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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Vivacidade napolitana

 

 

Lo frate ‘nnamorato
de Pergolesi
encenação de Luca Aprea
Os Músicos do Tejo, Marcos Magalhães
Centro Cultural de Belém, 20 de Novembro, às 21h
 
 
Um dos aspectos mais estimulantes do recente panorama musical português é o florescimento de grupos dedicados à interpretação historicamente informada de música antiga e barroca. Destes apenas um, a Orquestra Barroca da Casa da Música, teve uma origem institucional, os outros sendo consequência da iniciativa e interesse autónomos de músicos.
 
O movimento é, como se sabe, genérico, e talvez mesmo o mais marcante do panorama musical internacional nos últimos 20 ou 30 anos. Num livro que já se tornou uma referência não apenas para a sociologia da música, mas também para a agora justamente designada “sociologia das mediações” e mesmo para as ciências humanas em geral, Antoine Hennion dedicou-lhe largo espaço de análise em La Passion Musicale – Une sociologie de la médiation (Métailié, 1993). Mas o movimento começou a manifestar-se com um considerável atraso em Portugal, tendo vindo a vingar fruto do lastro deixado pelos saudosos Cursos de Mateus, pelo início de cursos específicos em escola de música e academias, por especializações no estrangeiro, ou pelo interesse de músicos que já alguns deles paralelamente aos seus instrumentos tradicionais se começaram também a dedicar aos antecedentes barrocos daqueles.
 
Um desses grupos foi o Ensemble Barroco do Chiado, com base no qual os cravistas Marcos Magalhães e Marta Araújo constituíram um outro, Os Músicos do Tejo, vocacionado para o reportório de autores portugueses mas também visando contextualizá-los, abordando pois autores e reportório que tenham influenciado esses compositores portugueses. È assim que deram um passo que faltava, pesem ainda algumas esporádicas realizações anteriores: a ópera. E é assim que depois do sucesso da apresentação de La Spinalba de Francisco António de Almeida no Centro Cultural de Belém em Fevereiro de 2008, sucesso que levou mesmo à sua reposição em Janeiro de 2009, abordam agora uma obra arquetípica da commedia musicale, Lo frate ‘nnamorato de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736).
 
Pergolesi deve a sua reputação antes do mais à tempestade provocada pela apresentação em Paris, em 1752, da sua ópera bufa La serva padrona, originalmente um intermezzo (apresentado entre os actos de uma ópera séria), desencadeando a famosa Querelle des Bouffons, dos partidários da ópera bufa contra os defensores da tradição francesa da tragédie lyrique, de Rousseau contra Rameau. Outra obra sua é célebre, é mesmo hoje a mais célebre das suas obras e uma das mais reputadas de todo o reportório barroco, o Stabat Mater. Acrescente-se a isso a sua muito curta vida e ficam estabelecidas as razões fundamentais da sua nomeada.
 
Mas como compositor na altura em que florescia a escola napolitana, Pergolesi também compôs óperas sérias, como uma versão do célebre texto de Metastasio L’olimpiade, ou commedie per musica, que tinham estatuto autónomo, diferente do intermezzo, constituindo um espectáculo. A mais célebre é justamente Lo frate ‘nnamorato, pela sua importância histórica e por ser a de maiores ecos modernos, por via da produção dirigida por Riccardo Muti, em 1989 no Scala, de que há registo em disco e em dvd. Abordar esta obra é pois um salto, e um salto ousado, para Os Músicos do Tejo.
 
Esclareça-se desde já que embora o programa indique apenas “espaço cénico”, não se trata de uma apresentação semi-staged, como hoje tanto se pratica, mas mesmo de uma encenação, só que com um espaço muito simples mas também muito funcional. Luca Aprea, que trabalhou nomeadamente com o mestre maior do teatro da tradição napolitana, Roberto de Simone, logrou uma encenação de grande vivacidade e por vezes de franca comicidade, o que é importante ao gesto de nos apresentar uma obra como Lo frate ‘nnamorato.
 
