimentos públicos na cultura (e foi o Estado que construiu a Casa da Música), e ninguém o imagina a assistir a um concerto – como a ver um espectáculo ou a ver um filme.
 
Mas por todas estas razões há também que fazer notar que, sendo Nuno Azevedo o administrador-delegado, os laços Casa da Música – Sonae estão em risco de se tornarem em ligações perigosas.
 
Não me choca nada que uma grande campanha promocional da Casa seja feita no “Público”, porque, apesar do seu triste declínio, o diário da Sonae.com é ainda de modo claro aquele que tem públicos que mais potencialmente são também os da Casa. Mas já me parece muito questionável que no piso térreo do edifício haja agora uma loja da Optimus e francamente indecoroso que entre os benefícios oferecidos pelo Cartão Amigo Casa da Música se conte “Entradas gratuitas do Continente online em compras superiores a € 75”, como se podia constatar na promoção inserida no “Ípsilon” da semana passada.
 
Por isso, para benefício geral, creio importante uma chamada de atenção.
 
 
 
 
* Também debalde tive esperanças que a constituição de uma tal fundação contribuísse para revitalizar no mesmo sentido, que legalmente é o que tem, a Fundação Centro Cultural de Belém, e acho que não se pode deixar de assinalar uma flagrante discrepância, mais outra, Lisboa-Porto, sendo que na primeira o Estado investe por inteiro ou quase, e na segunda é que faz parcerias e solicita mecenaticamente capitais privados.

 

Pélleas reencontrado

 

 

 

 
 
 
Schönberg
Pelléas und Mélisande
e obras de Adams, Tüur e Saarariaho
Orquestra Nacional do Porto, Christopher König
Casa da Música, 20 de Setembro
 
Depois de durante demasiado tempo ter indo anunciando a sua programação trimestralmente – o que além de irritante para o planeamento dos espectadores era um contrassenso para a própria instituição, pois não permitia ver com clareza as linhas de orientação – a Casa da Música passou desde o ano passado, respeitante a este, a anunciar a sua programação justamente num módulo anual.
 
Tanto melhor se deu esse passo, que era imprescindível, mas este conceito de uma instituição musical apresentar a sua programação de acordo com o ano civil, e não o conceito de temporada, também não me parece o mais curial, porque é nesses termos de temporada que assenta o trabalho de formações musicais.
 
Prova do que digo é o facto do concerto do passado dia 20 de Setembro, integrado no ciclo Novas Músicas, ter de facto sido a abertura da temporada da Orquestra Nacional do Porto, e na ocasião a estreia do novo maestro titular, pedra angular que faltava, Christopher König – e é disso que quero falar.
 
König já antes dirigira a ONP, bem como até também o Remix – em Abril, no ciclo Música e Revolução, noutra prova da valia que para a Casa da Música é ter ambos os agrupamentos, os respectivos maestros “trocaram”, König dirigindo o Remix e Peter Rundel a ONP. Mas a responsabilidade de um concerto de estreia como maestro titular é sempre muito particular.
 
“Tough”, dizia-me horas antes König. Foi o contrário da facilidade de facto optar pelo “outro Pélleas”, não o de Debussy, mas o de Schönberg (ou o mais notório dos outros, pois que para o drama de Maeterlinck existem também as músicas de cena de Fauré e Sibelius) e três obras contemporâneas, nenhuma delas de execução acessível, e uma, Lollapallaza de John Adams, mesmo francamente virtuosística – e feita a abrir o concerto com tanto brilho que me ocorreu até a possibilidade de ainda um dia virmos a ouvir essa suprema obra orquestral de Adams que é Eldorado.
 
Mas o importante era mesmo Pélleas e Mélisande, poema sinfónica de grande fôlego, e obra raríssima de se ouvir – para ser preciso, em Portugal, que eu tenha presente e saiba, foi feita uma vez pela então Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional (com o maestro Richard Duffalo), mas na Gulbenkian, a, pasme-se!, 7 de Junho de 1974 (por acaso, as últimas representações do Pélleas et Mélisande de Debussy foram na mesma altura).
 
Pedagógico, König fez primeiro uma introdução, apresentando os motivos e temas dos episódios. Depois, deu provas de um apurado trabalho com os naipes – algo que de resto é do mais importante no labor de um maestro-director -, de sentido das densidades e de fôlego narrativo. Estreia auspiciosa, pois.
 
Como já disse alguém mais próximo do processo, “parece que ele vestiu mesmo a camisola”. Tanto melhor.