Mantendo sempre o interesse, a realização musical é no entanto desigual. Marcos Magalhães mostrou à saciedade as suas aptidões no baixo dos recitativos, mas como maestro falta-lhe um gesto mais preciso e falta à sua direcção uma maior vivacidade; mantém todavia a coesão do conjunto, com destaque para o esplêndido quinteto que conclui o Acto II. As cordas ressentem-se com uma articulação e um fraseado que nitidamente precisariam de ser muito mais trabalhados, enquanto os sopros são aptos, com inevitável destaque para esse músico de excelência que é António Carrilho em flauta de bisel.
 
A desigualdade é ainda mais notória nos intérpretes dramático-vocais, desde logo porque os homens são muito superiores às mulheres. João Fernandes é português mas é um cantor internacional, por via do seu trabalho sobretudo com Les Arts Florissants e William Christie. No papel de Dom Pietro, o mais cómico, papel de um pedante ridículo, Fernandes é impagável, e é em especial brilhante em “Si stordisce il Villanello”, ária de voz mista, de peito e de cabeça (falsete). Luís Rodrigues (Marcaniello) e Carlos Guilherme (Carlo) são dois intérpretes em plena maturidade, cada vez melhores, sendo que o primeiro tem também um apurado sentido cénico.
 
Do lado feminino, como disse, o panorama é mais problemático. Falta caracterização aos amantes, Eduarda Melo (Ascanio, um papel travestido) e Inês Madeira (Luggrezia) e o desequilíbrio acentua-se ainda mais nas duas duplas, Nina e Nena e Vanella e Cardella (os nomes dizem da proximidade), com Sara Amorim (Nina) e Sandra Medeiros (Vanella) mais desenvoltas enquanto Joana Seara (Cardella) é baça e Carla Caramujo (Cardella) estridente.
 
Há um grande lapso, em relação aos padrões já internacionalmente correntes, na apresentação de óperas barrocas em Portugal, e a mais recente, a Agrippina de Haendel no São Carlos foi mesmo um desastre incomensurável. Tanto mais se salienta o gesto de realização agora de Lo frate ‘nnamorato, que apesar dos desequilíbrios apontados, justifica uma viva recomendação.
 
P.S. - Uma nota para as modelarmente pedagógicos notas ao programa, contextualizando de modo muito pertinente a obra e o projecto da sua concretização.
 
 
 
Próximos espectáculos: CCB, hoje e amanhã às 21h.

 

Ana e Ana

 

Sylvie Rocha e Pedro Lacerda, foto de Jorge Gonçalves
 
 
 
ANA
De José Maria Vieira Mendes
Com Sylvie Rocha, Pedro Lacerda, António Simão e Rita Brütt
Encenação de Jorge Silva Melo
Artistas Unidos
Centro Cultural de Belém
 
 
José Maria Vieira Mendes revelou-se em 1998, com um notabilíssimo texto a partir de Kafka, Dois Homens. Se continuou e tem continuado a escrever textos a partir de outros autores (Dostoievski, Schnitzler ou o Padre António Vieira), o que mais importa é o seu segundo momento de revelação, com um texto original, T1, em 2003, espécie de manifesto geracional também, já que colocando em cena situações de actualidade, de uma geração jovem aqui, e texto de uma considerável claustrofobia.
 
É de reter o título T1, tanto mais quanto uma dos mais recentes obras de Vieira Mendes, de 2008, se intitula Onde Vamos Morar. O problema da habitação, ou os problemas na habitação, no choque das personagens encerradas num mesmo espaço, nas casas, afigura-se um dos topos essenciais da sua escrita. Mesmo em Outro Fim, libreto para a ópera – e notável libreto de uma ópera de câmara -, que a partir do texto viria a ser composta por António Pinho Vargas em 2008, havia um minucioso detalhe das divisórias e compartimentos.
 
Mas disse que T1, qual efectiva matriz, era também, um manifesto geracional, Vieira Mendes viria a escrever mesmo uma trilogia sobre pais e filhos constituída por A Minha Mulher, O Avarento e Onde Vamos Morar. Pais e filhos e casais são outro topos da sua escrita.
 
Agora há Ana. Há de novo uma delimitação espacial muito preciso, uma sala de estar, uma sala de uma casa, e as mesmas recorrências desse topos: “Vão deitar a casa abaixo” ou “Encontro pessoas, casas habitadas”.Mas há uma mãe e uma filha, Ana e Ana – caso para perguntar se neste tradutor de Brecht se tratará de uma reminiscência das Hanna 1 e Hanna 2 de Os Sete Pecados Capitais de Brech/ Weill. E já que falei dessa outra actividade é de assinalar o eco pinteriano – e Vieira Mendes traduziu Pinter – na personagem que instaura a estranheza, esse visitante Outro Homem, que talvez já tenha habitado naquela casa e tenha sido anterior marido de Ana1.
 
Mas atente-se bem ao título, Ana – é um nome corrente mas também um palindroma, que pode ser lido de trás para a frente, como que instaurando um vaivém no texto. E há Ana e Ana, que tem o mesmo nome mas são uma e outra, repetição e diferença.
 
Ana, retomando ainda os topos mais reconhecíveis do autor é a sua peça estruralmente mais original e formalmente abstractizante. Não há linearidade na sucessão de cenas ou quadros – uns, que vêm depois, podem ser cronologicamente anteriores ao precedente. A atenção dos espectadores, os modos de recepção, são assim problematizados e ao mesmo tempo mais abertos de leituras. E como se pode deduzir é um texto de grande complexidade.
 
Entre a objectivação e a abstracção, o encenador Jorge Silva Melo optou por, tanto quanto possível, deixar o texto fluir. Acontece que a opção não faz jus à singularidade do texto. Há um reconhecível estilo Artistas Unidos, por exemplo na frieza da cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves e das luzes de Pedro Domingos, que aqui se torna quase asséptico. Mas Ana, o texto sobrevive, e na sua particular singularidade é uma confirmação acrescida do estatuto ímpar de José Maria Vieira Mendes na dramaturgia portuguesa contemporânea.
 
 
CCB até domingo, Teatro Municipal de Almada de 26 de Novembro a 13 de Dezembro

Uma concepção abusiva (Messiaen - VII, Quator - II)

 

 

Messiaen
Quarteto para o fim do Tempo
Schostakovich Ensemble
Poemas de Nelly Sachs ditos por Beatriz Batarda
Espaço Cénico Paulo Nozolino
CCB, 10 de Dezembro
 
 
A ficha do concerto com que o CCB assinalou o centenário do nascimento de Messiaen (no preciso dia em que ocorria) é inusitada, e desde logo indicadora de algumas questões: certo, o Quarteto para o fim do Tempo é uma obra imensamente sugestiva, mas será pertinente e mesmo legítimo enquadrá-la pela leitura de poemas e um dispositivo cenográfico?
 
Admitamos o seguinte, pelo menos enquanto interrogação: sabendo nós que a obra foi composto e estreado num campo de prisioneiros de guerra, podemo-nos abstrair do mais geral conhecimento dos factos dessa guerra, do nazismo e do processo concentracionário?
 
Uma coisa é a indispensável memória histórica, outra é a mescla de factos apesar de tudo de ordem diferente, e tanto mais a mescla envolvendo uma concreta apresentação de uma obra como a de Messiaen, eventualmente configurando um abuso.
 
Isto não significa de maneira nenhuma uma “suspensão” da memória do Holocausto – só que ela é no caso deslocada, de modo mutuamente infrutífero, para o Quator pour la fin des Temps e para a concreta memória do universo concentracionário e de extermínio, incluindo as manifestações artísticas que ainda ocorreram nesse terrível universo.
 
O Quator foi estreado a 15 de Janeiro de 1941 no Stalag VIII A do campo de prisioneiros de Görlitz, e isso é parte da sua aura própria. Mas, meses depois, a 22 de Junho, já libertado, Messiaen apresentava a obra no Théâtre des Marthurins em Paris. O que eu desconhecia, e só fiquei a saber por um artigo no “Le Monde” da passada sexta-feira, foi que em Paris, durante a ocupação, qual acto cultural de “resistência”, foram apresentadas mais obras compostas por prisioneiros de guerra, tendo-se realizado inclusive um concerto dirigido por Charles Munch, só com obras originadas nessas circunstâncias, e tendo mesmo a SACEM, a sociedade de autores, aberto um concurso para os autores e compositores prisioneiros.
 
Radicalmente diferente foi a sorte de compositores como Viktor Ullmann, Gideon Klein, Erwin Schulhoff ou Hans Krása, vários deles tendo passado pelo campo de Theresienstadt, em que estavam internados sobretudo artistas e que os nazis utilizaram também para “proporcionarem” visitas de organizações como a Cruz Vermelha, e que todos esses acabaram vítimas do extermínio.
 
Aliás, o CCB vai apresentar em Fevereiro um ciclo de relevo, “O Nazismo e cultura: confrontações”, que incluirá nomeadamente a ópera que Ullmann escreveu no cativeiro, O Imperador da Atlântida. Acontece que fazer da apresentação do Quator pour la fin des Temps, obra de crença e de esperança, uma antecipação desse ciclo – o que objectivamente foi o programa – é um abuso histórico e foi também um abuso estético.
 
Falando da arte “depois de Auschwitz”, eu próprio tenho incorrido no lapso de citar recorrentemente Celan, omitindo Nelly Sachs, quando afinal desmentiram ambos o célebre ditame de Adorno de que não seria mais possível poesia depois de Auschwitz. É insólito que no programa figurassem os poemas de Nas Moradas da Morte, traduzidos por João Barrento, que Beatriz Batarda leu, poemas impregnadas da terrível experiência do Holocausto, da condição judaica diria mesmo, e não houvesse qualquer apresentação da poetisa, Prémio Nobel da Literatura de 1966, e desse livro, Den Wohnungen des Todes, publicado logo em 1947. Mas mais: sendo que por uma qualquer razão o evento teve lugar não no Pequeno Auditório do CCB, como seria curial, mas no Palco do Grande Auditório, dificilmente se conseguia ouvir Beatriz Batarda.
 
Mais grave ainda foi que Paulo Nozolino, um fotógrafo e artista que particularmente estimo, se deixou enredar nas teias desta deslocada e abusiva “sugestão concentracionária”, para que afinal foi ssolicitado. O seu “espaço cénico” eram fotografias de prisioneiros que imediatamente identificávamos como sendo de campo de concentração, em flagrante contraste com as características da obra musical e, pelo modo como suscitavam a atenção, limitativas da concentração na escuta.
 
Mas também a execução musical esteve longe de ser feliz. O Schostakovich Ensemble, criado pelo pianista Filipe Pinto-Ribeiro fez jus ao seu nome. O exacerbamento dramático, a pulsação e o “rubato”, por vezes mais se diriam por sua vez sugerir, pesem ainda as diferenças de “instrumentarium”, o Quarteto nº 8 de Chostakovich, com o violoncelista Pavel Gomzkiavov e sobretudo a violinista Priya Mitchell em exagero de “vibrato”. Apenas o conhecido clarinetista Pascal Moraguès, “et pour cause…” (é clarinete principal da Orquestra de Paris e professor no Conservatório Nacional Superior de Música daquela cidade) teve as cores que a obra solicita.
 
Tantos talentos estimáveis para uma tão infeliz e abusiva concepção do concerto e sua realização, bem ao estilo de alguma “interdisciplinaridade” a despropósito que vai sendo característica da programação do CCB na era Mega Ferreira, de resto para um público muito selecto. Mas, e Messiaen? Antes do mais, não era ele que era suposto celebrar-se?
 
 
 
NB – Para ser justo, devo referir que, hoje mesmo em Paris, um dos intérpretes por excelência de Messiaen, o pianista Pierre-Laurent Aimard, apresentou no Théâtre des Champs-Elysées um programa na aparência semelhante em que a execução do Quator pour la fin des Temps era precedida de leitura de extractos de Sem Destino, obra de um sobrevivente dos campos de concentração, o húngaro Imre Kertész. Mas ao contrário do “envolvimento” poético e fotográfico do Quator no CCB, esse programa de Aimard intitulava-se “Captivités – L’art au prises avec les camps”, e note-se o plural, referido portanto a situações diferentes, e além da obra de Messiaen incluía outras de Schönberg, Ligeti e Kurtag, um programa de alusões e confrontações em suma, não de sugestão directa.

 

Messiaen - II, Turangalîla - II

 

 

 

Olivier Messiaen
Turangalîla-Symphonie
Markus Bellheim, Philippe Arrieus
Orquesta Sinfonia Portuguesa; Julia Jones
CCB, 16 de Novembro


É uma coincidência, importante de resto, mas por inteiro se justifica passar à estreia de outro novo director titular, o da Orquestra Sinfónica Portuguesa, Julia Jones, e assim também retomar a sequência das comemorações do centenário do nascimento de Olivier Messiaen.

 

Antes do mais, alguns dados: esta grande obra-prima foi estreada em Portugal a 11 de Novembro de 1967, pela Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, no Tivoli, com intérpretes de referência, as irmãs Yvonne (mulher do compositor) e Jeanne Loriod, direcção de Maurice de Le Roux, em presença do autor. Depois, a obra esteve ausente dos programas 35 anos, até ser de novo interpretada, pela Orquestra de Baden-Baden, direcção de Sylvain Cambreling, a 8 de Abril de 2003 no Europarque de Vila da Feira. De súbito, neste ano do centenário é a inflação: foi feita a 26 de Janeiro, na Casa da Música, pela Orquestra Nacional do Porto, direcção de Michael Zilm, de novo logo três dias depois em Lisboa no Coliseu dos Recreios, no Ciclo de Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian, de novo por Cambreling e Baden-Baden (o texto crítico ficou em falta, mas já segue) e agora pela ONP!

 

Como já tive ocasião de dizer a propósito da temporada do São Carlos, a programação do óbvio revelou neste caso uma notória falta de imaginação, pois foi delineada quando já se sabia das outras duas execuções, e foi mesmo anunciada posteriormente. Sendo que uma outra grande obra para orquestra, Chronochromie, será feita pela ONP na Casa da Música, no próximo dia 12, em vez desta terceira Turangalila bem que antes podia ter sido sim feita a outra grande orquestral do autor, a mais vasta em termos de espaço sonoro, Des Canyons aux étoiles, o que completaria o quadro. Enfim…

 

(Isto dito, também devo acrescentar contudo que o público que acorreu ao CCB para este concerto da ONP foi substancialmente daquele outro que assistiu à interpretação no Ciclo das Grandes Orquestras).

 

Julia Jones começou com um gesto amplo mas, a pouco, os “Bien modéré” foram-se tornando uniformes, e sentiu-se que a maestrina ainda está a “tactear” a relação com a ora “sua” orquestra. O mais surpreendente ocorreu contudo do lado dos solistas: ainda que laureado do Concurso Messiaen, o pianista Markus Bellheim exibiu um nada apropriado “toucher” duro, enquanto por outro lado, se em geral aquilo que à época da criação era o aspecto mais “modernista” da obra, o uso das ondas Martenot, surge agora como o mais datado, o solista, Philippe Arrieus, impôs-se pela sua sensibilidade – e nunca me tinha ouvir, em concerto ou em disco um caso em que ondas Martenot se destacassem mais que o piano.

 

De algum modo, esta execução, apesar dos seus muitos limites, não deixou de ser empolgante – porque a Turangalîla-Symphonie é uma obra tal que, a menos seja um desastre, sempre empolga. Mas houve os tais muitos limites.
 

Mishima amputado - II

Chegam-me informaçãos que ontem o filme Afraid to Die de Yasuro Mazumuro - que aliás tem o título original de Karakkare yarô -, em que Yukio Mishima é o protagonista, foi passado no CCB em dvd, sem que o público tivesse sido previamente informado, numa sala sem condições, e com preço de entrada de 3 €.

 

Sim senhor, muto respeito pelo público há nas nas megas-realizações culturais desse espaço cultural público - ou estaremos também esquecido do episódio, para mais malcriado, do abrupto cancelamento da Festa da Música?!

Mishima amputado - I

 

 

 

 

 

Desde que António Taurino Mega Ferreira assumiu as funções de Presidente do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém, a sua preocupação tem sido uma: programar e programar a seu gosto.
 
As questões, no que supõem de confusão entre as funções de Presidente de um CA e um Administrador encarregado da programação, como até então sempre houvera, no modo como se exerce uma “política do gosto” ou como o Presidente, homem inegavelmente brilhante, se rodeia contudo de uma corte de medíocres, são demasiados graves – e por isso as abordarei em futuro próximo.
 
Por agora, faço notar que uma das inovações de Mega, em si mesmo interessante, foi passar a dedicar ciclo a escritores – obviamente escolhendo favoritos seus, Paul Bowles, Thomas Bernhard e agora Yukio Mishima, mas não são essas escolhas, amplamente justificáveis para além das marcas da “política do gosto”, que estão em causa.
 
Sucede, todavia, que com tanta presunção, vaidade e mesmo gabarolice, há lapsos surpreendentes – hoje mesmo, por exemplo.
 
O dia de hoje é dedicado ao cinema, com três filmes, Afraid to Die de Yasuro Mazumuro, em que Mishima é protagonista, O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar, de Lewis John Carlino Carlino, a partir do texto homónimo do escritor japonês, e o ensaio biográfico Mishima: A Life in Four Chapters de Paul Schrader.
 
Ora, para quem se interesse pela importante relação de Mishima com o cinema, ou, tout court, quem se interesse por Mishima, logo nota que afinal a peça essencial está ausente: Yokoku/Patriotismo, o filme que o próprio realizou em 1966, dado como perdido durante muito tempo, mas cujo negativo foi reencontrado em 2005 e que, inclusive, já está editado em dvd pela Criterion.
 
Trata-se uma peça tanto mais essencial quanto, abordando a rebelião militar de 1936, é premonitória da tentativa de golpe de estado do próprio Mishima e da sua escolha de morte por seppuku.
 
Eu sei bem, por experiência própria, quanto por vezes pode ser difícil obter a cópia de um filme para exibição. Mas sucede num caso como este que os propósitos do ciclo dentro do ciclo se reduzem virtualmente a um somatório quanto falta a peça essencial.
 
Mais: quer no anúncio do CCB, quer do texto de apresentação de João Lopes (que, é-me penoso dizer isto, se tornou num escrevinhador sobre cinema com fórmulas feitas e ligeireza, perdido o gosto da descoberta), é completamente ignorada a existência de Patriotismo.
 
Tanta presunção, à la Mega, son excelence, e afinal tão pouca investigação. Assim andam “entregues” mega-instituições culturais públicas!

 

Dois concertos "austríacos" - II

 

 

Um Concerto para Thomas Bernhard

Obras de Mozart, Mendelssohn, Cerha e Pinho Vargas

Luís Lucas, Kurt Azesberger

Orquestra Metropolitana de Lisboa, Michael Zilm

CCB, 1 de de Dezembro de 2007, às 21h

 

 

 

“Há vinte e oito anos exactos havíamos morado em Leopolskron e estudado com o Horowitz, e (no caso do Wertheimer e no meu, não do Glenn Gould naturalmente) com o Horowitz tínhamos aprendido mais durante um verão completo, Verão em que chovera continuamente, do que durante os oito anos anteriores do Mozarteum e da Academia de Viena”.

 

O Náufrago

 

“Tanto quanto me lembro, não houve nada no mundo de que eu gostasse tanto como de música, pensei eu, olhando, através de Reger, para além do museu, para o interior da minha infância”.

Antigos Mestres

 

 

 

Ter como tópico organizador de um concerto um autor literário é facto que só usa suceder no “lied” e na “mélodie”, e mesmo nessa àrea até mais em disco que propriamente em recital. Realizar um concerto em torno de Thomas Bernhard (1931-1989), justifica-se plenamente pela importância da música na sua obra e na sua vida. Ainda assim, estava longe de ser uma proposta “evidente”, de tão “canónicas”, mesmo estereotipadas, que são as linhas de programação de concertos. Há pois, em primeiro lugar, de dar o devido realce à proposta do CCB – encerrando o ciclo dedicado ao escritor austríaco – e da OML, uma Orquestra que, aliás, vem apresentando, com um incompreensível pouco eco crítico, interessantes propostas de programação, já não falando agora de um trabalho de fundo.

 

Com tais premissas, terá também de aceitar-se que os modos de enunciação não tenham eles também sido “canónicos”, ou seja que, por exemplo, a Abertura “A Flauta Mágica” de Mozart tenho sido cortado por momentos de leitura de textos referentes à mesma (diga-se contudo que Luís Lucas, excelente “diseur” que é, esteve pouco à vontade nas funções de narrador).

 

Não menos é certo que Mozart – no caso a referida Abertura e a Sinfonia “Haffner” – não é exactamente o autor com quem Michael Zilm tem mais afinidades, ainda que, em “extra”, um número do “singspiel” Zaide, com o próprio Zilm, Lucas e o tenor Kurt Azesberger vocalizando de diferentes modos, tenha sido hilariante. Já interessante foi conhecer a abertura de outra “singspiel”, Die wandernden Komödiantenten/ Os Comediantes Ambulantes de Mendelssohn, anunciada como sendo em 1ª audição moderna – em Betão a personagem principal é um escritor que ambiciona escrever uma biografia de Mendelssohn.

 

 

Friedrich Cerha, compositor austríaco nasciado em 1926, é sobretudo conhecido por a ele se dever o acabamento do Acto III da Lulu de Alban Berg. Dir-se-ia impossível não recordar o facto ouvindo Bevor es zu spaet ist/ Antes que seja tarde para tenor e orquestra, sobre um texto de Derrubar Àrvores de Bernhard. Mas a obra maior de Cerha, convém também recordá-lo, é Baal, ópera sobre a peça do jovem Brecht, ainda “expressionista”. A clarissima herança berguiana em Bevor es zu spaet ist é a das aproximações “expressionistas” e até anteriores, a herança de Wozzeck, de Der Wein e mesmo dos Albenterg Lieder. Mas não se entenda a obra como epigonal, já que não menos se salienta, na força da sua expressão, um raro caso de correspondência musical ao universo inquieto, revolto e agreste do autor do texto.
 
O propósito de Pinho Vargas era de outro tipo, uma vez que, como desde logo o indica o título, a obra constrói-se sobre um texto declarativo, Um Discurso de Thomas Bernhard, pronunciado quando lhe foi entregue o Prémio Nacional de Literatura em 1967, discurso irado, na má-relação que foi a do escritor com a Àustria. A escolha do texto traduz também, por assim dizer, uma “radicalização” da aproximação por parte do próprio compositor neste seu “encontro”, aliás “reencontro”, com Bernhard.
 
Recordo que Pinho Vargas vinha a incluir na apresentação das suas obras um texto sobre “a melancolia física do artista”, com uma epígrafe colhida em Peter Sloterderjik, “não há apenas aprendizagem positivas...ao lado há também um verdadeiro curso de decepções”, e que em Six Portraits of Pain, a sua melhor obra dos últimos anos, um dos “retratos” era do de Thomas Bernhard - “Esta dor constitui-nos, esta dor é agora o nosso estado de espírito”. No texto deste Discurso, o “curso das decepções” é extremo: “Não há nada a dizer a não ser que somos lamentáveis. (...) Não somos nada e só merecemos o caos”.
 
As circunstâncias da encomenda acabaram por ser, ou se tornar duplas, uma vez que a obra é escrita para a mesma formação que a Sinfonia “Haffner”. Ocorria assim também um duplo risco: de a música se tornar envolvente ou sustentáculo da primazia de um discurso verbal e o da própria formação. Riscos esses que creio não inteiramente superados num aspecto: os “tutti” das cordas, numa escrita menos trabalhada que a dos sopros, não deixam de confirmar alguma propensão enfática que se vem notando em obras recentes de Pinho Vargas. Mas não menos é evidente que no fundamental há uma adequação entre os propósitos e a matéria, questão de “autenticidade”, para evocar o conceito adorniano que no caso creio de toda a pertinência.
 
 
P.S. – Na lista das obras de Thomas Bernhard publicadas em Portugal, incluídas no programa geral do ciclo do CCB, faltam as seguintes: O Fazedor de Teatro, tradução de Idalina Aguiar de Melo, Livraria Estante Editora, 1987; Betão, trad. Maria Olema Malheiro, 1989; Trevas, trad. Ernest Sampaio, Hiena, 1993. As omissões são tanto mais chatas quanto induzem uma certa parcialidade de referências editoriais. E aliás o discurso quando do Prémio Nacional está incluído em Trevas.